Prisão de sombras (Capítulo 7 do livro Érebus)
Caos... Caos... Caos... e escuridão.
Ricardo estava acorrentado, punhos, tornozelos e pescoço, as correntes que prendiam os grilhões de ferro frio eram pesadas, mas não tanto que impedisse os movimentos, estavam bem afixadas nas paredes do que parecia ser uma espécie de cela muito pequena e escura.
No ponto onde as correntes eram presas à parede, elas pareciam ser uma coisa só, não havia distinção; de fato, as correntes pareciam ser uma extensão da rocha que constituía todo o lugar e a impressão era que as correntes também fossem feitas de rochas obscurecidas.
Todo o local era pequeno com paredes muito próximas umas das outras e um teto irregular pouco acima da cabeça de Ricardo, lembrava uma espécie de cela que era composta de blocos grandes de uma rocha escurecida como carvão mineral, parecia mais com as paredes de uma gruta do que propriamente de uma prisão; não tinha catre, janela ou qualquer entrada de ar e tirando alguns pequenos buracos nas partes mais baixas das paredes rochosas, que pareciam ter sido feitos para escoamento de água; não existia mais nada lá. Ricardo estava deitado no chão.
O solo também feito da mesma rocha estava úmido como se todo aquele calabouço estranho fosse uma caverna submersa nas profundezas de algum oceano esquecido cujas águas da maré alta inundavam e só voltavam a recuar na maré baixa. Não era esse o caso, mas Ricardo se pegou imaginando o que faria se aqueles orifícios começassem a jorrar água e toda a pequena câmara fosse completamente tomada por ela. Como sobreviveria sob tais condições?
Naquele cárcere eram apenas três paredes, pois no lugar da quarta, na verdade, era uma grade feita com barras grossas de ferro, semelhante ao das correntes, que se estendiam da esquerda para a direita e dividia a cela do que parecia ser um corredor estreito em frente. Ricardo demorou a perceber aquilo porque inicialmente estava deitado de costas para as grades, portanto, sua visão estava voltada para a rocha sólida.
Não tinha nenhum outro cubículo como o dele por perto, ao menos não à vista, nem outra cela ou calabouço que fosse maior ou menor do que a sua, tampouco havia qualquer sinal de que aquele lugar lúgubre já fora visitado por alguma alma humana um dia; ele estava completamente sozinho dentro daquela prisão.
A escuridão do lugar só era quebrada por um pequeno archote onde as chamas bruxuleantes queimavam timidamente, quase a ponto de se apagar por completo; a luminosidade produzida não era suficiente para banir todas as trevas do lugar, algumas delas se mantinham parcialmente escondidas esperando o momento de sair, e principalmente dentro da cela a tênue claridade produzida servia para que as sombras não tomassem conta de tudo e reinassem absolutas.
O archote estava preso por um suporte também de ferro praticamente corroído pela ferrugem, mas o mais estranho era que aquele suporte era na verdade uma espécie de escultura bizarra. Uma mão de ferro que brotava da parede exatamente como as correntes e mantinha o cabo do archote bem preso entre seus pesados dedos de metal muito bem forjados e tão perfeitos que até poderia ter sido, algum dia, a mão de uma pessoa misticamente transformada em ferro mediante a alguma alquimia do mal. Foi o que Ricardo pensou ao vê-la.
Toda aquela câmara parecia ser uma única coisa, e mais do que uma reles prisão, parecia ser um único ser. Tanto as paredes como o solo, quanto as grades e a mão de ferro que segurava a tocha; tudo uma coisa só. Era muito estranho.
Ricardo olhou ao redor, tentou ouvir algo, alguma voz, ou respiração, ou ronco, barulho, ruído ou qualquer coisa, mas o silêncio era brutal. As únicas coisas que conseguia ouvir eram as batidas de seu próprio coração e seus pensamentos, nada mais. Por um momento considerou ter sido abduzido por seres de outra galáxia ou raptado por alguma entidade inimaginavelmente mais antiga do que a raça humana; mas também desistiu de pensar aquelas coisas, sabia que aquilo não era verdade, não podia ser; tudo não devia passar de mais um delírio criado por sua mente sem controle e assim como havia entrado ali, tinha de encontrar um jeito de sair.
