O Manguezal

Lauro andava pelo cais, rememorando, melancolicamente, os bons tempos que ficaram para trás. A tristeza talhava sua face com cinzéis afiados e cruéis, ao passo que a dor lhe envolvia o corpo como uma couraça, tornando-o um homem duro; impenetrável.

Bem próximo dali, no manguezal, ele viveu os melhores dias de sua vida.

Seus pensamentos voavam longe durante a caminhada, viajavam no tempo, estacionando há vintes anos no passado, quando ele, Lauro, tinha dez anos de idade e Luciano, seu irmão caçula, apenas seis.

Durante o verão eles ocupavam quase todos os seus dias de férias ali, no mangue. Caçavam caranguejo por várias horas ininterruptas. Chegavam entre seis e sete da manhã, na hora que o pai deles saía para o trabalho, e só retornavam para casa, que ficava a menos de um quilômetro, quando a barriga começava a reclamar de fome, o que acontecia só por volta das três da tarde, pois, sempre levavam com eles alguns mantimentos para superarem tantas horas de árdua labuta. No fim do dia eram recompensados. Sempre traziam uma boa quantidade de crustáceos, que eram vendidos na feira do peixe, no mesmo dia à noite. Cada corda de caranguejo, - com quatro caranguejos por corda -, era negociada por três reais. A pesca rendia a eles, todos os dias, de vinte a trinta caranguejos, o que dava uma média de seis cordas por dia. Proporcionando-lhes, no mínimo, dezoito reais. No fim da semana eles obtinham uma bela grana, quase cem reais. A maioria do dinheiro, claro, ficava com Lauro, o mais velho deles, Luciano apenas levava uma ajuda de custo, como Lauro costumava falar. Luciano sempre protestava, chorava e esperneava, dizendo que nunca mais iria com seu irmão caçar caranguejo. No entanto, no outro dia, no mesmo horário, lá estava Luciano enfiado em suas botas plásticas amarelas, com um enorme chapéu de palha socado em sua cabeça, que só deixava a mostra uma pequena parte de seus olhos negros e miúdos, e vestindo sua surrada roupa de pescador. Lauro sempre continha uma gargalhada ao vê-lo daquele jeito. As velhas botas, que eram de Lauro, chegavam quase na sua virilha e era improvável que ele pudesse andar, mas, ele andava, e com desenvoltura. O que mais divertia Lauro era o porte de seu pequenino irmão. Do alto dos seus um metro e cinco de altura ele mantinha uma nobreza de rei, sua seriedade era de um severo e bem sucedido empresário. Ele levava aquilo muito a sério, ele queria comprar sua bicicleta com o dinheiro que ganhava - Jamais realizou esse sonho. E era exatamente essa obstinação e integridade que não deixavam que Lauro zombasse dele. Lauro se aproximava do seu irmão caçula e dizia:

- Então meu pequeno marujo, preparado para mais um dia de batalha. E Luciano respondia:

- Sim meu capitão. E batia uma desajeitada continência.

Nesse mesmo verão, há duas décadas, Luciano desapareceu. Lauro degusta, até hoje, o gosto de fel da culpa. O acre sabor do arrependimento.

Naquela manhã fatídica, Lauro amanheceu febril e não se levantou para ir pescar. Luciano foi até o quarto do irmão e o encontrou deitado na cama, com o corpo todo coberto com uma grossa manta e, ainda assim, com muito frio.

- Lauro, está na hora de irmos pescar, papai já saiu, levanta logo.

- Eu estou doente seu cara de merda, não percebeu?

- Eu não sou cara de merda não!

- É sim. Um tremendo cara de bosta, a bosta mais fedida que eu já senti.

- Sou nada, você que é um cara de peido! Os dois se olharam e caíram na gargalhada.

- Que algazarra é essa à uma hora dessas da manhã? Calem suas matracas, já! Gritou a mãe deles da porta da cozinha. Eles taparam a boca com as mãos e continuaram rindo, desta vez muito mais intensamente, só que de forma abafada.

Aqueles xingamentos só eram uma forma, pouco comum, de demonstrarem o amor que sentiam um pelo outro. Lauro pediu que ele chegasse mais perto da cama e ajeitou o chapelão que cobria metade do rosto de Luciano.

- Infelizmente hoje não vai dar para ir. Estou muito fraco, não vou conseguir pescar desse jeito.

- Poxa Luciano, você tem que ir, está faltando muito pouco pra eu conseguir comprar aquela bicicleta que seu Tatu está vendendo. Seu Tatu era o dono de uma pequena bicicleteria na esquina da rua que eles moravam. A bicicleta em questão era uma enorme barra forte vermelha, já usada e precisando de uns bons ajustes, entretanto, era o sonho de consumo de Luciano. Ele parecia uma formiga em cima de um elefante rubro, quando andava naquela bicicleta. Ele já tinha dado muitas voltas com ela. Tanto insistiu com seu Tatu, que acabou conseguindo pedalar a sua futura magrela, como ele mesmo se referia a ela.

