Zuuuimm...Zuuuimm, ou o dia que Jorge surtou

Por Ramon Bacelar

[-Mas que coisa.

-Nem fala.

-Desumano.

-Cruel.

-Inumano.

-Nem dormindo ele nos deixa em paz.

-Não passa de um assassino.

-Serial... Frio e calculista.

-Na verdade... Na verdade...

-Olha só que sangueira danada.... Adeus amiga!

-E tudo que ela queria era um pouco de comida. Nem ia lhe fazer falta assim.

-A natureza humana é incompreensível. Um psicopata egoísta.

- Não vai ficar assim não.

-Não mesmo.

-Então? – encarou a companheira.

-Você começa pela orelha. Eu pelo pé... Na verdade na área interna, no dedo mindinho abaixo daquela frieira nojenta.

-E o odor?

-Faço qualquer coisa para... para... – olhou a irmã ensaguentada estrebuchar uma última vez.

-Vamos?

-Avante!]

Não era a primeira vez que Jorge acordava no meio da noite com um insistente zumbido de muriçoca no pé do ouvido, nem a primeira vez que jurava a si mesmo ignorá-las, mas certamente nunca lhe ocorrera um ataque simultâneo com tamanha subtaneidade: Assomado ao zunir e uma velha coceira no dedão do pé, uma nova agora latejava no mindinho.

-Merda. – disse a si mesmo quando sentiu a gosma pegajosa do seu último homicídio, abaixo do peito.

-Merda, digo eu; nem pra dormir você presta seu inútil! – esbravejou a esposa ao lado.

-Não ouviu?

-Você estava sonhando alto.

-Não sentiu?

- O quê?

-Quer dizer que só eu tenho sangue doce?

-Doce? – gargalhou. - Sangue de barata... Imprestável. Vê se amanhã arranja um maldito emprego.

-Você sabe...

-Tô com sono, me deixa dormir!

Nestas horas se sentia um Zé Mané abaixo de plâncton: Inseto solitário, sem asas nem senso de direcionamento.

[-Tá vendo? Se nem ela o suporta?

-Pois é.

-Vingados?

-Por ora, sim.

-Me deu uma soneca depois dessa comilança.

-Vamos dormir.

-Boa noite.

-Boa...]

Jorge fechou os olhos, e mesmo sem esquecer, mergulhou em um sono sem sonhos.

***

O sol começava a raiar quando levantou para tirar a água do joelho; ao seu redor os mesmos zumbidos ainda o perseguiam como insistências sonoras. Girou o pescoço e contemplou a esposa, perdida em um sono angelical. Seios fartos e pernas bem torneadas despertaram memórias aparentemente extintas; queria aproximar e conversar como da primeira vez que a viu no supermercado; ela, sorridente segurando uma cesta de frutas e ele, lascado de mordida dos pés à cabeça, comprando veneno, repelente e uma raquete elétrica.

Balançou a cabeça tentando não querer, mas não se conteve: examinou a curvatura das coxas e deleitou-se na delicada feitura das unhas e alvura da pele ao redor da virilha, livre de pintas, manchas e mordidas; tomou coragem e beijou o joelho, porém antes de outro afago, uma onda de medo irracional o possuiu: ultimamente Ângela só abria as pernas para fazer xixi e dar as boas vindas ao novo personal trainer. Lamentou-se e saudou uma novíssima picada – a única que ele, ultimamente, estava familiarizado - com uma brusca coçada no saco.

“Ai, merda... Minha esposa só é bonita dormindo.”, concluiu melancolicamente para si mesmo, antes de ir ao banheiro.

Sentou-se no vaso sonolentamente; para sua surpresa, não conseguiu ler a Mad nem a última X-Men; suspirou e pôs-se a meditar serenamente: por alguma razão, o silêncio sepulcral, assomado à monotonia monocromática de azulejos e rejuntes, lhe trouxeram uma repentina paz de espírito; sua mente, antes povoada por desejos, zumbidos e virilhas alvas, agora se satisfazia com a ideia de uma apaziguadora quietude, perturbada apenas por nauseabundos tibloft-blums ecoando da latrina carcomida: o tempo, sem saber o que fazer, com seu paciente andar inocente, simplesmente passou...

-...ei, ei,...Tá surdo, Jorge?!