Estava decidido a buscar ajuda, mesmo que tivesse de tomar remédios para manter seus delírios sob controle. Aquele era o desejo de Mônica desde o início, mas ele relutou o quanto pôde, porém, depois do episódio em sua casa e agora aquilo, não podia mais fingir que tudo não passava de um grande plano cósmico que lhe concedeu poderes e dons sobrenaturais. Algo dentro dele estava errado embora no fundo ainda houvesse aquele sentimento de que nem tudo era loucura.
Ricardo não fazia a menor idéia de como tinha ido parar naquele lugar funesto e por um momento não quis realmente saber o que estava acontecendo, sua vida estava cada vez mais fora de controle e a última coisa da qual se lembrava antes de acordar naquele buraco escuro foi de ter sido confrontado pela criatura no quintal de sua própria casa na noite da tempestade e dos fantasmas. Naquela noite pensou que fosse morrer.
Ele lembrou que tinha sido ferido gravemente e olhou para o pulso esquerdo que havia machucado seriamente assim como os dedos destroncados na ocasião; aquela força invisível tinha destruído praticamente todos os ossos da mão dele, porém a dor não estava mais lá, de fato, tanto o pulso quanto os dedos estavam completamente recuperados. Ele os moveu na medida do possível conforme o grilhão permitia e não sentiu dor alguma, estavam perfeitos como se nunca os tivesse quebrado. Tocou levemente a ponta do nariz com os dedos, mas este também já não oferecia a dor lancinante que antes tinha deflagrado por toda a sua face. Ricardo virou o nariz para um lado e para o outro, segurou-o com força e constatou que também não estava quebrado. Aquilo era ótimo, mas era péssimo ao mesmo tempo. Ótimo porque seu corpo parecia completamente livre dos ferimentos anteriores, mas era péssimo porque ele não sabia ao certo o que aquilo significava; ferimentos graves não desaparecem de uma noite para outra e muito menos sem tratamento médico adequado.
Fez força para lembrar como tinha ido parar ali, mas foi em vão; tudo o que se lembrava era da voz medonha que ecoava no meio da tempestade como um trovão, mas sua memória estava tão curta que não se recordava nem mesmo o que aquela voz tinha dito ou o que ele mesmo falara, sabia que tinha conversado com a voz assombrosa, mas não lembrava sobre o quê.
Ele estava sentado e levantou-se bem devagar porque temeu ficar tonto e não ter forças para se manter de pé, havia uma leve insinuação de tontura na cabeça, a sentia leve como um balão de gás, mas se ergueu sem problemas; em seguida testou o tamanho das correntes que o prendiam à parede, eram suficientes para permitir qualquer movimento dentro do cubículo de pedras, mas certamente não permitiria que ele fosse até o corredor sombrio na frente de sua cela ou além.
Naquele instante Ricardo percebeu também que não existia porta na sua prisão, as barras de ferro em sua frente, subiam desde o chão até a rocha negra acima de sua cabeça sem nenhuma interseção ou passagem, por menor que fosse, que permitisse colocar ou retirar um prisioneiro. O que eliminava a hipótese de ter sido carregado desacordado para lá e colocado no cárcere. Era preciso uma porta nas barras para isso acontecer.
_Como vim parar aqui?_ Finalmente se perguntou. O som de sua voz projetou-se no ar e em seguida se desfez como se fosse absorvido pelas paredes do lugar.
Ele pensou que pudesse estar morto ou em coma; já tinha escutado inúmeros relatos de pessoas que passaram por experiências de quase morte e que relatavam viagens fora do corpo em lugares sombrios ou corredores escuros como túneis com uma luz branca ao longe para a qual eles deveriam caminhar. Ricardo não estava vendo luz branca alguma, portanto abandonou a hipótese de estar morto ou morrendo, pelo menos por enquanto.
Mas então o que restava?
Ele foi até as barras de ferro e as segurou, testou tentando sacudi-las, eram firmes, frias, rijas e muito bem afixadas; provavelmente entrassem muitos centímetros chão adentro e de igual modo na rocha sobre sua cabeça. Era uma prisão, se é que podia considerar daquela forma, preparada para impedir qualquer fuga ou para conter algum prisioneiro muito diferente.
Tremeu com a idéia.