- Porra Luciano, não tá vendo que eu estou com febre, como é que você acha que eu poderei caçar?

- Sei lá maninho. Dá um jeito. Toma aquele remédio ruim que mamãe me dá quando estou doente. Ele é muito amargo, mas fico logo bom quando tomo ele. Vou chamar mamãe. E ia saindo impetuosamente quando Lauro, já sem nenhuma paciência, gritou.

- SEU BOSTINHA VOLTE AQUI, AGORA! Luciano deu um pulo de medo e voltou rapidinho para junto da cama do irmão. Lauro continuou, com um sorriso satisfeito nos lábios, devido ao susto que Luciano tomou:

- Olhe bem pra mim, com muita atenção. Mamãe já esteve aqui e já me deu o remédio, mas, eu só poderei ir pescar amanhã ou depois de amanhã. Compreende? Luciano balançou sua cabeça afirmativamente, e a aba do seu chapéu por pouco não roça o nariz do irmão. Lauro emendou:

- Não se preocupe com sua bicicleta, se, por acaso, não conseguirmos pescar durante a semana, eu prometo que completo o dinheiro que falta para comprar sua bicicleta. Está bem assim? Luciano, novamente, balançou a cabeça confirmando. De repente, levantou seus olhos para o irmão mais velho e falou com entusiasmo.

- Hei Lauro, e se eu fosse pescar sozinho?

- Nem pense nisso, seu merdinha.

- Mas, eu consigo fazer sozinho, tenho certeza disso. Eu aprendi com você, o melhor de todos. Eu vou lá e volto rapidinho, pego só o suficiente pra inteirar o que falta.

- Não! Está me ouvindo, Luciano. É muito perigoso. Não vá!

- Está bem, eu não vou. Respondeu Luciano. Contudo, ele foi e nunca mais voltou. Suas botas amarelas foram encontradas há dois quilômetros de onde eles pescavam, numa região muito pantanosa. O corpo dele nunca foi encontrado.

Lauro jamais voltou ao local de suas aventuras de férias. Seu estômago embrulhava só de passar por perto daquele lugar. Porém, hoje, uma força incontrolável o levou até ali. Algo sem explicação movimentou suas pernas na direção do cais. Ele caminhava absorto, como se estivesse sonâmbulo, acometido de um transe. Eram três e meia da madrugada. O cais estava movimentado, o burburinho do entra e sai de mercadorias e pessoas era caótico. O cheiro dos pescados, mariscos e frutos do mar inundavam o velho porto.

Lauro distanciou-se da confusão de vozes e se direcionou para o mangue. À medida que se afastava do cais, mais silencioso e escuro ficava. Ele seguia pela estreita calçada feita de tábuas, bem na beira do estuário, no encontro do rio com o mar. A cada passo, a madeira envelhecida rangia sob seus pés. Depois de um longo tempo andando, chegou à escadaria que levava a prainha, de onde não se ouvia mais nenhum som vindo da feira dos peixes. Somente o assobio melodioso do vento, vindo do mar, podia ser escutado. Estranhamente, pelo horário, já deveria estar amanhecendo. No entanto, nenhuma luz iluminava aquele lugar. Ao contrário disso, a escuridão tornava-se cada vez mais intensa à medida que o manguezal se aproximava.

O forte cheiro de enxofre, característico dos manguezais, entranhava-se pelas narinas de Lauro, trazendo muitas lembranças infantis, que caíram sobre ele como uma caudalosa queda d’água, banhando-o de saudade e aflição. O solo pobre em oxigênio, embora rico em nutrientes, é a resposta para o cheiro de ovo podre dos manguezais. As bactérias usam o enxofre, pela falta do oxigênio, no processo de decomposição dos resíduos. Daí é que vem o pestilento odor destes ricos ecossistemas. O manguezal era composto pela vegetação de mangue-vermelho ou rhizophora mangle, também chamado de sapateiro. As cascas destas árvores, quando raspadas, mostram uma intensa coloração avermelhada. O solo é lodoso e, em muitos lugares, a lama poderia cobrir um adulto por inteiro.

Lauro foi se embrenhando por dentro da mata de árvores tortas e raízes envergadas, que surgiam de dentro da lama, como espetos voltados para o céu. A pouca iluminação fazia que ele, de quando em quando, tropeçasse em tocos fincados no pantanoso solo e se arranhasse em finos galhos espalhados por toda parte. Seus pés, calçados em caros sapatos, afundavam até a altura do tornozelo.

De súbito, seus olhos foram atraídos para uma iluminação a poucos metros a sua frente. Era a luz de um candeeiro. Sua abstração, que o acompanhava ate ali, foi quebrada, e ele pode ver, com muita convicção, a sombra de uma pequena figura que segurava uma espécie de lamparina. A sombra se agachava e enfiava seus braços dentro de buracos no solo. Ele conhecia muito bem aquele movimento, era, sem dúvida, um caçador de caranguejos, um marisqueiro.

