Herr Doktor

Por Ramon Bacelar

Prólogo:

22:30

…tik-tok, tik-tok, tik-tok…

***

…tik-tok, tik-tok …

23:25

-Tudo pronto crianças? Pronto mes-mo?! Então...

I

O badalar estridente e preciso do relógio de parede, não foi capaz de destronar a ansiedade gélida que reinava absoluta no decrépito estúdio onde Herr Doktor, escorado em um palanque, polindo seu monóculo com saliva e vapor, aguardava impaciente ao epílogo de um sonho: sua Apoteose da Criação.

Tik-tok, tik-tok …

Toc, toc, toc...

Herr Doktor - nariz adunco, tez pálida e lábios finos -despenca o queixo num patético sorriso de boneco desarticulado, quando ouve passos emanando do armário à esquerda. Ajusta a lente, força a visão e tenta, tenta, mas a insistente irrealidade de escuro e fumaça persiste e insiste: ofusca, confunde e adensa.

Toc, toc, toc...

Herr Doktor suspira, lamentaeapaga a piteira, mas agora enxerga órbitas espiraladas numa cabeça de carvalho selecionado, de braços abertos indo ao conforto do abraço paterno. Agora ele ri e bate palmas; ri, sua e gargalha, pedindo às suas crianças uma salva de palmas pelo nascimento do filho caçula.

Clap, clap, clap... Toc, toc, toc…

Herr Doktor sente os sons nos silêncios e espaços vazios; antes ausências mudas, agora cacofonias de sorrisos e palmas: Clap, clap, clap… Ele grita, gesticula e ordena: Os olhos caem e as palmas cessam no mesmo instante que línguas de madeira resvalam em superfícies de lábios rígidos e vernizes de queixos caídos: toc, toc, toc...

Tik-tok, tik-tok, tik-tok...

Herr Doktor acompanha os ponteiros e sincroniza mentalmente a batida das horas ao som oco dos passos; fecha os olhos, toca o peito e afogado em represas de lágrimas, deságua memórias de sonhos, movimentos e articulações: O nascer da ideia, o derrubar da madeira, as noites consumidas em sabedoria oculta e estudos alquímicos. Fecha os punhos e recorda a delicada impressão digital de madeira no nó do carvalho – identidade ainda sem dono –, e a (inexplicável) semelhança com as espirais do seu polegar.

Tik-tok, tik-tok...

Herr Doktor rema, rema e relembra; nada, nada no nada e mergulha mais fundo: O implante das molas, a curvatura da boca, a resina dos olhos, a delicada espiral das pupilas, o coração de arame, madeira e latão; e agora, uma arritmia no peito – Tum-tum, tum-tum, tum-tum... –, lhe mostra o quão preso um pai pode estar às vontades do filho – sua vontade – e como o calor de um abraço mecânico, é capaz de derreter um sentimento de gelo. Abre os olhos, encara o relógio e com um sutil movimento, agradece ao Tempo: “O timing perfeito!”

Clap, clap, clap…

Herr Doktor saúda mais uma vez ao colocá-lo no colo; abre um sorriso, olha-o nos olhos e reflete: “Não seria eu sua Criatura e brinquedomanipulável, tão impotente como um fantoche sem cordas? Não seria você o real, real...”. Ele se perde em conjeturas enquanto acaricia os delicados cabelos - implantados um a um durante incontáveis madrugadas insones -; coloca-o no chão e gesticula uma ordem aos filhos.

Tik-tok, tik-tok...

Herr Doktor consulta as horase observa o abrir de uma cortina rubra: Emanando de um seboso casulo de luz no palanque decrépito, uma forma nua de cabelos loiros e seios fartos, presa ao pescoço por um garrote medieval, se contorce em agonias de desespero mudo. Ele ri e ordena aos rebentos que retornem ao lugar de costume; olha o filho, e antes que o beijo traduza uma ordem paterna, o badalar das 23:45 impulsiona a criança ao Objetivo de Carne.

Toc, toc, toc...