O ar era viciado e um cheiro forte e indistinguível se misturava a outro conhecido que pairava aprisionado, como uma névoa invisível, junto com ele; não havia nenhuma brisa ou corrente de ar girando no interior do cárcere por mais tênue que fosse para levar aqueles cheiros horríveis embora.
Ele já tinha sentido um daqueles odores e era tão repugnante quanto podia se lembrar; a última vez foi em sua própria casa; era o cheiro de decomposição; coisas mortas que se desfaziam em algum lugar por ali exalando aquele cheiro terrível. Mas o odor que sentia naquele momento era um pouco diferente, modificado pela mistura desconhecida.
Passou a mão na testa e depois na face. Tinha de lembrar como fora parar ali, ou pelo menos criar alguma teoria que pudesse servir de base para encontrar explicações, do contrário estaria condenado a ficar sabe-se lá quanto tempo preso naquele lugar fúnebre completamente perdido.
Notou que suas roupas estavam esfarrapadas, completamente sujas e que em seu braço direito uma mancha estranha que ia da parte posterior do pulso até o cotovelo tinha aparecido. Tentou esfregar para ver se era apenas uma mancha causada por transferência ao encostar em algo, mas não adiantava passar a mão, a mancha não desaparecia.
Ao prestar mais atenção percebeu que aquilo não era simplesmente uma mancha, mas sim uma inscrição, uma marca talvez; algo como uma tatuagem. TÂNATOS; estava escrito com uma caligrafia elaborada com muitas voltas em cada uma das letras. O que significava aquilo afinal? Ele não se lembrava de quase nada e achava pouco provável que pudesse ter mandado algum artista tatuar aquilo em seu braço.
Ricardo jamais gostou de tatuagens, era a última coisa que poderia ter feito, mas alguma coisa estava acontecendo com ele, existia um lapso de memória em sua mente onde faltava uma série de atos e lembranças mais recentes. Ele não entendia a causa daquilo.
Desolado, encostou a cabeça contra as grades e tentou olhar o máximo que pôde primeiro para a esquerda e depois para a direita; o corredor escuro parecia não ter fim.
_O que foi que eu fiz para merecer isso?_ Ricardo já estava se convencendo de que tudo o que estava acontecendo em sua vida; as visões, as vozes, as assombrações, as alucinações e a crescente loucura que o estava tomando, isso sem falar no abandono de Mônica; tudo isso deveria ser algum tipo de castigo que recaiu sobre ele sem que soubesse o motivo para tanto.
Abaixou a cabeça encostando a testa novamente na grade, fechou os olhos numa infantil esperança de que quando os abrisse outra vez estaria em sua casa, deitado sobre sua cama e ainda com Mônica ao seu lado numa tarde quente de verão. Um exercício de tolice; sabia que não ia dar certo, mas fez mesmo assim.
Com os olhos fechados e compenetrado em escutar o silêncio mortal que se fazia presente na prisão, ele ouviu uma respiração curta e fraca, pequenos haustos arrastados, mas tão fracos que provavelmente ele não escutaria se não tivesse se concentrado em ouvir alguma coisa oculta pela aparente falta de som; não era a sua, mas sim a de outra pessoa. Poderia ser outro prisioneiro em algum lugar ali perto ou alguém, bom ou mau, que pudesse dizer que lugar era aquele afinal.
_Olá!_ gritou por impulso, antes mesmo de abrir os olhos.
Quando finalmente abriu os olhos rapidamente e ergueu a cabeça foi surpreendido pelo que parecia ser um homem encostado nas paredes rochosas do corredor em frente; o homem trajava uma espécie de manto rasgado e tão negro quanto o restante do ambiente, usava uma máscara que tapava completamente o rosto, uma máscara também escura e sem detalhe algum, deixando visíveis apenas os lugares próprios para os olhos.
A luz moribunda que quase não tinha forças para iluminar a cela onde Ricardo estava era ainda menos eficaz em mostrar os detalhes daquela pessoa encostada nas rochas do outro lado do corredor sombrio. Era perfeitamente possível que ele estivesse ali desde que Ricardo despertou, observando sem ser notado, camuflado pelas sombras e pelo quase absoluto silêncio, aguardando o momento certo de se mostrar.
