Crime em Henry Street
Uma rua escura e um muro alto com uma pequena cerca de arame farpado no topo era o que separava Everton da casa de fachada pintada de branco na pacata Rua de Henry Street. O bairro inteiro dormia a sono solto àquelas horas da noite e não se ouvia nenhum ruído em toda a vizinhança. O silencio noturno era o que Everton precisava para cometer o roubo que vinha planejando há dias e a quietude da casa branca que ele via sempre que passava pela rua independente da hora do dia, o que poderia indicar que os donos estivessem viajando, fez dela a escolhida para o crime.
A cerca farpada em cima do muro lateral não era difícil de transpor. Everton encostou ao muro uma lata de lixo que estava no meio-fio. Ele subiu nela e segurando com cuidado na haste que sustentavam os arames, ele se empurrou para cima, passando cuidadosamente uma perna depois da outra sobre a cerca. Ainda segurando nela, aliviado por não ser ela eletrificada, ele desce suas pernas e se solta, caindo na grama molhada de orvalho do jardim. Everton corre agachado ao lado da casa pelo beco entre ela e o muro que se estendia até o quintal. Além de uma janela fechada, não havia nenhum outro lugar por onde ele pudesse entrar. Everton descartou desde o início o telhado que era muito alto. Isso sem mencionar o trabalho que daria para destelhar e pular dentro de casa sem fazer nenhum barulho. Everton forçou a janela. Não conseguindo abri-la, ele foi para o quintal procurar as portas dos fundos. Chegando nele, Everton viu uma mangueira serpenteando em cima da grama nas sombras da noite feito uma cobra amarela, mas não foi exatamente isso que fez seu sangue gelar. A vinte metros de onde ele estava, três rottweilers imensos dormiam acorrentados a um pedaço de ferro fixado no solo. Olhos fixos nos três animais, Everton volta passo após passo para a lateral da casa, contendo a respiração. Difícil ou não, se ele quisesse levar algo teria que ser por aquela janela. Everton a empurrou novamente e depois enxugou o suor de suas mãos na roupa. Mesmo tendo passado por essa situação diversas vezes, o medo e a apreensão ainda eram companheiros constantes. O perigo de ser apanhado e preso pela polícia estava sempre à espreita, se escondendo atrás de cada porta, de cada parede e em cada sombra. Bastava um simples descuido para ele pagar o preço pelo resto de sua vida.
Ele tirou sua blusa e a enrolou em sua mão para protegê-la durante os socos que daria na janela para abri-la e abafar o som das pancadas. Se ele escolhesse os pontos certos, os trincos se romperiam rapidamente e com o mínimo de estardalhaço. Uma porção de socos localizados em cima e em baixo depois, a janela se abriu revelando o recinto do outro lado, onde os pés de Everton repousaram com uma agilidade felina. A penumbra do luar entrou pela janela, iluminando o vazio do quarto. Se não fosse por uma cama no canto direito, ele estaria completamente limpo de móveis. Everton se moveu furtivamente para frente e se encostou atrás da porta entreaberta, aguardando alguma manifestação dos moradores da casa. Na quietude que dominava o lugar, ele se permitiu um suspiro profundo para tentar acalmar seu coração. Era impressionante como as paredes de uma casa estranha ecoava sua apreensão, fazendo Everton ter a sensação de que seus batimentos cardíacos acelerados e sua respiração descompassada poderiam ser ouvidos pelos donos da residência, acordaria os vizinhos e chegariam até mesmo à delegacia mais próxima, mas ele não podia se deixar levar pelo medo. Ele só precisava de algum objeto. Um DVD, um pequeno aparelho de som. Um porta-jóias talvez. Algo fácil de carregar, pular o muro e esconder debaixo das vestes, e que ele pudesse vender por um bom preço. Logo que ele encontrasse alguma coisa assim, ele sairia tão rápido quanto tinha entrado e só se dariam conta do roubo de manhã cedo, quando ele já estaria bem longe. Era muito simples. Ele já havia feito isso antes, não havia? E ele não tinha sido pego. Ele não poderia desistir naquela etapa. Ele já tinha ido muito longe para estragar tudo. Everton abre a porta que range em lamentoso protesto. Amaldiçoando as dobradiças, ele se inclina para frente e olha de um lado a outro no corredor da casa que continuava silenciosa como um mausoléu. Talvez o que Everton pensou