A Mulher de Branco
 
            Lendas existem em comum por várias partes do mundo. Algumas histórias são contadas e recontadas, desde uma vila na Ásia até uma metrópole na Europa tendo um fio único que nos leva a questionar: será mesmo uma lenda?
            Uma das mais conhecidas é a da Mulher de Branco, que possui inúmeras variações. Falam de uma mulher que morreu de amor, esperando o noivo que nunca voltou da guerra, e que por isso, graças ao desgosto, vaga entre os dois mundos não pertencendo a nenhum. Dizem também que são esposas, traídas, que no auge do desgosto mataram a prole e depois se mataram, tendo assumido a forma de almas penadas que tragam para o inferno outros maridos infiéis.
            Seja com for, na minha carreira de investigador paranormal, recebi um alerta desses e encaminhei-me a uma cidadezinha no Sul do Mato Grosso para investigar a ocorrência. Diziam que, sempre à meia-noite, uma mulher de branco aparecia na praça principal, na frente da Igreja, indo em direção à mesma sumindo no ar. Munido dos meus costumeiros apetrechos: uma câmera Kodak, que devido a um defeito de fabricação, permitia a entrada de uma certa camada de luz podendo tirar fotos praticamente em completa escuridão, fazendo com que miasmas e espectros pudessem ser identificados, um medidor de radiações sutis que adaptei em um contador de radiação e um pequeno microfone, acoplado a uma caixa de som sendo gravados ruídos em uma faixa que costumava repetir diante de um filtro no computador, procurando surpreender vozes do além.
            Nem sempre todos podiam ser usados. Algumas aparições são extremamente rápidas, fugidias, fazendo com que precisemos de uma habilidade especial para identificarmos e nos cientificarmos.
            Não atendo, também, a todos os chamados, por questão de tempo e praticidade. O trabalho não é uma profissão, mas um tipo de fetiche ou um passatempo, como queiram, mas eu o levo muito a sério. Neste caso, o que chamou minha atenção foi a convocação vinda de uma fonte segura. Recebi um email do Padre da Pastoral local, um antigo colega do ensino médico que ingressara naquela carreira. Surpreendeu-me, pois quando estudávamos era um namorador.
            Chegando à cidade, quase ao cair da tarde, dentro de um tempo nublado, fui por ele recebido na sacristia. Conversamos um pouco sobre os velhos tempos. Depois, entrou no assunto que para ele era delicado. Afinal, como sacerdote, tinha primazia sobre questões espirituais.
            - Por que não chamou alguns dos seus? A Igreja tem ótimos investigadores.
            - Por que não quero chamar atenção sobre o fato, e sei o quanto você é discreto. Quero apenas que confirme e descubra o que ela quer de mim.
            - De você? – Perguntei atônito.
            - Sim. Creio que a questão é comigo. – Dizia aquilo de modo engasgado, sendo quase uma confissão reversa. Ele sabia da minha falta de fé em questões religiosas. A meu ver, o que investigava era algo científico, sendo os espectros emanações do subconsciente, uma espécie de projeção energética pós-morte, que associada ao desejo dos vivos de reparar algo, ou de limpar suas consciências, poderia projetar nas telas invisíveis do mundo suas pretensões mais obscuras. Quando o desejo de uma consciência falecida, associava-se ao de um vivo, ter-se-ia a possibilidade de nascer uma projeção. Era como se lançássemos um projetor contra uma neblina. A imagem não fica clara, mas podemos ver as fotos em alguns momentos.
            Todos temos esse dom de projetar nossos sofrimentos, angústias, receios e decepções. Unindo o equipamento à condição psíquica necessária, tínhamos a projeção psíquica.
            Depois de alguns minutos, ele continuou:
            - Sei que, o que te disser, ficará entre nós. – Acenei positivamente com a cabeça. Tomando um café, que também me servira, seguiu cauteloso.
            - Antes de me ordenar, tive um relacionamento intenso com uma linda jovem. Ela acreditava que nos casaríamos, mas eu já sentira o apelo da vocação e procurei romper da melhor forma possível. Foi dramático. Ela estava muito apaixonada e, para piorar, disse que carregava um filho meu...
