Diana Caolha - O Fim de meu amor
Diana Caolha - Final
Essa história poderia ser melhor contada, mas estou sem tempo. Essa é a continuação de minha história de amor, um amor diferente de outro qualquer, um sentimento mágico, que vai além da importância da matéria, do estado físico. Esqueça as aparências, pois elas enganam. Sei que estou sendo repetitivo, mas é a verdade. E eu fui enganado por mim mesmo.
Vinte anos após ter surfado sobre aquele maldito trem e abraçado meu destino regado a sangue, estou de pé, Diana mira em minha cabeça. Eu sei que a amo, mas vejo que tudo não passou de um maldito sonho. O desejo é algo que não podemos controlar. Mesmo tão próximo da morte sinto um forte desejo. E esse desejo fez com que eu a puxasse para perto de mim. Olhei-a por uma ultima vez e num impulso nossas bocas se encontram. Meus lábios a contornaram depravadamente. Senti minha língua ser tocada, fechei os olhos e absorvi toda a tensão daquele momento e um mundo de memórias cegou-me enquanto uma lágrima indefesa escapou furtiva, escorregadia e mórbida pelo meu rosto, e decidida fez seu caminho até perder-se no abismo de meu corpo.
Sou só um homem, um louco, meu nome pouco interessa, mas vocês acabarão o conhecendo. Quem eu sou? Bem, sou somente o dedo no gatilho, nada mais que isso. O que realmente interessa, é quem é ela.
...
As arvores corriam paradas, tudo havia ficado para trás, o tempo tinha acabado para Charlie e agora éramos somente nós dois. Big Pig e seus pais estavam mortos, meu avô havia partido também, e o que eu temia estava acontecendo, eu descobri que eu pouco me lixava para eles.
Deitei sobre o piso do vagão enquanto a poeira negra invadia minhas narinas, o ranger do aço enferrujado da máquina de ferro me impossibilitava de dormir. Queria tê-la deixado lá, ter sido prudente e nunca ter entrado naquela casa, mas não havia nada que pudesse fazer. Agora éramos os culpados pelas mortes dos três.
A essa altura do campeonato nada mais éramos que um casal de assassinos. Estava encharcado, tirei a camisa e me arrastei em meio ao misto de poeira de carvão e ferrugem, entretanto Diana estava ainda mais gelada que eu. Aquilo foi o suficiente para que a abraçasse com todo meu calor. Precisava protegê-la, e aquele agora era o meu dever.
A febre tomou o meu corpo, um calor infernal rachava meus lábios, tremia e sentia uma grande dificuldade em falar, como se estivesse ainda sobre o efeito de um tipo de anestesia. Tentei me levantar e senti o balançar de meu corpo ainda desequilibrado e fraco. Olhei para frente e eles estavam lá. Cinco pivetes prontos para acabar comigo. Seguravam tacos de beisebol e sorriam desgraçadamente com suas roupas rasgadas e as caras lambuzadas num misto de água e carvão. Pude ver a fome em seus olhos amarelos e sentir o odor do medo ainda jovem que eles exalavam. Eram apenas garotos.
- O que você esconde aí? – um deles me perguntou.
Olhei para Diana, e ela pareceu acordar de todo aquele transe. Pude sentir toda raiva dela, a raiva de si mesma. Mas eles eram apenas crianças, meninos entre nove e doze anos. Ainda mais novos que a pequena trupe de Diego. Uma duvida me tomou, e eu temi. Ela os mataria?
- Saiam daqui! – Eu os disse tentando proteger a vida deles, no entanto eles me olharam e sorriram sarcasticamente. Lamentei por eles e tentei guardar a arma sem nenhuma intenção de atirar.
- Cara, você é louco! – Eles disseram sacando seus canivetes e sorrindo. Diana foi tão rápida, segurou minhas mãos e pude sentir o calor dela, e também a sua frieza. Os cinco garotos caíram no vagão, um a um, de joelhos, de barriga, caíram imaturos, precoces eles caíram agonizantes. Não pude fazer nada. Diana simplesmente os havia aniquilado sem ao menos dar-lhes uma chance, ela o havia feito com a mesma destreza de sempre.
Daí em diante não havia regras, concessões, não havia inocentes. Éramos eu e Diana contra o mundo. Precisávamos comer, dormir, precisávamos de um lar. Diana era impulsiva, as balas para ela eram como sangue. Sem elas ela não vivia. Era tão prazeroso para Diana estar cheia delas como esvaziar um tambor em cinco segundos.
