Quando os mortos caminham - Aniquilação – Capítulo VI

Nas horas que estive preso aqui dentro só pensei em como fui parar aqui, e em como sairei daqui...

Já estávamos juntos há cerca sete dias. Eu, Jackie e Pedro. Naquele momento já sabíamos de muita coisa, não vou pular etapas, mas antes de prosseguir quero que saibam o porquê deles terem me largado aqui.

Quando os mortos caminham - Aniquilação – Capítulo VI

Acredite, o mundo havia sido devastado por essas pragas e a cada minuto elas pareciam se multiplicar, e pior, estavam se evoluindo, se tornando monstros muito piores e mais ágeis do que os zumbis que onde se hospedavam.

Como se apenas uma semente vivesse dentro daqueles corpos por determinado tempo e então germinasse, usando-os como uma espécie de casulo e sofrendo mutações terríveis.

A cidade inteira estava sendo destruída e naqueles sete dias muita coisa havia mudado. Havíamos encontrado respostas tão absurdas e ao mesmo tempo tão verdadeiras para aquela hipotética situação.

A maioria dos habitantes estava mortos, a pele já estava apodrecendo estranhamente, a principio eles se comportavam como zumbis e pouco a pouco o aspecto deles ia mudando, veias cada vez mais altas, pele descascando e ficando em carne viva. Os dentes caiam como os de uma criança que perdia os dentes de leite, entretanto novos dentes mais resistentes e pontiagudos cresciam no lugar dos antigos.

Os olhos se tornavam cada vez mais esbranquiçados enquanto a íris cada vez mais se tornavas uma sombra, uma mancha nos olhos vidrados daquelas criaturas.

Algo terrível estava acontecendo e até aquele momento nada podia explicar o que era aquilo. Encontramos alguns sobreviventes no caminho, mas em sua maioria não confiavam uns nos outros, e como confiar se o mundo havia se tornado uma verdadeira zona de combate.

Saqueadores, estupradores, mau e bem eram um só, brincando de pique e pega pelas ruas e rodovias.

Como confiar em alguém? Quem queria realmente te ajudar? Quem queria apenas te matar por diversão ou loucura? Quem te roubaria? A comida estava justamente onde à maior parte estava concentrada, na cidade. E era de lá que todos estavam fugindo.

...

Lembro-me bem quando os únicos amigos que fiz depois de anos, começaram a desconfiar de mim. Mas não os culpo, acreditem, eles realmente não podiam confiar.

Eu havia escondido minha origem deles, nem mesmo Pedro sabia quem eu havia sido. Nem os mortos contaram para ele que eu era um maldito assassino. O mesmo homem que há cerca de oito anos, ainda garoto, havia matado o pai, e se isso não bastasse, eu o havia devorado, guardado os pedaços no congelador para que pudesse o degustar por treze dias enquanto que a cabeça dele estava a minha frente por sobre a mesa.

Ficamos ali por dias, congela... Descongela... Eu havia o matado com o fêmur de minha mãe, após ter comido toda a carne dela.

Não tomem conclusões precipitadas sobre mim, afinal, não sou culpado, ao menos não de todos os crimes.

A notícia estava em todos os jornais. Eu queria isso, queria que todos soubessem que eu havia feito aquilo, enquanto é claro eu viveria numa cidadezinha pacata, rindo da cara de todos eles, estando à vista, acreditem, essa é a melhor forma de se esconder.

Talvez pensem que eu sou um simples assassino, um canibal... É, eu sou isso tudo, sou filho da puta mesmo. Minha mãe era uma vadia, e meu pai nada mais nada menos que o desgraçado do cafetão que batia e comia ela a hora que bem entendesse.

Certo dia bateu tanto nela que a coitada da viciada caiu no chão, ele quebrou a perna dela. Isso foi pouco antes de eu matá-lo. Apenas alguns dias antes. Vendo-a ali no chão ele sorriu desgraçadamente enquanto eu assistia a tudo.

Estava escondido ali o tempo todo. Mas foi o primeiro chute na cabeça dela, e o sangue que saltou de seu nariz, aquele nariz que eu sempre julgara perfeito. Foi aquilo que me despertou.

Tudo bem que o tempo e as drogas havia deixado cicatrizes em sua pele, não cicatrizes de feridas, mas sim, marcas que a vida traz ao longo dos dias. Rugas cheias de tristeza e dor, melancolia que transbordava dos olhos, lágrimas que não existiam. Mas ela ainda assim era muito bela, era magra, um corpo de curvas envolventes e seios de uma virgem. Eu a amava.

O segundo chute chegou junto comigo. Saí de meu esconderijo, escorreguei pelas valas da coragem e então o confrontei, homem versos garoto, corpo a corpo.

O resultado não poderia ser outro, ele socou minha cara com tanta força que caí, fui lançado para trás e ele veio em minha direção.