Por um segundo Ricardo ficou olhando o outro que não se moveu ao perceber que já havia sido descoberto, ambos estudaram-se até que o estranho tomou a palavra repentinamente.
_ Seja bem vindo Ricardo. Esse é o meu mundo._ A voz era conhecida, mas soava menos poderosa do que antes, sem a potência dos trovões, parecia uma voz perfeitamente humana, normal como outra qualquer, embora fosse grossa, empostada e sem nenhuma vacilação.
Ricardo não respondeu, estava com um pouco de medo. O outro continuou:
_ Você deve estar se perguntando que lugar é esse.
O prisioneiro se afastou das grades. As correntes emitiram o seu ruído característico. O peso nos braços, pernas e pescoço não eram capazes de impedir os movimentos.
_Que lugar é esse?_ perguntou finalmente.
O outro respondeu tão prontamente que a pergunta de Ricardo ainda não tinha sido totalmente terminada. Parecia saber antecipadamente o que seria perguntado.
_ Este é o exílio, a prisão, a cela, o cárcere; a cadeia, o cativeiro ou a clausura; chame como quiser. O nome é o que menos importa.
A dúvida na cabeça de Ricardo era: “O que o outro queria dizer com prisão?”; no entanto perguntou:
_ O que estou fazendo aqui?_ Ricardo podia estar louco e se fosse esse o caso não haveria problema algum em dar asas a essa loucura. Porém se não fosse o caso ele tinha uma tonelada de perguntas se formando na mente e gostaria de conseguir o máximo de respostas para elas.
_ Temos todo o tempo do mundo para responder suas perguntas, mas faremos por partes._ o outro disse sem cerimônia.
Antes que Ricardo pudesse rebater o fato de o estranho saber sobre as perguntas antecipadamente, o outro respondeu:
_ Você está ocupando o lugar de outro.
_ Por quê?_ Tentou ser rápido na pergunta dessa vez a fim de não dar tempo de receber a resposta antes de terminá-la.
O mascarado se moveu pela primeira vez, lembrava uma daquelas estátuas vivas que habitam as praças, ruas e avenidas; mudando de posição de vez em quando e parecendo, de um modo lúdico, congelar em seguida. Estátuas que na verdade são atores ou artistas performáticos e que cada vez mais são visto nas grandes cidades. Mas este possuía um ar muito mais nefasto do que qualquer ator ou artista jamais poderia pensar em interpretar. Uma aura maldosa o envolvia e emanava dele sem que este fizesse esforço algum e Ricardo percebia aquilo claramente.
_ O lugar de alguém._ A resposta foi mais rápida do que a pergunta, mesmo com todo o esforço em pronunciar cada palavra rapidamente.
_ De quem? De quem estou ocupando o lugar?
A resposta foi confusa:
_ Tudo no seu devido tempo_ falou_ por hora basta saber que você não poderá sair mais daqui, não até que o outro complete uma tarefa que dei a ele.
Ricardo estava completamente livre de qualquer outro sentimento que não fosse um tênue medo; não era medo daquele ser ominoso parado na sua frente, nem da prisão em que estava, mas um medo que ainda não conseguira decifrar. Quanto a todas as outras sensações e sentimentos; estava totalmente vazio. Por um momento não conseguiu se reconhecer, era como se ele estivesse incompleto.
_ O que fiz para vir parar aqui? _ A pergunta pareceu oportuna.
_ Do que você se lembra? _rebateu o outro imediatamente antes da pergunta anterior terminar.
Ricardo parou por um momento tentou buscar as últimas recordações que tinha na mente antes de despertar naquele buraco. Era como caçar vaga-lumes num vendaval, as memórias mais recentes fugiam como se estivessem sendo carregadas por alguma força muito mais poderosa; não importava o quanto ele se esforçasse para agarrá-las, mas algumas poucas ficavam mais próximas como que deixadas para trás. Dessas ele se lembrava.
_ Lembro da chuva forte, dos fantasmas, dos insetos gigantes, da minha casa sendo revirada por fenômenos sobrenaturais e da sua voz. _essas lembranças estavam mais claras e pareciam flutuar sob a superfície escura de um rio que as levava cada vez mais para longe. Se demorasse mais não conseguiria lembrar daquilo também.
_ Só isso?
_ Só.