Para comer, precisávamos apenas de pequenos furtos, mas ainda assim algumas mortes não cairiam mal. Porém para dormir e ter-se um lar, tínhamos que ser mais atentos. Procurar um lugar mais afastado, um casal de velhinhos na colina, ou algum lobo solitário que viveria em sua casa sendo abastecido por doses melancólicas de um bom conhaque no inverno regrado ao esmero de uma canção romântica, amena e melancólica que o trouxesse a vertigem de um momento saudoso, a lembrança de um amor passado;
Matar havia se tornado algo banal. Ter amigos era algo proibido, inimigos tínhamos por pouco tempo, com exceção de um velho conhecido. O detetive que seguia o rastro de uma bala. Ele queria Diana a qualquer preço. Tudo por uma assinatura idiota quando ainda éramos garotos. A mesma assinatura que Diana fez questão que voltássemos a usar. Todas balas tinham a mesma marca, o mesmo ”D” que havíamos deixado naquela maldita escola.
O problema é que ele sempre ligou aquele maldito “D” a mim, isso porque meu nome insignificante era “Deusdete”, mas meu nome não importava, até porque eu sempre o odiei. Diana pouco ligava se as pistas levariam a mim, ela até gostava de toda aquela ansiedade, da perseguição, do clímax que tido aquilo a proporcionava. O que sei é que uma manchete idiota em um jornal qualquer há muito tempo atrás nos alertou. A manchete estampada no preto no branco dizia:
“Bebê que havia sido dado como morto por dez segundos há anos atrás, após ter sido espancado pela mãe, cresce ao lado do avô, e após a morte do mesmo, mata um amigo e os pais, e foge com arma do crime. Testemunha que sobrevive a um tiroteio em um vagão de trem diz que escutou o nome de uma terceira pessoa. O nome ainda não foi revelado por ordem do policial Clóvis que liga o suspeito a morte de seu irmão caçula Diego Polanski, morte essa que até então era considerada um ato de suicídio, porém o detetive adianta que se trata de uma mulher que possivelmente haveria forjado sua própria morte.”
Desde então, me escondia, fugindo dessa sombra maldita que rasteja pelos becos como um vingador da noite, pronto para me esfaquear pelas costas. E ainda precisava proteger Diana, minha Diana das garras desse detetive. Ao menos era o que eu fazia até agora.
Por anos fugimos dele, acabamos todos nos tornando assassinos. Ele, um maldito justiceiro que de dia usava uma estrela no peito, distintivo que o nomeava um homem da lei. Mas a lei é um decreto que cada um pode fazer conforme sua necessidade e estado de espírito. Durante a noite ele saciava sua fome de justiça combatendo a podridão das gangues. Ele fez sua própria lei e como nós criou seu próprio caos.
Agora já se passou tanto tempo, tantas mortes, e cá estou eu, aqui estamos quase sem balas. Na verdade nos resta apenas uma, e como sempre, está sobre o poder de Diana Caolha. Ela sempre quis ser chamada assim, pois agora era assim que ela era. Sua beleza não estava na sua forma e que se dane isso tudo, pois como disse desde o começo, nosso sentimento é algo que vai além da importância da matéria, do estado físico. Esqueça as aparências, pois elas enganam. Diana não é uma simples mulher.
Hoje é o fim, e eu diante da loucura, encontrei enfim a sanidade. As mortes, o sangue, a dor nos olhos calados das vitimas, os corpos derramados inertes, o parasita que sempre me controlou. Esse ódio pelos meus pais que nunca me quiseram. Eu, um deus bastardo que foi adotado por um avô tão bom e ao mesmo tempo tão culpado.
Como ele permitiu que uma doente mental se relacionasse com seu melhor amigo. Como ele pôde permitir que sua irmã fosse estuprada por aquele que um dia um jornalzinho de quinta categoria descreveria ser o meu pai. Maldito seja Deus, o destino e o acaso. Quero que todos se ferrem junto com a hipocrisia dessa sociedade idiota que julga minha inteligência.