O som da descarga abafou momentaneamente as imprecações do outro lado da porta; ela continuou.

-Está passando fax, Wolverine?

-Como? – bocejou.

-Ainda cortando o rabo do King Kong?! – esmurrou a porta - É pra hoje!!

-Estou indo amorzinho!

-Coisa nenhuma... Quem está indo sou eu. Se chegar atrasada no trabalho tu me paga!

-Tá bom...

Deu-lhe passagem antes de abotoar o pijama. Deitou-se na cama fingindo um décimo sono e aguardou sua saída.

-É agora ou nunca! - desabafou quando concluiu que a hora tinha chegado. Não mais viveria deste jeito. Da última vez que borrifou veneno na casa, Ângela acabou no hospital; mas agor,a se não tomasse providências...

-Gosto dessa sapequinha, mas, mas,... é ela... ai! – coçou o traseiro pensando alto - ... ou eu, ui! – berrou entusiasticamente quando se viu inundado por ondas de confiança e auto-estima.

[-Hehehe...

-Hihihi...

-Huhuhu...

-Viu?

-Claro.

-Que imbecil!

-Pode crer. A gostosona tá pintando e bordando.

-Trabalhadora.

-Mucho...Mucho...- bateu as asinhas ironicamente - ...mas é bom ficar de olho.

-Quê?

-Você não viu como ele nos encarou quando coçou a rede de esgoto?

-Vi sim.

-Olha só o que aconteceu com tua irmã. Aquele tapa no peito foi de uma frieza ímpar.

-Seu último estrebuchar não me sai da mente; irmãzinha querida. – suspirou com lágrimas nos olhos.

-Faço minha a sua dor. – consolou-a com um bater de asas - Ele não vai sossegar enquanto não nos exterminar.

-Nossa vida já é dura e curta... Mas abandonar a existência deste jeito. – lamentou contemplando um imaginário firmamento estrelado. - Esse molão; frouxo fracassado duma...

-Não se iluda. – interrompeu. – Aquele jeito inocente e o cuecão do Seu Madruga não passam de mera fachada; por trás do olhar abobalhado e aquele sorriso xoxo se esconde um verdadeiro... Como é mesmo o nome daquele cara da TV?

-Dexter.

-Não, não... Esse é do bem.

-Freddy Krueger.

-Hollywoodeano e glamourizado demais; só podia existir em ficção mesmo. – questionou pensativamente - Aquele outro, realista e assustador.

-Qual? - meditou. - -Hannibal?

-Lecter! Isso, isso! – suspirou antes de continuar. – O olhar vazio e distante, a timidez; o comportamento obsessivo. - encarou o pôster do Norman Bates ao lado da janela e zuniu de medo. – De bobo não tem nada; lembra como ele gritava o nome da mãe naquele pesadelo da semana passada?

-Sim, sem mencionar que outro dia quase mata a esposa com aquele veneno fedorento... Não fosse nossa fuga estratégica, estaríamos fodi... – pausou engolindo seco. - Um grandessíssimo idiota por um lado; mas por outro...

-Perigoso – disse tensa. –... Pe-ri-go-... Ouviu? Ele acabou de bater a porta da cozinha; deve estar indo para a despensa da garagem... Como daquela vez!

-Só pode ser... Meu Deus! – o silêncio que se seguiu denunciou mais que escondeu.

- E agora?!

-Debaixo da cama.

-Tá louca! Tem um penico esmaltado recendendo à...

-Isso mesmo meu caro Watson! Não sacou? Ele não o usa desde a última vez que o encanador consertou a descarga e deu um trato na ‘área de lazer’ da gostosilda. O último lugar que ele borrifaria...

-Sem mais delongas...

-Tampe o nariz.

-Quê?

-Avante!]

“Você não sabe a força quê tem meu caro Jorgão... Até que a pressão das circunstâncias lhe mostre o quão... quão...”

Jorge filosofava sua inútil filosofia de boteco, enquanto misturava os venenos no borrifador: duas partes iguais de creolina e citronela, diluídas em um antigo composto herdado de sua avó, liberavam um odor semelhante à peido de gambá embebido em amoníaco líquido. Ajeitou a máscara antes de fixar a tampa, mas o composto lhe ardia na face como um visgo de pimenta. Trancou a garagem, banhou-se de Repelex e empunhou o borrifador como um acólito do grande Cthulhu: Sentia-se o novo messias.