_ Tem certeza?
Havia mais lembranças na memória, estavam estilhaçadas e todas elas diziam respeito a sua vida com Mônica e para não relatar o que povoava sua cabeça, Ricardo disse apenas:
_ Me lembro de Mônica.
Aquele nome pareceu desencadear algo no outro, ele deixou escapar um suspiro de satisfação incontida e em seguida disse:
_ Ela; sim, Mônica.
Talvez o outro pudesse ver claramente os pensamentos de Ricardo e por isso estava se deliciando com as memórias que ele não conseguia conter, memórias estas sobre sua vida íntima com Mônica, sobre o tempo que passaram juntos, os bons momentos desde que a conhecera; sempre gostou dela, mais sua loucura a tinha separado dele. Era uma perda enorme e provavelmente irreparável; talvez aquela mulher fosse a única corda capaz de puxá-lo de volta da terra da insanidade para o solo firme da lucidez novamente, mas não a culpava. Qualquer pessoa teria desistido dele logo que percebesse suas neuroses, esquizofrenia e manias de perseguição.
_ Você não está e nunca esteve louco Ricardo, muito pelo contrário, está mais lúcido do que todas as outras pessoas que conhece._ novamente uma demonstração de que conhecia os pensamentos do prisioneiro.
O acorrentado finalmente se recostou nas rochas ao fundo da cela, de onde pendiam as correntes que o prendiam como uma espécie de animal. Ficou quieto por um instante e o outro parecia observar atentamente por detrás da máscara a cada movimento feito dentro do cubículo.
A “estátua mascarada” continuou falando.
_ Acostume-se com esse lugar, porque você pode passar muito tempo aqui, talvez passe toda sua vida nele.
Ricardo não deu ouvidos ao que o outro falava; estava pensando em uma forma de sair, mesmo contra todas as possibilidades.
Percebendo os pensamentos do encarcerado, o mascarado voltou a falar:
_ É inútil gastar seu tempo tentando encontrar uma solução de fuga; esse lugar foi criado para manter o encarcerado sem qualquer esperança.
Tentando pensar o mais rápido que pôde Ricardo rebateu com a seguinte afirmação:
_ Mas você disse que eu estou aqui ocupando o lugar de alguém.
O homem-estátua se moveu novamente; Ricardo esperava que ele respondesse antes que a pergunta terminasse de ser formulada, mas não aconteceu. O mascarado avançou alguns passos na direção das barras de ferro; mesmo com a pouca luminosidade o prisioneiro sabia que os olhos, parcialmente escondidos por trás da máscara, estavam se movendo freneticamente, varrendo o pequeno espaço.
_ E está._ respondeu finalmente_ Mas creio que ele não vai mais querer voltar.
_ E como ele fugiu?
Avançando mais um passo e finalmente tocando às grades, o mascarado foi novamente confuso na resposta:
_ O que importa é que você só sai se ele retornar, o que não deve acontecer. Ele tem de fazer uma tarefa pra mim, mas o mundo exterior é tão fascinante, tão sensorial que ele certamente não vai querer retornar quando terminar seu dever para comigo. Não posso culpá-lo.
As mãos do mascarado eram grandes, com a pele queimada deixando à mostra grandes feridas, dedos longos e esqueléticos, com cada falange parecendo muito maior do que deveria ser; as unhas também pareciam garras e eram sujas como se ele tivesse cavado pelo chão antes de aparecer ali.
_ Estou ocupando o seu lugar, não é?_ Não poderia ser diferente e mais sedo ou mais tarde aquilo ia ficar claro para ele.
Ricardo se lembrava muito bem daquela voz falando no meio da tempestade assim como lembrava de todas as manifestações sobrenaturais daquela noite. Tinha certeza que a criatura que vira refletida no espelho do seu quarto era a mesma com a qual falava naquele momento, porém ela, fosse o que fosse, permanecia escondida sob aquele manto e a máscara.
Não obteve resposta; o mascarado ficou mudo. Os olhos frenéticos continuavam dançando atrás da máscara e varrendo todo o pequeno cômodo imerso quase totalmente nas sombras.
Ricardo atacou:
_ Vi você no espelho.