            Sorvi um gole intenso de café, ao que prosseguiu:
            - Disse-lhe que não podia ser. Dar-lhe-ia apoio. Cuidaria do filho, mas minha vida não poderia ser a de um homem casado. Nisso, fugindo apavorada, como uma forma de atingir-me, cometeu o duplo crime lançando-se de uma ponte...
            Fiquei atônito. Sabendo que não lhe faria bem continuar, perguntei quando costumava ela aparecer.
            - Daqui há pouco ela surge do outro lado, na calçada da praça em frente. Caminha atravessando a rua e começa a bater na porta da Igreja querendo entrar.
            - Mais alguém a vê?
            - Todo mundo na cidade, mas têm medo e, a essa hora, todos já devem estar trancados em casa tremendo e rezando. Essa situação precisa ser resolvida logo, ou poderei ser, caso meus superiores descubram a questão e investiguem, afastado dessa localidade que tanto amo. Ademais, sei que seja para onde for, ela me perseguirá.
            Nisso ele estava certo. Era preciso limpar o seu psiquismo, sua culpa interior, para que tudo se resolvesse a contento.
            - Faça o seguinte. Nesta noite, quando ela bater, abra a porta e deixe-a entrar.
            - Como? Aqui? Na Casa de Deus?
            - Justamente por isso. Quem sabe se você e ela não se perdoam mutuamente?
            - Não sei, apesar de tudo... Tenho medo.
            - Estarei por perto. Tudo dará certo...
            Pouco antes da meia-noite, já montara meus apetrechos. Deixei o gravador dentro do recinto. Posicionei a câmera em um tripé para dispara automaticamente quando acionasse por controle remoto e mantive o medidor de radiação comigo.
            Fiquei do lado de fora para observar, tendo a câmera bem posicionada em uma posição mais afastada para pegar tudo. Uma espécie de neblina, incomum, desceu, mas não cobria tudo, pairava a poucos metros do solo. Não demorou e, para meu espanto, a forma tênue de uma mulher veio caminhando do interior da praça. É impossível não se emocionar. As ruas desertas e o povo acuado, com medo. A cidade angariava o aspecto de um lugar maldito. A mulher, ignorando-me, avançava deslizando. Seu aspecto era de sofrimento e sua beleza, apesar da cor azulada de morte, encantava. Aproximando-se da porta, bateu três vezes.
            Meu amigo, de modo relutante, abriu e afastou-se andando de costas em direção ao altar. A forma psíquica deteve-se, observou por um instante e seguiu adentrando. O contador dava saltos, juntamente com meu coração. Segui-a mantendo prudente distância. Chegando ao altar, diante dos primeiros degraus, terminou ficando sentado, estupefato. A mulher, calmamente, não tendo pés visíveis, aproximou-se abaixando-se enquanto dizia claramente:
            - Meu amor, por que me abandonou?
            - Não fui eu. Foi você quem partiu...
            - Sinto, ainda, nosso filho dentro de mim querendo sair.
            Sem ação, ele encarou-me. Tive que intervir:
            - Mande-a libertá-lo!
            - Traga-o para nós... – Disse ele. A mulher, virando-se de costas, deitando-se sobre ele, começou a gritar, como se nas dores de um parto. Seu abdome cresceu rapidamente e, em poucos segundos, podíamos vê-la dando à luz a um bebê etéreo. A pequena forma da criança iluminada, como se carregada por mãos invisíveis, saiu-lhe indo ser depositada sobre os seus braços. Os três resplandeciam diante de uma claridade que eu não compreendia. Arrependi-me de ter deixado a câmera fotografando apenas o exterior. Preciso deixar de economia e ter mais de uma.
            Logo, vi-a, com o bebê nos braços, aproximando seus lábios dos dele e trocaram um longo beijo. Sua forma foi-se diluindo e, em pouco, tínhamos apenas o meu amigo na escada, em prantos sentidos. Chegando próximo, vi que tinha às mãos duas rosas: uma branca e outra vermelha que, após algum tempo, recompondo-se, depositou sobre o altar...
            O tempo passou e, anos depois, soube da fama que a Igreja do meu amigo adquirira. Havia duas rosas sobre o altar, que segundo o povo, jamais apodreciam, emanando um aroma de irresistível beleza com poderes de cura. Fiquei pensando na potência desconhecida da mente humana para alterar a realidade ao criar quadros e gerar eventos que, sem o necessário olhar cético, parecem pairar além da nossa imaginação...