quando estava em frente à casa estivesse correto. Talvez os moradores estivessem mesmo viajando. Everton põe-se a caminhar vagarosamente pelo corredor, rente com a parede. Uma porta estava aberta logo adiante. Everton vai até ela e se curva sobre a soleira para olhar o outro quarto. Uma cama de casal tinha o edredom desarrumado e um laptop fechado sobre ele. Acima da cabeceira da cama, um quadro grande retratava uma horrenda cena de guerra. Corpos de soldados se espalhavam perto das trincheiras, onde outros soldados se escondiam e trocavam tiros com as tropas inimigas. Everton entra cautelosamente no quarto para pegar o laptop. Com o computador portátil em mãos, ele percorre o quarto com o olhar à procura de algo a mais. Um guarda roupa estava próximo ao canto, à esquerda. Everton se encaminha até ele e abre suas portas, encontrando apenas um punhado de roupas penduradas em cabides e dois pares de sapatos em baixo. Ele fecha as portas e abre a primeira gaveta, mas ela não possuía nada além de meias e roupas íntimas masculinas, assim como a segunda e a terceira. Desistindo das gavetas, Everton abre o segundo par de portas acima delas e leva um susto com sua própria imagem refletida num pequeno espelho. Ele poderia até ter rido, mas dada as circunstâncias, não o fez. Se aquele rapaz magricela e de cabelo desajeitado no reflexo quisesse levar outra coisa além do laptop e que não fosse roupas ou perfumes baratos, ele precisava verificar outros cômodos. Everton sai do quarto e volta para o corredor, caminhando devagar em direção à sala. Um conjunto de vozes sussurradas que vinha dela fez Everton congelar onde estava. Para seu tremendo azar, parecia ter gente na sala. Mas como não o ouviram arrombar a janela, entrar em casa e vasculhar o quarto? Everton avança mais alguns centímetros, chegando à quina da parede. Uma iluminação opaca tremeluzia em todo o ambiente. Ele expõe metade de seu rosto e uma brisa de alivia sopra em seus pulmões, quando percebe que as vozes eram apenas as imagens da televisão que estava ligada. A hipótese de ter pessoas na sala, não estava de todo errada, todavia. Um homem grande e de barba a fazer dormia estirado no sofá enquanto aos seus pés descansava uma garrafa de bebida virada, deixando o líquido escorrer livremente pelo piso da sala. Everton começa a se afastar lentamente, sem desviar o olhar daquele homem. Ele já dera muita sorte em ter entrado sem que ele acordasse, e não podia abusar disso. Um computador portátil estava de bom tamanho por uma noite. Ele volta pelo corredor e entra no quarto por onde tinha entrado, redobrando seu cuidado com o rangido da porta. Everton se prepara para pular a janela e o pé que apóia nela escorrega no momento em que ele se impulsiona, fazendo com que ele caia na grama do lado de fora. O laptop que segurava rola para longe quando Everton o solta numa tentativa involuntária de amortecer a queda com seus braços. Ele se levanta, limpando suas mãos na roupa e vai em direção ao laptop, torcendo para que o aparelho não tenha quebrado. Quando o pega no chão e o abre, seus olhos são ofuscados pelo brilho da tela. Para sua surpresa, o computador não só não estava quebrado, como estava ligado. Ao julgar pela bateria, ele foi ativado pouco antes de Everton o encontrar no quarto, mas o que o surpreendeu, de fato, foram as imagens que estavam na tela. O laptop havia sido deixado no quarto com a galeria de fotos aberta e as imagens que estavam guardadas fez Everton querer vomitar sua última refeição, mesmo que já estivesse a três horas em jejum. Membros decapitados se espalhavam junto com o sangue no que pareciam ser cenas de crimes abomináveis. Cadáveres de pessoas assassinadas brutalmente também se apresentavam à Everton na medida em que ele passava uma foto depois da outra. Que tipo de pessoa guardaria fotos como aquelas no computador? Everton se perguntava. Alguém envolvido com investigação criminosa? Everton poderia até praguejar por ter a infelicidade de escolher justa a casa de um investigador para roubar, se essa hipótese não soasse tão estranha. Pensando melhor, realmente tinha algo esquisito que lhe incomodava. O silêncio da casa durante o dia, mesmo com o morador. O guarda roupa despojado e sem roupas femininas, como se o morador quisesse está preparado para a qualquer