Além da voz conhecida, havia mais alguma coisa de familiar naquela criatura que certamente imitava um ser humano com extrema perfeição, mas que sem dúvida alguma nunca foi humano; mesmo com aquele ar obscuro e aquela aura de maldade pairando sobre sua cabeça; mesmo assim, Ricardo sentia que algo no outro era muito familiar a ele. Tinham mais afinidades do que ele podia imaginar.
A respiração fraca e arrastada do outro ganhou um pouco mais de intensidade, seus dedos se apertaram contra as barras que estalaram e reclamaram da pressão exercida sobre elas. Ricardo pôde, mesmo um pouco de longe, ver que o outro possuía marcas grossas do que pareciam ser queimaduras nos pulsos, o manto que ele trajava estava deixando visível quando ergueu as mãos para segurar nas barras. Ele percebeu e recomeçou a falar ininterruptamente:
_Não. Você não me viu no espelho de seu quarto, tampouco é o meu lugar que você está ocupando, mas confesso que tive muito a ver com tudo o que está acontecendo com você já há muito tempo, fui eu quem o prendeu aqui no lugar do antigo prisioneiro; fui e sou eu quem o controla agora. E sou eu quem vai arrastar todos vocês para o fundo do abismo.
Ricardo não compreendia muito bem o que estava sendo dito, e apenas ouvia tudo atentamente. Aquilo era o mais baixo que já tinha chegado em seus delírios insanos, mas agora estava com sérias dúvidas sobre se estava sonhando, delirando ou se tudo era real.
O mascarado continuava falando:
_Mas eu venho observando você e sua vida há bastante tempo, tenho falado com você desde a sua infância e preparado todas as coisas para que esse momento chegasse.
_ Quem é você?_ finalmente perguntou Ricardo com um pouco da impaciência que lhe era característica.
O outro soltou as barras, mas continuou muito próximo a elas ao responder.
_ Sou “O Ninguém”; “O Nada”. Esse sou eu._ disse cada uma das palavras com uma satisfação aparente inundando a voz. E continuou._ Sou uma das estrelas que caíram do céu arrastadas pela cauda do Dragão vermelho. Sou o filho mais antigo do Caos. Sou a escuridão. Não tenho nome. Não mais.
O prisioneiro não entendeu a resposta e ainda se esforçava para discernir porque sentia-se tão próximo do outro. E se perguntava o que poderia ter de comum com algo que julgava tão pernicioso. Logo sua dúvida foi respondida.
Percebendo a indagação na cabeça de Ricardo o outro falou:
_Você tem parte de mim, eu concedi parte do meu próprio ser para que parte de você se libertasse dessa cadeia.
Ele ainda não entendeu por completo. Como poderia se libertar se ainda estava preso naquela gruta funesta?A resposta veio do mesmo jeito das outras. O homem-estátua intuindo, respondeu:
_Esse lugar é a sua própria mente Ricardo, não a reconhece?Você está preso dentro de seu próprio corpo, no lugar mais escondido possível, porém eu dei vida à sua segunda consciência e com isso foi apenas uma questão de tempo até que ela, com uma pequena ajuda, pudesse tomar o controle de seu corpo e sair para o mundo exterior; agora temos um pacto, ela e eu. No princípio acontecia apenas algumas vezes, você nem percebia; pouco a pouco sua outra face foi ganhando terreno, tomando volume lá fora, conhecendo as pessoas que o rodeavam até que finalmente no dia da tempestade ela tomou o controle e fugiu.
“O Ninguém” fez uma pausa quase teatral, seus olhos frenéticos se fixaram sobre Ricardo que permanecia encostado nas rochas no fundo de seu cárcere aparentemente resignado com sua situação. Em seguida continuou:
_No dia da tempestade, 15 de Janeiro, você estava buscando consolo pela perda da mulher que ama, estava mentalmente tão frágil e perturbado por mim que não foi nem um pouco difícil libertar seu outro lado. Agora os papéis se inverteram, seu lado mais pacífico e comedido está preso aqui e seu lado mais obscuro, visceral e profano está à solta no mundo lá fora sem saber que é apenas mais um peão no jogo real que o cerca.
Por mais absurdo que tudo aquilo pudesse parecer Ricardo não ousava protestar porque no fundo ele cria que, de fato, havia algo de verdadeiro no que o outro estava falando. Mas estava com certa dificuldade em saber o quê.
