A Sinfonia Estranha
Surgira-me durante aquela madrugada fria e chuvosa e disse-me que era um compositor de música clássica do século XIX. Falou-me ainda que, incluindo-se dentro do Romantismo musical típico da época, criou um grande número de obras, mas jamais obteve êxito ou qualquer tipo de reconhecimento por parte do publico, a não ser por um pequeno grupo de admiradores incondicionais. Tanto é que a posteridade não registra seu nome, a não ser em antigas e minuciosas enciclopédias musicais e, mesmo assim, é citado em um pé de página, não perfazendo ao todo quatro linhas. Nascera na Alemanha, em Leipzig, no ano de 1826, e falecera na mesma cidade, em 1875, aos 49 anos. Chamava-se Matthäus Sturm.
Contou-me que criara concertos, para piano e para violino, inúmeras sonatas para piano e para outros instrumentos, obras de câmara, principalmente trios e quartetos, poemas sinfônicos, algumas missas e oratórios, uma infinidade de lieder e uma sinfonia. Esta, disse-me que escrevera um pouco antes de sua morte, sendo sua última obra, e que nela colocara “toda a sua alma”, pronunciando essa última palavra de forma intensa e misteriosa. Em seguida, deu-me um CD, do qual afirmava conter sua única sinfonia. O CD, sobre cuja gravação não recebi nenhuma informação do músico, era belamente encartado, apresentando na capa o enigmático e bizarro quadro “Concerto em um Ovo”, de Bosch. Não havia indicação alguma de ano ou local de origem, nem mesmo eram mencionados o nome da orquestra, do regente e da gravadora. As únicas informações eram da própria obra, intitulada “Grande Sinfonia em dó menor, opus 139”. Dividia-se nos tradicionais quatro movimentos, com as seguintes designações e respectivas durações: Appassionato (24:32); Adagio misterioso (22:17); Prestissimo (10:28) e Finale: grandioso (23:43), totalizando a sinfonia exatos 81 minutos.
Despedindo-se, o enigmático compositor ainda acrescentou que considerava a sinfonia como, de longe, a melhor e mais profunda de suas obras, única em que conseguiu expressar de forma íntegra a sua genialidade, mas que não teve tempo de publicá-la, uma vez que a morte o levou. Esclareceu também que jamais alguém na Terra ouviu tal obra, pois sua partitura nunca foi encontrada. Já abrindo a porta por onde entrara, para mergulhar novamente na sombria noite invernal, murmurou gravemente: “Tu serás o primeiro a escutá-la”. E partiu. Esclareço que tudo que narrou o misterioso músico foi no idioma alemão, o qual, na época, eu já havia dominado de forma satisfatória.
Desnecessário dizer que meu primeiro ato após a saída do compositor foi colocar o CD no som, apagar as luzes, sentar-me confortavelmente e buscar a maior concentração possível para escutar tão curiosa e absurda obra. E a partir de agora, portanto, tentarei descrever o indescritível. O que ouvi, senti, vi, presenciei, vivenciei sob influência daquela música necessito deixar nestas linhas.
Já no princípio da sinfonia, percebi a estranheza de suas notas. Era algo com a nítida base do Romantismo do século XIX, era uma sinfonia romântica, porém, ao mesmo tempo, soava diferente de todo e qualquer tipo de música já por mim ouvida, com uma intensidade melódica e veemência rítmica verdadeiramente inauditas. Mas o mais espantoso era que as notas da obra incutiam-me uma estranha certeza de que dentro de meu espírito existia uma chama divina capaz de tornar-me um deus. E essa chama eu senti inflamar-se, ao mesmo tempo que o cenário do meu quarto transfigurava-se assombrosamente. Tanto que, ao meu ver, já não era meu quarto, mas regiões ignotas por onde eu viajava atônito, lugares imateriais do universo infinito. Eram alturas vertiginosas, montes cobertos por sombrias florestas como as de um conto de fadas, onde eu avistava seres com os mais absurdos e mágicos aspectos, habitantes do inconsciente coletivo humano. Subia colinas e montanhas carregado por anjos imensos com brilhantes armaduras romanas; sobrevoava infernos sobre outros infernos, habitados por diabos e monstros de um horror tão inconcebível que fui obrigado a virar o rosto. Simultaneamente, sentia alcançar a máxima felicidade e sofrer toda a dor do cosmos. Jamais poderia enumerar todas as espécies de emoções e sentimentos que me assaltava, nem teria a palavra exata para defini-los. Simplesmente, eu sentia tudo, tudo o que é permitido a um homem sentir, ou talvez ainda mais.
Em êxtase, eu amava, amava a todos humanos, a todos os seres. E amava ainda mais aquela mulher, não em um amor sexual, mas como quem amava uma deusa, um ser nascido do mais esplêndido sonho, que, em beijos e ternuras inefáveis, fez com que eu vivesse a mais marcante e inesquecível sensação de minha vida. Caminhávamos por entre flores multicoloridas e impregnadas de paradisíacos aromas, por campos infindos, observados por miríades de animais de vários cantos do planeta. Dentro de mim somente havia um incêndio vulcânico avassalador.
E a Sinfonia estranha, então, passou a carregar-me por outros absurdos inimagináveis, regiões insondáveis habitadas pelos deuses, criaturas, elementais e demais seres inverossímeis das mais exacerbadas mitologias, enquanto uma tempestade de sentimentos e sensações sublimava-me e torturava-me incessantemente. Tive a terrível impressão de que meu peito iria explodir devido ao extremo fervilhar de meu mundo emocional, que em turbilhões fazia-me ascender aos céus e cair em infernos dentro de mínimos segundos. Sei que estive a um passo da morte, porque estive a um passo de viver toda a vida, de compreender todas as filosofias, todas as ciências, todas as religiões. A um passo de todas as verdades, de conhecer o mais intimo segredo do homem, o mais oculto arcano do cosmo, o mais profundo mistério de Deus, o enigma da morte, o porquê do amor...
O amor era toda a minha existência, o universo em que vivia imerso, na compreensão de todo o mal da humanidade. E eu vivenciava extraordinárias batalhas, guerras apocalípticas entre arcanjos e demônios, colossais derramamentos de sangue, explosões atômicas, vislumbrava exércitos de todas as formas e com todas as armas, humanos, extraterrenos, sobrenaturais, em lutas intermináveis, armagedônicas, titânicas, em cataclismas absolutos. Era o fim e o recomeço de todos os elementos universais.
Eu carregava nas minhas costas a dor de todos os seres, e tinha forças para fazê-lo, dramático, vibrante, vitorioso, inatingível, amando incondicionalmente em meio à luz, soberano pela terra, conhecedor de tudo, mestre e senhor de todas as hierarquias e potestades, livre de tudo e de todos, absolutamente liberto e triunfante, tendo sempre a meu lado aqueles olhos puros... Enfim, eu era um deus! Um Deus!
Porém, a Sinfonia acabou. Estupefato, estarrecido, em estado de choque, eu deixei meu quarto e, como um sonâmbulo boquiaberto, dirigi-me à sala. Sentei-me no sofá, gotejando lágrimas pus as mãos no rosto. Não, eu não era um deus. Era um reles humano e voltava à minha miséria. Sem arte compreendi que não sou nada, não tenho nada, nada, muito menos o amor... Após o sublime vôo da arte, a queda brutal sobre a terra... E eu me perguntava o porquê, o fantástico porquê, o massacrante porquê...