momento arrumar as malas e fugir. Talvez fosse o medo de ser apanhado que estivesse pondo a imaginação de Everton contra ele ou a convivência com a escória de bandidos que fez Everton sempre esperar o pior de todo mundo, mas era algo do qual ele não conseguia se desviar. Um barulho que vem de dentro da casa tira Everton de seu devaneio. Ele fecha o laptop e põe-se a caminhar, apressando o passo em direção ao ponto do muro onde tinha pulado até de repente parar. Vindo do jardim aparece uma figura humana com uma peça afiada em suas mãos reluzindo à luz do luar. Everton dá meia volta tropeçando nos próprios pés e corre desesperado para o muro no fundo do quintal. Ele não sabia se era capaz de pulá-lo, mas era a única saída em que ele podia pensar. Movido pela adrenalina, Everton dá um salto gigantesco e consegui segurar uma mão no topo do muro enquanto a outra segurava o computador. Com a ponta dos pés, ele tenta se empurrar para cima, mas com uma mão ocupada com o laptop ele não conseguiu se segurar na cerca farpada do modo certo e se solta com a mão ferida, caindo de mau jeito no quintal. Uma dor lancinante começa a se irradiar de seu tornozelo, ao mesmo tempo em que os cachorros acorrentados acordavam e latiam para o intruso. Ciente da vulnerabilidade de seu alvo, o homem com a faca de cozinha se aproxima calmamente, lançando sobre ele um olhar frio e inexpressivo. Bem perto, ele aponta a faca para Everton que ainda urrava no chão, segurando seu tornozelo dolorido. Ele olha com os olhos lagrimejando para o homem acima dele e para a faca em suas mãos. Everton estava convencido de que este seria o seu fim. O homem não teria razão para ter piedade dele. Não com alguém que invadiu sua casa e roubou seu computador. Uma pontada de desespero amargo se uniu a dor da contusão e traz a tona o pensamento que estava na anti-sala da mente de Everton, aguardando a oportunidade certa para sair.
- Maníaco – ele disse – Você é um maníaco.
Se o homem se irritou com aquilo, era quase impossível de dizer com certeza. Seu rosto estava parcialmente encoberto pelas sombras, o que fazia dele uma presença tenebrosa e intimidadora, cujos sentimentos não se podiam observar, mas Everton já convivera o suficiente com diversos tipos de pessoas para saber que a raiva pode se manifestar de diferentes formas. Em alguns, ela motivava a agressão e a violência. Em outros, ela instigava o instinto assassino e a crueldade que só a frieza de um espírito maquiavélico era capaz de proporcionar. O homem com a faca se aproxima de Everton que fecha os olhos esperando a facada que acabou não vindo. O homem apenas pega o laptop ao lado de Everton e se ergue novamente.
- Você invade minha casa para roubar e eu que sou o maníaco? – fala o homem. Sua voz sibilou arrastada de sua boca e se uniu ao coro dos latidos dos cachorros que parecia gargalhar na noite. Por alguns instantes, ele esperou uma resposta do invasor a seus pés, mas este permaneceu calado com seus suspiros de dor.
- Você viu as imagens no computador, não foi? Acho que você pegou uma interpretação errada da minha pessoa. Sim, eu mesmo tirei a maioria dessas fotos, caso você tenha se perguntado. E de certo modo fui responsável por uma parte delas. Mas acho maníaco uma palavra forte. Sádico foi o que já me disseram. Sabe o que é sadismo? É quando uma pessoa gosta de ver a outra sofrer.
Everton tentava reagir ao monólogo do homem com indiferença, mas o terror era uma máscara estampada em seu rosto. Jogado na grama úmida perto de ervas daninha no fundo do quintal, ele se apegou à esperança irônica de que alguém chegasse e o levasse para longe dali. Chegava a ser perturbador o quanto ele desejava que aquele homem que encontrou no sofá da sala fosse apenas um dono de casa qualquer e o quanto ele desejava não ter entrado naquela casa. A vontade de gritar por socorro sufocou sua garganta. Ele poderia encontrar forças na dor para chamar por alguém e algum vizinho poderia vir ou chamar a polícia. Mas quem eles ouviriam? Ele foi quem entrou ali para cometer um crime. Ele era o bandido. Apesar disso, a expectativa de ser preso era quase um conforto. Nenhum lugar para onde a polícia o pudesse levar seria pior que está ferido no chão, à mercê de um louco no fundo de um quintal imundo na escura Rua de Henry Street.