Examinou a sala e começou pelo tapete.

[-Eu avisei para não destampar o nariz.

-E eu achando que esses pontinhos na borda esmaltada eram cocô de mosquito! - esbravejou com um zumbido anasalado e rabugento.

-Não reclame de barriga cheia. Este penico é nossa última fortaleza terrestre.

-E se ele vier?

-Não se preocupe...- balançou a cabeça. - Ele virá. Reze ou feche o bico de vez.]

Fuusshh, fuushh, fuushh...

Jorge dedetizava o recinto com a precisão de um relógio suíço; persianas, soalhos, cantos e frestas... Nada escapava ao abraço homicida e brutal sede de sangue: uma agonizante formiga ali, um suplicante pernilongo ali, outra teimosa e idealista barata, acolá.

Suspirou de satisfação antes de coçar o sovaco pela enésima vez, mas sabia que no fundo – lá no fundo – o verdadeiro pesadelo ainda batia asas nas profundezas de sua obsessão: “Ângela, porque me queres tão mal? Não seria eu teu alicerce e fortaleza?... Sapequinha linda... não serias tu...tu querida... Adeus...”, despertou do devaneio shakespeareano quando sentiu o toque frio do borrifador no pé do ouvido; tocou as têmporas e largou-o involuntariamente, sentiu-se tonto e sonolento. O ar, antes leve e solto, agora ardia como vapor miasmático; cambaleava ao quarto como se possuído por uma bruma fantasmal: Viu-se mergulhado em um mundo líquido de indefinições, odores e sensações; sorriu pateticamente para a estimada coleção de gibis, mas anti-heróis e super-vilões intimidaram-no com músculos de papel e questionadores olhares de ódio; tirou a máscara e sentiu o peito como uma couraça amarronzada; seu palpitar, a derradeira agonia da última barata na face da terra: “Maldito Kafka!”, agonizou a si mesmo, esmurrando estantes, peitos e nadas; lamentava silenciosamente, coçando-se de cabo a rabo (no rabo); estapeou o pescoço mais uma vez, antes de despencar na cama como um herói decaído.

[-Ui!

-Ouviu?

-Ouvi.

-Sentiu?

-Um terremoto...

-...debaixo de nós!

-É ele?

-Quem mais?

-Olha só... A frieira e minha mordida. – o pé de Jorge cambaleava na borda como um pêndulo desconexo – É ele! Nossa hora chegou!

-O começo do fim.

-Adeus.]

***

-O que é isso?!

Ângela adentrou a sala, olhou e não acreditou.

-Jorge... Jorge, desde quando você voltou a... – girou o pescoço. -... Pinguço miserável, cadê você! Que cheiro...

Ao seu redor montanhas de livros e gibis, flanqueados por uma profusão de insetos defuntos, odores acídicos e estantes caídas, imprimiram nas retinas um patético cenário de pesadelo e destruição. Abaixou-se para pegar a máscara, mas uma sucessão de espirros e súbitas asfixias obrigaram-na a abrir a janela; empalmou a garganta no mesmo instante que erupções cutâneas e plaquetas vermelhas brotaram na pele; correu à porta e tomou fôlego. Retornou à sala e novamente sentiu ar viciado: iria contornar a varanda e entrar no quarto pela janela.

[-Que gritaria na sala... Ouviu?

-Madame Filé retornou, e nós aqui no aguardo da Hora Final... no meio desse, dessa...merda. Holy shit!

-Literalmente: a merda da merda, que cheirinho meu Deus! - tapou o nariz e tremeu.]

Falando em merda...

-Acorda seu merda! Acorda... – Ângela esmurrava a janela, mas Jorge, destronchado na cama como uma geléia obesa, parecia não ouvir. – Ai meu Deus...

Coçou o pescoço e examinou o braço: agora o processo alérgico parecia amenizar. Forçou a tranca e por fim o pino cedeu; suspirou fundo antes de saltar na cama: olhou para ele... Ele:

-Jorge, Pudim de Cachaça!

-Jorge... Quem é Jorge? Oi Kafka, tudo bem? – bocejou, batendo na couraça do peito.

-Acorda de vez! – esmurrou-o. – Quer me matar asfixiada, assassino!