Herr Doktor não se expressa, mas ouve sua chegada na escada decrépita: clop, clop, clop. Observa-o tocar a claridade e com um estalar de dedos, como um mesmerista insano, joga as órbitas de vidro – espirais de abismo - em um frenético girar. Ele ri, ri,ri... Examina o local e encontra um privilegiado ponto de visão.

Tik-tok, tik-tok...

Herr Doktor sabe e mesmo sabendo consulta o relógio: tik-tok: 23:50. Ele olha e acena, o filho entende e reage; estende as mãos e aperta o garrote: O pescoço inflama, ela contorce, ele aperta, a veia reclama. Olha o pai e tira a ata da boca como quem perturba um vespeiro: Gritos ecoam na noite como enxames de dores.

Clap, clap, clap…

Herr Doktor sente as palmas dos filhos intimidarem estridências e berros, mas exaltações de madeira são incapazes de refrear reais agonias de carne: as palmas cessam: os gritos não. O filho ouve, mas não sente. Sabe e reage; gira o pescoço e a enreda em órbitas de sonambulismo e insanidade; ela grita e contorce, mas o magnetismo das órbitas a arremessa em uma espiral de vertigem e sono petrificado: O Silêncio do Silêncio.

Tik-tok, tik-tok...

Herr Doktor, absorto no espetáculo de rigidez e fascinação, não ouve as horas nem compartilha o entusiasmo dos filhos (deleites de outra natureza), mas como todo bom pai, sente um orgulho febril pelo rebento caçula; e ele – curioso como toda criança - agora toca o latejar das pupilas e examina a secura da língua no abismo da boca, contempla as veias pulsantes na pressão do garrote, e sente o inconstante pulsar de arritmias cardíacas: Ela – seu objetivo e Verdade de Carne –, agoniza e vive.

O rebento apalpa o bolso e retira do revestimento de feltro, outra verdade: a Verdade de Metal.

Vuushhh, vuushhh, vuushhh...

Herr Doktor não ouve os silvos no ar viciado, mas entende a linguagem da lâmina; segue o ponto brilhante do fio e observa a ponta de prata perfurar uma pulsante carótida: Splash, splash, splash: Plic, plic, plic: Fiusshhh: Ele corta a couraça, e em meio a jorros e convulsões – a mando do pai - desperta a donzela do torpor sonambúlico. A carne grita e enxameia o estúdio como uma procissão de dores aladas: Vuushhh, Vuushhh: A lâmina ainda perfura e lacera, mas agora o enxame de dor circunda as feridas como suplicantes socorros, penetra nos tímpanos como tormentos sonoros: Vuushhh, vuushhh, vuushhh. O pai acompanha os movimentos da lâmina e – por fim - ouve os ecos dos gritos mergulharem no vazio silencioso: Antes que a faca desprenda do peito, ela responde com o suspiro final.

-Corta! CORTA!!!!

Clap, clap, clap, clap, clap ...

Herr Doktor – abstraído no drama – não compartilha a intensidade das palmas, mas repete o comando mais uma vez, e agora a ordem é cumprida: O brilho dos holofotes e o estalar da claquete anunciam o fim da sessão; ele franze os cenhos gesticulando aos filhos, e eles, como sucatas de servidão demencial, uns em cima dos outros, despencam no imensurável abismo do sono; na escada, o clop-clop dos passos suga a atenção: ele sabe - agora sabe - que o tik-tok das horas anuncia o fim de mais um ensaio mortal.

Epílogo:

…tik-tok, tik-tok…

00:00

Herr Doktor entende o Tempo e sabe que a hora chegou; coloca-o no chão e gesticula a ordem final. O filho atende e segue em direção aos portões; alcança a calçada, atravessa a ponte Lang no Rio Dusseldorf e em meio aos toc-tocs distantes do cambaleante andar inocente, Doktor Mabuse ajusta o monóculo, contempla a constelação Caligari e com a alma em chamas, grita aos céus:

-O espetáculo vai começar!

Toc, toc, toc, toc, toc...

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 05/01/2013
Código do texto: T4068464
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