- Quer salvá-la garoto? – Ele perguntou – Você é um bastardo seu idiota. Mal tenho certeza se é mesmo meu filho – Afirmou como se não fosse tão fácil discernir. Eu era ele alguns anos mais jovem. A cara dele, os olhos dele, e toda selvageria daquele meu maldito pai biológico.

Ele me pegou pelos cabelos e me levou próximo a ela, amarrou minhas mãos para trás e me prendeu aos pés de uma mesa de ferro que ficava no centro da cozinha.

Aquela casa era um maldito barraco de paredes sem reboco ou qualquer outro acabamento. Em alguns pontos a claridade entrava como se fosse dona daquele lugar cheio de trevas. O telhado estava borrado de preto, telhas de amianto, finas e fracas. As janelas eram antigas e gradeadas e uma das poucas portas que havia lá, era a da entrada, a única por onde se entrava e saia. Uma porta velha de madeira, resistente, mas não bonita.

Inocentemente chorei, gritei enquanto vi ainda que por alguns minutos minha mãe cuspir o sangue, que teimoso brotava de sua boca. Ela arrastou-se até mim com imensa obstinação enquanto o homem que nunca chamei de pai apenas a acompanhava com os olhos. Quando enfim a prostituta apoiou sua cabeça em minha perna, senti que ela queria me dizer algo, mas quando nossos olhares se cruzaram abruptamente ela desfaleceu-se e a morte reinou em seus belos e melancólicos olhos.

Ele me olhou, viu meu sofrimento, sentiu o cheiro de meu medo e aquilo o revigorou ainda mais. Logo deduzi que ele ia fugir e me deixar amarrado ali, após permitir que eu o assistisse enquanto contava os treze pontapés que dera no rosto de minha mãe, e eu a cada golpe desconhecia a face dela. Por fim ele me olhou e sorriu, vi o punho cerrado cortando o ar e seguindo em minha direção e no baque mergulhei em plena escuridão.

Acordei algumas horas depois, estava em uma espécie de cabana mal feita, não sabia onde era. Apenas podia sentir um odor tremendo que cercava todo aquele lugar. A cabana era baixa, quase uma casa indígena feita a partir de toras de árvores partidas ao meio.

Eu podia ver por algumas frestas, porém em sua maior parte, a lado externo era revestido por algum tipo lata. O teto era baixo, porém também era de madeira revestida com a mesma lata. Eu estava livre ali e ao mesmo tempo aprisionado.

Havia apenas uma porta, mas estava trancafiada por um cadeado que atava as duas pontes de uma corrente. Não havia sequer uma janela, apenas eu, um saco estranho no chão e a poeira e várias coisas inúteis por ali.

Minha dedução fora no mínimo tola, ele de certo queria me matar, mas pelo visto lentamente. Não havia comida ali, nenhuma comida, a não ser que estivesse naquele saco.

Como eu fui tolo mais uma vez. Após cerca de quatro horas tentando encontrar algum motivo que me fizesse acreditar naquilo e impedir de satisfazer minha curiosidade, caminhei lentamente até o saco. Ele estava amarrado por uma corda fina.

Olhei receoso como se alguém estivesse a me vigiar e por fim comecei a desembrulhá-lo. A tarefa não foi a das mais fáceis, ele sabia fazer aquele tipo de nó como ninguém. Lembro dele segurando uma corda e amarrando o balanço velho à mangueira que dava sombra a nosso terreiro.

- É assim que se amarra uma corda, moleque! – ele disse. E assim estava aquele nó.

Quando por fim o desatei fui com sede demais ao pote e ela rolou, rolou aos meus pés. Abruptamente senti a náusea tomar meu corpo, e consecutivamente o vomito escapou de minha garganta, ardido e indiscreto.

- Mãe? – Eu me surpreendi ao ver a cabeça dela, e notar que dentro do saco o restante dos restos mortais cortados em pedaços. Aquela imagem ainda está viva em minha mente, tão viva e traumatizante que não pude me recuperar jamais dela. Naquele instante, tenho certeza que foi naquele momento singular, inesquecível, abominável, foi ali que me tornei o que sou.

Mais dois dias se passaram e nada. Apenas eu, minha loucura e o corpo fatiado de minha mãe. Eu sentado num canto, joelhos abraçados pelos meus braços, pensamentos aglutinados e confusos, lágrimas secas e mórbidas. Olhos afundados na mácula de minha vida. Eu era um posso de rebeldia pronta para explodir, entretanto tinha algo muito maior me dominando, algo que me perturbava ainda mais que meus pensamentos, algo incontrolável e naquele momento tão sórdido. Eu estava louco de fome.

Lutei contra todo meu corpo, contra ânsia de viver. Tentei me matar. Prendi a respiração inutilmente. Bati com a cabeça contra a parede. Corria, a socava, puxava os cabelos e levava as mãos ao pescoço. Estava no ápice de minha total insensatez. A vida parecia ser insignificante por um lado, mas por outro algo me dizia que quando minha mãe rastejara aos meus pés e naquele ato demonstrara o afeto que deveras sentia por mim, naquele momento eu soube que devia vingá-la. E decidi viver a qualquer custo.