-Abaixe as asinhas e não me pique, muriçoquinha sapeca. – Jorge parecia flutuar entre o devaneio e a lucidez. – Já me basta o que fez no mindinho. – coçou o pé.

-Você borrifou veneno de novo!

-Quem... – piscou os olhos - Ângela!

-Não, é a Angelina Jolie imbecil.

-Não zuna no meu ouvido e tire suas asas de cima de mim!

-Que asas... está bêbado ou o quê? – examinou-o e prosseguiu – Você quase me mata com esse veneno.

-Ângela... – olhou-a. - Quem te mordeu no pescoço? Que horas são?

-O que você está... Mordida? – tremeu dos pés à cabeça – Cheguei mais cedo por causa da greve, amoreco. - riu sem graça.

-Dentadas no queixo e pescoço... – ela emudeceu. - ...amorzinho, você foi picada... e muriçoca não tem dentes desgraçada!!

-Amor...

De um pulo Jorge saltou e agarrou o borrifador; retornou ao quarto e cercou-a.

-Saia!

-Idiota que fui! - aproximou-se, mirando o composto na dentada do pescoço. – Eu, vivendo por ti, amando sua inocência e alvura, sem manchas, mordidas nem picadura... – explodia de ódio afetadamente. – Sem perceber que, que... Agora eu sei, sei sim... Quem me atormenta és tu, Muriçoca Mor dos infernos!

-Está louco! Socorro!!

-Não adianta zumbir, zunir nem bater as asinhas, inseto vagabundo! – Ângela gesticulava freneticamente. – Meu Deus...- socou o cocoruto e coçou o rabo – ... que tontura... Minha cabeça... está tudo tão, tão... Ardendo por dentro!! – largou o borrifador e empunhou impulsivamente a raquete elétrica.

-Agora lascou, surtou de vez! - correu ao banheiro, Jorge seguiu.

-Abra a porta rameirazinha alada miserável, não adianta fugir! Estou coçando dos pés à cabeça e vou... Vou... – arrombou a porta.

-Não, não, socorro! Socorro!!

-Agora... – ligou a raquete mirando-a na cabeça – Vagabazinha... Pode zumbir à vontade e bater as asinhas porque a pilha tá novinha!

-E minha lâmina depiladora, afiadinha!– retirou-a do bolso.

-Você...

-Presente do meu gostoso personal trainer, Jorgette Imbecil!! – avançou.

Ui,ai...vou cortar...porra...ai,ui...desgraçado, ai... meu saco...escroto... eu tô...tira as mãos de mim seu...no sovaco não... socorro!...estou... coçando... sangrando sua, sua...porra...solte isso, não zumba... está afiada!... cadê meus dentes! seu..seu...sua...ai...ai... ... ... ... ... ... ... ... ...

[-Minha nossa.

-Nossa senhora.

-Meu Deus...

-Deus meu!

-Parecia que vinha do banheiro...

-E agora...

-Que silêncio.

-Que fedor, não aguento mais!

-Nem eu... Vamos sair. Mas o que importa é que estamos vivos.

-Vivinhos da Silva. Esta tensão me deu uma fome louca!

-Deu mesmo.

-Então?

Voaram ao banheiro e pairaram no umbral.

-Nossa... Mas que sangueira danada.

-Ela ou ele?

-Ela ‘e’ ele.

-Olha o pedaço da frieira.

-E os molares de Madame Filé! Briga de marido e mulher...

-...só se intromete para recolher os corpos.

-Não mereciam um ao outro.

-Ou se mereciam demais; tanto é...

-É... Então?

Apalparam as panças simultaneamente.

-Sem mais delongas...

-Avante!]

***

[-Rapá... Mas que banquete.

-Nem fala.- arrotou.

-Sabe... eram uns sacanas, sempre, sempre. Mas acho que vou sentir falta do Chifronildo.

-Eu também...Vamos ter que encontrar outro mané, né? Se fossem menos egoístas poderiam se dar bem e conviveríamos pacificamente.

-Enfim... É a vida. – bocejou. - Estou com soninho.

-Eu também.

-Boa noite. Amanhã é outro dia.

-Boa...

E com estas palavras, deitaram na cama e dormiram o sono dos justos.]

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 21/12/2012
Código do texto: T4047439
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