As pernas de Lauro encontravam-se atoladas até a canela. Seus movimentos eram lentos e desajeitados. Com muito esforço ele conseguiu se aproximar do pequeno pescador. Apertou bem os olhos tentando sugar o máximo de luz possível e, descobriu, que o caçador, na verdade, era uma criança. Uma criança com uma fisionomia muito conhecida. Contudo, ele não sabia onde poderia ter conhecido aquele menino. Há muito tempo ele não pescava ou sequer tocava no assunto. Então, como ele poderia conhecer aquele jovem marisqueiro? Não fazia sentido.

Ele agora estava a poucos passos do garoto. Para seu espanto o menino falou com ele antes que pudesse abrir a boca.

- Lauro, por que demorou tanto? Lauro ficou petrificado. Aquela voz era de seu irmão Luciano. “Não pode ser, essa voz... Não, isso é loucura, Luciano está morto há vinte anos, devo estar tendo algum pesadelo”.

- Você não está sonhando não, meu irmão. Sou eu mesmo, o Luciano. A pequena figura do menino, envolto nas sombras do manguezal, se virou lentamente na direção de Lauro. Lauro tentou dar um passo para trás, mas, foi impedido pelos pés presos na lama acinzentada do terreno e caiu de costas. Suas duas mãos, na tentativa de apoiar a queda, deslizaram maciamente para dentro do lodaçal, até os cotovelos. Nesta hora, galhos e raízes das árvores do mangue correram como serpentes, deslizando em silêncio pela lama que cobria o lugar, e envolveram seus braços e pernas, num forte aperto, prendendo-o no solo. Todos os seus movimentos estavam tolhidos por aquelas amarras. Lauro tentou gritar mais não conseguiu. Seu coração ribombava no seu peito. Estava com uma sensação de ser engolido, tragado. Como se o chão se abrisse ele estivesse caindo, caindo... O medo apossou-se dele de forma definitiva; implacável. “Deus do céu, o que está acontecendo? Isso não pode ser verdade, eu tenho que me acalmar, tenho que me acalmar...”.

- Isso mesmo maninho se acalme. Sou eu, Luciano, seu irmãozinho. Não tenha medo de mim. E a pequena sombra do menino levantou o candeeiro iluminando seu rosto com uma mortiça luz. O rosto estava deformado, várias partes de suas faces estavam com pedaços arrancados, mostrando músculos e ossos, metade de seu nariz encontrava-se carcomido, seus dentes apodreceram, e o que se via era uma fileira amarronzada de pequenos tocos calcificados. Eles eram pontiagudos, com se tivessem sidos afiados. Os olhos eram de uma brancura pastosa e assustadora. Deles escorriam uma massa esbranquiçada, de textura gelatinosa, que desciam pelo rosto em forma de lágrimas endurecidas.

- Não tenha medo meu querido irmão. A voz desta vez saiu demoniacamente sibilante e fria. Uma gargalhada monstruosa saiu daquela criatura diabólica. Lauro se debateu com todas as suas forças, na tentativa de se soltar dos galhos que o prendiam. Com muito esforço desvencilhou sua mão direita das raízes que a prendiam, e quando tentava desamarrar a esquerda, outros galhos e raízes correram e seguraram sua mão, amarrando-o de novo. Desta vez, entrelaçando-se por todo o corpo de Lauro. Pernas, braços, cabeça e tronco foram imobilizados. Agora ele estava deitado no chão. Luciano aproximou-se de Lauro e falou:

- há muito tempo eu estou esperando você aqui meu irmão. Você me abandonou, nunca mais veio até aqui. Mas eu sabia que um dia agente se encontrava. Não estava com saudade de mim, maninho? E outra medonha gaitada estrondou pelo mangue. Lauro não conseguia falar, estava com uma grossa raiz tapando sua boca. Ele apenas grunhia coisas ininteligíveis. Luciano se abaixou e ficou ajoelhado em frente ao rosto do irmão, baixou a cabeça e encostou seus pardacentos lábios no rosto assustado de Lauro, dando-lhe um gelado beijo. Levantou-se e inclinou-se, muitas vezes, cheio de mesura, a todas as partes do pantanoso lugar, como se estivesse reverenciando algum mestre, alguma entidade maior; o mangue.

Lentamente Lauro deslizou para o interior daquela lama repugnante e apodrecida. Muito lentamente ele foi desaparecendo, enquanto Luciano o olhava embevecido. Poucos minutos depois, Lauro tinha sido completamente deglutido, para o estômago faminto, daquele extraordinário mangue. No tempo em que Luciano, agradecia por ter seu irmão de novo por perto, para poderem caçar caranguejos por toda a eternidade.

J. A. COSTA, 26/12/2012 às 17:18