_Você está dizendo que minhas alucinações eram produto da sua influência?
O mascarado recuou novamente até que a luz do archote tornasse a não poder iluminá-lo mais no fundo do corredor.
_ Isso mesmo. E tenho novidades para você, encontrei outra pessoa com possibilidades muito superiores às suas. Esperamos poder usá-lo em breve também. Logo que eu consiga penetrar no âmago dele.
De repente um nome reapareceu na mente de Ricardo. Antes que ele formulasse qualquer pergunta a resposta foi dada.
_ Quanto a Mônica, não se preocupe. Pretendo sacrificá-la o quanto antes. Como você bem sabe, ela é a única amarra que ainda o mantém vivo aqui; ainda não consegui devorar as lembranças que você tem dela, mas isso logo vai acabar quando meu caçador colocar as mãos nela novamente.
_ Novamente? Como assim?
_Seu outro Eu, Ricardo, sua sombra, Tudo o que há de pior no ser humano, todas as características mais sombrias e mais maldosas, tudo aquilo que as pessoas se esforçam para reprimir e aprisionar, aquilo que passam a vida negando que possuam dentro de si. Maldade, ódio, luxúria, inveja, arrogância, violência e todos os piores e mais baixos sentimentos. Tudo isso é “A Sombra”, todo ser humano tem preso lá no fundo, mas no seu caso ela está livre e vagando. No seu corpo.
Deixou escapar uma pequena risada antes de continuar.
_Algumas vezes sua sombra tomou seu lugar e a primeira pessoa com quem teve contato foi justamente com Mônica. Não previ isso, mas veio bem a calhar, serviu ainda mais para atiçar a sede de sangue. Como é parte de você, sua segunda personalidade, embora muito mais impetuosa e impiedosa, também se afeiçoou a mesma mulher que você ama, não pelos mesmos motivos, porém, com muito mais volúpia; você a amava pelo que ela era e representava em sua vida, seu outro lado a desejava apenas pelo belo corpo que possui. Mantiveram relações não uma, mas várias vezes e somente para isso é que Mônica servia para a sombra, apenas para a satisfação carnal que você não era capaz de promover a ambos. Infelizmente a mulher fugiu abandonando você em um estado psicológico estilhaçado e em ponto de ruir completamente; você aceitou relativamente bem a separação brusca porque julga que foi o único culpado pelo fato, mas seu outro lado não encarou com a mesma maturidade e agora Mônica vai pagar por essa tentativa de desistência. Para seu outro Eu, Mônica é uma possessão, um objeto, nada mais do que isso.
Atônito com as revelações Ricardo caminhou rapidamente até as grades e com um tom de voz ainda mais alterado perguntou:
_ O que você vai fazer com ela?_ Segurou as barras praticamente no mesmo local onde antes o outro também tinha posto as mãos ossudas. Não percebeu.
A resposta veio das sombras onde somente parte do manto podia ser visto e duas pequenas esferas luminosas emanando luz pálida dos olhos da máscara demarcavam a posição da cabeça.
_ Não farei nada com ela, mas você fará. Vai matá-la e depois cumprir uma tarefa para mim.
Ricardo jamais teria coragem mesmo em qualquer acesso de loucura para levantar um dedo contra Mônica, sabia disso, mas mesmo assim a afirmação vinda do fundo do corredor o fez tremer por dentro.
_ Nunca!_ Afirmou. Ele pensava não ser capaz de matar pessoa alguma embora lembranças confusas teimassem em dizer exatamente o oposto.
_Olhe a tatuagem Ricardo sabe o que ela significa?
Ricardo rapidamente voltou sua atenção para o braço recém tatuado.
_ Significa “Morte” o impulso primordial mais reprimido e ao mesmo tempo mais presente em todo ser humano. Não mandei que você fizesse essa inscrição, mas você fez; está agindo por conta própria agora e assim que encontrar sua ex-mulher vai matá-la. Todo ser humano pode matar; TODOS! Até você e mesmo sem motivo algum. Você vai matá-la.
As últimas palavras ecoaram pelas paredes rochosas antes de desaparecerem no ar.
_Matá-la... Matá-la... Matá-la._ Disse o eco fantasma da voz ainda humana do outro que parecia quase totalmente escondido pelas sombras. Estava tão camuflado que Ricardo não conseguia mais vê-lo.