Acho que mesmo que vivo, a morte já me conhecia, conseguiu naquela barraca, cabana ou sei lá o que quer que fosse, levar uma parte de mim. Não a sensibilidade, ou até mesmo a bondade. Não a pureza tampouco a falta de caráter. Não era nada disso, a morte levou de mim a fraqueza, o medo.

Levantei-me repentinamente do chão e deitei ao lado do corpo de minha mãe. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde aquele maldito viria atrás de mim, e eu precisava estar de pé para enfrentar ele.

Naquele instante, a idéia mais grotesca passou por minha cabeça, não sei se por irracionalidade ou pela mais coerente racionalidade do momento, mas decidi que deveria me alimentar, e por algum motivo tive certeza que minha mãe iria querer-me vivo.

Enfiei a mão naquele maldito saco e apanhei um pedaço de seu corpo, algo que de certo deve ter escapado da barriga dela, tripas ou o pedaço de um órgão. Confesso que não me lembro bem do que comi pela primeira vez, até por que evitei olhar muito para aquilo. Apenas senti a viscosidade do sangue já envelhecido e pútrido em minhas mãos e abri a boca displicentemente.

Aquele gosto adocicado chegou a minha boca junto do mau cheiro da carne de minha querida mãe. Mastiguei-o com tamanha repulsa enquanto sentia aquele tecido cru se agarrar entre as minúsculas fendas que separavam meus dentes.

Aquela sensação maiúscula que estava sentindo, um misto de remorso pelo que fazia aliado a uma ira tremenda que me incentivava a prosseguir no intuito de me manter vivo para punir o responsável por tudo o que estava acontecendo e foi exatamente o que fiz.

Fiquei mais nove dias trancafiado naquele lugar até que consegui com muito custo cavar um buraco debaixo daquela terra dura. Fiz aquilo com minhas próprias mãos. Lembro-me de me espremer pelo buraco e passar por debaixo de três postes de madeira, parecia que eu podia ficar preso ali a qualquer momento.

Minhas costas devido à forma com que cavei o buraco pareciam ter se curvado ao limite quando pude receber os primeiros raios de sol do lado de fora dali.

Fiz o buraco exatamente no rumo da porta onde a madeira não me atrapalharia, pois em qualquer outro canto ela estaria fincada no mínimo quarenta centímetros abaixo do chão.

Quando me vi do lado de fora ouvi o bater de asas enormes, várias dela e o estranho é que o cheiro que eu sentira agora ainda era mais fétido do que o próprio cheiro do corpo de minha mãe. Olhei ao redor e logo entendi o porquê daquilo. Eu estava exatamente no lixão da cidade, ou melhor em uma parte quase abandonada dele.

Sempre havia escutado que aquele lugar era enorme, mas não tinha idéia da dimensão dele. Vi o que eram as asas, e confesso que temi que aqueles malditos urubus me confundissem com um morto qualquer, pois de certo não estava muito longe disso, ao menos a se julgar pelo cheiro que jazia entranhado em minhas roupas e pele.

Agora eu estava livre e a única coisa que eu queria era achar meu pai e eu tinha certeza que ele já deveria estar com uma piranha qualquer, em nossa casa como se nós simplesmente estivéssemos por aí. Afinal quem se importaria com uma prostituta e seu filho?

...

Estou saindo desse buraco e prometo pegar os cretinos que me deixaram preso aqui. Por todos esses anos quis mudar, queria ser diferente, não sentir esse desejo que me atormenta a alma.

Estou subindo, estou saindo, eu e minha única chance de sobrevivência, eu e minha fome.

...

Havíamos descoberto coisas demais juntos, nós três protegíamos uns aos outros, mas eles me traíram. Lembro-me de me deixarem em meio a um bando de mortos vivos, que me perseguiram esfomeados até a beira dessa fossa de onde estou saindo.

Fui cercado e senti-me agarrado pelas mãos de um deles e foi nesse momento, quando pisava encima da tampa da fossa que senti algo ruir abaixo de mim. Estávamos em uma chácara no meio do nada, próximo a nosso destino.

Senti o ar ser deslocado, meus pés flutuaram por fração de segundos e me vi segurando o braço do defunto que queria me matar. E se não fosse aquilo talvez eu nem estivesse vivo.

Os ossos podres daquele cadáver foram minha saída daquela fossa. Rádius e ulna, os ossos do oficio daquela gloriosa escalada. Cravei-os no barranco e comecei a subir, enfiava e subia, após ter arrancado a maior parte da pele com meus próprios dentes. Não havia lugar para choro, não havia tempo para descanso.

Eu só queria vingança, eu só queria sobreviver.

Continua em...

Quando os mortos caminham – Capítulo VII – A Morte de um amigo

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 11/01/2013
Reeditado em 18/01/2013
Código do texto: T4078478
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