- Deusdete? – Isso parece uma piada de mau gosto. Eu ter uma parte de Deus em mim. Mas isso foi apenas no nome, com certeza. Talvez fosse melhor se me chama-se Deusdelete. Mas foi isso que fiz quando descobri minha história. Eu o deletei completamente, e só agora sei, nesse ultimo segundo enquanto o dedo escorrega pelo que eu tenho como o clitóris de Diana, e ela tenta me conter. Eu vou terminar com ela da maneira que ela mais gosta, apertando o gatilho.
Diana está tentada, mas não quer fazer isso comigo. Me pede para parar. Diz que realmente me ama e que juntos somos invencíveis, mas me cansei de tudo isso. Quero conhecer o inferno real, chega de criar algo particular. Talvez Charlie sinta minha falta, precise de um amigo, talvez enfim eu possa fazer a coisa certa.
Esse dia não começou bem. Eu sabia que ele estava bem próximo, até porque deixei pistas tão óbvias. Já faz um mês que me decidi. Esconder isso de Diana foi algo muito doloroso para mim, essa foi a primeira vez que menti para ela e isso é o equivalente a mentir para mim mesmo. Tudo isso está gravado nesse maldito gravador.
Aqui você terá toda a confissão que precisa. Eu matei todas essas pessoas. Eu e Diana. Ela me controlou por todo esse tempo. Sei que isso pode soar estranho, entretanto é a mais pura verdade. Gravei isso para você e só termina quando você abrir a porta e entrar com a arma apontada para nós. Estou ouvindo seus passos, posso ouvir até sua respiração, degrau por degrau dessa escada fétida, desse barraco de quinta categoria no qual me enfiei a sua espera.
Agora vejo a maçaneta se movendo e antes que a porta se abra Diana me pede perdão. Sinto muito, mas ainda a beijo, sua boca pronta para cuspir a ultima bala ao meu comando.
Ainda me lembro de levar flores certo dia ao tumulo dela quando ainda éramos nós três, eu, ela e Charlie. Não entendia como seu espírito havia parado ali, no mesmo revólver que a matou. Um calibre 38, a arma que Charlie sem querer disparou enquanto os dois estavam ali, deitados, se descobrindo sobre uma toalha vermelha. Um piquenique, escondido de seus pais que descobriram tudo e o inocentaram. A primeira bala havia penetrado pelo queixo e se alojado na cabeça, essa já havia sido suficiente para matá-la, mas algo insano aconteceu. Charlie passou a ouvi-la, ele havia ficado louco, a mesma loucura que eu vivi até aqui.
Diana agora era caolha, era o que ela era por ver apenas pela mira da arma. A arma que era o receptáculo de sua alma. Ela o fez dar mais dois tiros na cabeça dela e a abandonar ali. Ele correu para casa e se trancou no quarto, saindo de lá apenas para escola. Ficou assim por muito tempo, absorto, mergulhado em toda sua culpa, até me conhecer. Agora ele tinha um novo amigo, tão louco quanto ele, e perdidamente apaixonado por ela. Ele precisava de alguém capaz de fazer qualquer coisa para protegê-la. Ele não podia deixá-la sozinha.
A porta se abre e aqui termina o beijo, num estouro, numa explosão. Minha boca contorna a dela, pois eu engulo o cano da arma. O projétil rasga minha língua e perfura minha pele de dentro para fora, escapando por minha nuca e se enfiando na parede oca e velha desse mausoléu. Caio em mim enquanto um rosto familiar me fita. O detetive me olha, apontando a arma para mim. Diana cai junto de meu corpo ao lado do gravador. O detetive a pega ainda incrédulo e me reconhece. Certa satisfação o toma, seu semblante muda, ele enfim havia encontrado o culpado.
Eu estou morto, o sangue escorre de meu corpo inútil, e eu sinto um bando de garras negras e sombrias arranharem minha alma, vejo Charlie, ali está ele. O mesmo garoto triste de sempre, seu corpo agora está raquítico, dentes podres, olhos amaldiçoados pelo fantasma da morte, ele sorri para mim como se estivesse feliz por me encontrar.
Sinto-me sendo puxado por uma força estranha, sinto arder em chamas e sou levado para as profundezas do inferno, enquanto ouço a voz sedutora e diabólica de Diana soprar sombria ao ouvido do homem que a segura com o olhar vago e confuso, aparentemente inebriado com todo o estranho poder que acabara de sentir.
- Ajude-me! Me leve com você querido!
Fim.