O eco pareceu mais sarcástico do que a voz original.
_ O tempo da conversa findou-se._ disse antes de ser ocultado completamente.
Ricardo avançou sobre as barras e tentou em vão sacudi-las, não se moveram nem uma fração de milímetro sequer. As correntes presas às mãos, pés e pescoço fizeram barulho quando o corpo dele se sacudiu freneticamente.
_ O que significa tudo isso?_ gritou. Precisava de mais respostas ou explicações, mas antes que conseguisse dizer mais qualquer coisa sentiu uma sensação estranha. De repente foi como se a cela se movesse levemente, uma pequena tontura acometeu a mente dele.
Segurou às barras e parou toda a algazarra que estava fazendo, o som das correntes se interrompeu na mesma hora e pela primeira vez desde que percebeu que estava preso sentiu o peso do grande anel de metal ao redor do pescoço; de igual modo os pulsos e tornozelos também incomodavam. Como se a movimentação exagerada tivesse contribuído drasticamente para que sua pele sofresse os danos da fricção contra o metal que o prendia.
A tontura aumentou gradativamente, o interior do cárcere começou um movimento giratório lento, mas foi ganhando velocidade a cada segundo; parecia que sua prisão era parte de um carrossel subterrâneo infernal.
Ricardo se abaixou ainda encostado às grades, fechou os olhos tentando amenizar a sensação de tontura que o estava dominando e levou as mãos à cabeça, mas mesmo com os olhos fechados ainda sentia como se o cérebro estivesse rodando dentro da caixa craniana. Abriu os olhos outra vez; a luz do archote não iluminava agora mais do que uma pequena labareda de vela e tudo ainda girava rápido; todo o lugar, faltaram forças nos braços e pernas, as correntes e os grilhões pareciam ganhar mais peso a cada instante e finalmente Ricardo encostou os joelhos no chão, algo se movia ali, olhou para baixo e tentou identificar mesmo no meio da escuridão quase absoluta.
Uma pequena criatura, algo como uma mistura estranha de uma barata com um besouro com grossa carapaça, andava pelo chão alheio ao prisioneiro que o olhava. O inseto era bizarro e contribui para aumentar a sensação já desconfortável que Ricardo estava sentindo; a pequena criatura não parecia nenhuma das criações feitas pelo Todo-Poderoso; parecia sim, uma anomalia, ou uma brincadeira malsucedida da natureza, um erro genético da evolução. Detestava insetos.
Ricardo ainda teve tempo de pensar nas criaturas das profundezas marinhas, grotescas sem dúvidas, mas todas as que se conhecia tinham uma aparência menos agressiva do que aquela pequena aberração.
As paredes da caverna-prisão começaram a ficar cada vez mais próximas, não estavam se movendo de verdade, mas aquela sensação claustrofóbica era consequência da tontura cada vez mais forte que estava se abatendo sobre ele. Provavelmente seus sentidos fossem falhar e o abandonar novamente. E ainda ficaria pior.
A chama fraca do archote preso na parede de repente bruxuleou, falhou e finalmente se apagou por completo. As sombras que ainda estavam escondidas saíram de seus esconderijos e retomaram todo o lugar sem nenhuma cerimônia; eram suas donas legítimas.
Ricardo pensou que fosse vomitar quando viu o inseto, mas não aconteceu. Ele se sentou no chão no meio da escuridão absoluta, ignorando a existência do besouro ou barata, tampouco se deu conta de que poderia haver muitos outros como aquele ou talvez piores, mais medonhos.
O peso das correntes ficou tão grande que ele já não tinha mais escolha a não ser se deitar. As paredes estavam muito próximas; a tontura só aumentava. Ele tentou se concentrar o mais que pôde; lembrar de momentos bons de sua vida antes do tormento; aquilo poderia de alguma forma ajudar a suportar as ondas de tontura que fizeram com que finalmente perdesse os sentidos. Mas não ajudou.
Este texto é o capítulo 7 do meu livro Érebus, que é um romance sobrenatural e psicológico. Os demais capítulos estão disponíveis para leitura gratuita no seguinte endereço:
http://erebuslivro.blogspot.com/
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