Jogo de Bolas de Gude

O sol impiedoso do fim da tarde castigava, maltratava, pressionava a terra seca a tal ponto, que seu grito de sofrimento e agonia se fazia manifestar nas cavidades e rachaduras da terra erodida. As árvores, outrora frondosas e fulgurantes, agora agonizavam com suas parcas folhas cor de tristeza; de braços esqueléticos e suplicantes, ainda oravam para a desnaturada mãe natureza, aguardando impacientes ao desaguar do alimento vital. Noutras horas, em desesperada procura por amparo e consolo temporário, os encontravam no abraço do crepúsculo matinal e no significado emocional das paisagens desérticas. Por todos os lados o abandono e desolação erguiam seus braços em gestos tirânicos e autoritários, clamando pela terra esquecida por Deus. Era uma região rica em abismos, vazios e nadas: a existência tinha uma cara ruim.

Nesta terra de infinitas impossibilidades, dois garotos saciavam a fome e sede esquecendo a si mesmos com inocentes jogos de bolas de gude. Numa rara área de terra mole, atrás da casa da benzedeira Benedita, cavavam caçapas para os jogos. Bentinho, ao finalizá-las, faminto que estava, correu à cozinha e sentou-se na mesa sem se lavar. A sopa de palma não alimentava, mas com breves exercícios de auto-engano e auto-ilusão, espantava a fome para um cárcere temporário. Com a última colherada, acariciou a barriga, foi à janela e olhou o amigo - mais uma vez - mexendo nervosamente a terra quente: Zeca Maneta – apelidado assim por Bentinho –, com a solitária mão em concha, cavava, cavava, cavava...

Bentinho contornou a cozinha e alcançou o pátio; do lusco-fusco de um sombreiro de palha, continuou observando o colega cavando o solo com a cadência de um manequim desarticulado: há muito a caçapa não era caçapa e Zequinha – por semanas a fio - não era Zequinha. Seus olhos, antes vivos e vívidos, agora refletiam o sol como duas esferas vítreas de palidez comatosa: órbitas débeis sondando o frenético penetrar das unhas na umidade pegajosa da terra pastosa.

— De novo?! – gritou coçando a cabeça - De uns tempos pra cá você está tão...

— Estou, estou... Não, não, eu vou, vou, vou...

— Fale direito. – aguardou - Já cavei as caçapas; venha comer.

Zequinha cavava, cavava, cavava...

O sol ia a pino e o ar quente e pesado inflamava os pulmões como uma fervente sopa de chumbo; o amigo olhava-o estupefato.

— Não tá me ouvindo?! O que...

— Sim, sim, não... Sim!– interrompeu gargalhando.

— Pare...O que v-você...

Disparou impulsivamente em direção à caçapa, mas exaurido pelo calor, quando lhe estendeu a mão, foi incapaz de absorver o impacto do brusco safanão do colega: Bentinho sangrava, sangrava, gritava, gritava, gemia, gemia... Zequinha cavava, cavava... Suava, babava, tremia... Ria, ria, ria...

— Eu vou, vou...

— Por que me empurrou?! Pare com isso!

— Para, para... – cavava, cavava.

- Espere aí, vou buscar ajuda. – tentou levantar.

— Eu vou... estou... Indo para, para... – ria, ria.

Bentinho rastejava chamando a tia, mas o sol insistia e a visão de novo turvava: calor atraindo secura e suor, vazio seduzindo vazio: socorros, pedidos e gritos desaguando em abismos de nada, nada, nada, nada...

Outro grito cortante, seguido do rugido de uma repentina tromba d’água, obrigou-o a olhar para trás e eis que, da periferia da visão, vislumbrou o braço órfão do amigo desaparecer no imenso abismo terreno onde antes, em sua breve existência matinal, fora uma mera caçapa de bolas de gude.

— Zequinha!! Tia! Tia!!

Os gritos penetraram no inferno úmido como socorros raquíticos; ergueu o pescoço procurando por algo que o situasse, mas entorpecido pelo disforme horror que o possuía, vislumbrou a paisagem febril como um ciclópico organismo vivo, um convulsivo abismo de água e fogo em cujo solo agonizante – num intenso delírio de metamorfose e transmutação –, brotavam com inefável abandono papoulas multicores de odor opiáceo, coroas-de-cristo com espinhos suplicantes, irradiações misteriosas de radiância violácea, erupções vaporosas em transparências vítreas; espirais de movimentos sinuosos e sonoridade alienígena, cogumelos disformes de textura decrépita.

Bentinho sentia a Terra Esquecida como um pulsante oceano de fogo entrecortado por erupções convulsivas e jardins exóticos de perfumes lisérgicos. Ajoelhou-se, fez o nome do pai e com hercúleo esforço orou, orou, orou... Pediu, pediu, pediu, mas o que retornou foi sol, chuva, água, calor e suor. A realidade agonizava, mas ele não entendia: simplesmente insistia.

Despencou no solo quente e outra vez rastejou, mas antes de alcançar o umbral desmaiou: A Inconsciência da Inconsciência.

***

— Zequinha!!! - a consciência da consciência.

— Calma querido, titia tá aqui; feche os olhos e descanse. - a voz serena de dona Benedita jorrou como um rio de água clara.

— Pare... Pare com isso... Isso...

— Durma de novo amor. A febre está cedendo. – acariciava a testa do sobrinho – Só me fale onde você se machucou?

— Lá, lá no... no...

— Titia vai te ajudar. – ajeito-o e perguntou – Escorregou na pedreira? Onde está o Zequinha? Por que não comeu?

— Está lá, lá, no...

— Está bem... Agora descanse.

— Não! Não!! Cuidado... Caiu, caiu...

— Zequinha? Caiu onde?

— Lá, lá no... no...na, não, não!

— Onde amor, responda. – pressionava os ombros do sobrinho. – Onde?!

— Tentei, tentei... Unha suja, muito suja... Gude, caçapa...vapor... flor, cheiro em flor...

— Onde? Meu Deus... Vou avisar a Zefa!

— Não!! Cuidado... Caiu... Gritei, meu Deus! – esmurrava a cabeça - Meu Deus... como gritei e orei!! Deus... - olhou para cima - ... Adeus amigo!!! Eu vou, vou...

— Calma! Fala logo pra titia, onde ele caiu?!

— Lá na, na... caça...não, não... no, no...V, v...Vou..

— Onde?!Onde!!!!

— No v,... Va,..va... vaziooooo!!!!

Como um melão sustentado por uma frágil vara de bambu, olhos cadavericamente vitrificados, a cabeça de Bentinho despencou por sobre o ombro para nunca mais se levantar.

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 16/12/2012
Código do texto: T4039065
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