- As pessoas podem ser bem estranhas, não é? – o homem continuou a falar como se há muito tempo ansiasse por uma conversa – O que você acha? Eu sou apenas diferente. Não sou uma pessoa de toda má. Sou?
- Por favor... – balbuciou Everton – Por favor... Deixe-me ir embora...
- Ir embora? Por quê? Se nós podemos ficar aqui e nos divertimos um pouco? Eu sei um joguinho. Eu pergunto e você tenta responder. O que acha?
Everton balança a cabeça em negativa.
- Por favor...
- Acho que você não está entendendo – Num movimento rápido o homem risca a faca no braço de Everton e uma tira de sangue aflora em sua pele, escorrendo para a terra. A dor fresca que despontou se sobrepôs a de seu tornozelo e foi a motivação necessária para Everton gritar. Os cachorros na coleira se agitaram, latindo com renovado fôlego.
- Shhhh... Calados – o homem fala para eles. A faca ensangüentada ainda em suas mãos.
Os rottweilers ignoravam as ordens do dono, latindo ferozmente para Everton. Suas patas enormes cavavam a terra, enquanto eles se esforçavam para se soltar das correntes. Para o desagrado do maníaco, os vizinhos não ficariam indiferentes ao grito e aos latidos a noite inteira. Luzes acendiam nas janelas próximas e um burburinho de comentários e reclamações sobre o barulho começava a se acumular nos quartos da vizinhança. Como se os pudesse ouvir, o homem se afasta de Everton.
- Parece que nossa brincadeirinha vai ter que terminar mais cedo. Os vizinhos bisbilhoteiros vão estragar nossa diversão.
Everton quase pode sorrir. Ele nunca tinha imaginado que um dia ficaria contente em ter a atenção dos vizinhos numa noite em que sairia para roubar.
- Sabe, meu caro. Eu lhe contei um pouquinho demais nesse nosso papo. Não sei se eu dormiria tranqüilo com você por aí, podendo a qualquer momento compartilhar essa nossa conversa.
Everton franze o cenho em ar de interrogação. O que aquele homem queria dizer com aquilo?
- Você deve me compreender. Seria muito arriscado para mim. Pessoas como eu não são muito bem vistas.
Everton olha aterrorizado para a faca com seu sangue.
- Oh! Não. Não vou te dar facadas, se é isso o que pensa – o homem fala, percebendo o olhar de Everton – Se a polícia chegar vai pegar mal para o meu lado, mesmo se eu alegar que o matei por legítima defesa. Afinal, você entrou na minha casa para roubar, não foi? Mas não. Eu não encostarei um dedo em você.
O coração de Everton batia forte contra seu peito. Sua respiração vinha com dificuldade e cada parte de seu corpo clamava por uma fuga.
- Por outro lado, um dono de casa não é totalmente responsável pelas ações de seus cães, não é verdade? Principalmente numa noite como esta, em que um estranho entra no território deles. Meus cachorros possuem mordidas muito fortes. Seria trágico se eles ferissem mortalmente um criminoso. Mas o que eu poderia fazer? Para todos os efeitos eu estaria tranquilamente em minha casa, dormindo. – o homem falava, caminhando calmamente pelo quintal em direção aos cachorros que continuavam a rosnar e latir para Everton, apesar de mostrarem contentamento pela proximidade do dono. O homem deixa a faca e o laptop no chão. Ele desliza os seus dedos por uma das correntes e desprende-as da fixação, segurando as suas pontas de modo que só o que impedia de seus cachorros se libertar eram seus braços.
- Não... Não... Por favor – Everton suplica, se arrastando pela grama do quintal, deixando para trás um rastro de sangue.
- Pega!
O homem solta as correntes dos cães deixando os animais correrem livres. As patas poderosas sulcavam a terra enquanto eles avançavam para sua presa. Os olhos cintilavam com fúria à luz da lua e nas mandíbulas potentes os caninos sedentos por morte estavam prontos para dilacerar carne humana.