Natal no Necrotério

— Puta merda! O que meu pai veio fazer aqui nessa titica de cidade!!!

Ênio pensou alto, estava frustrado pelo fato do pai ter se mudado, vindo a trabalho, com a família para uma cidade do interior. Não tinha escolha, com seus 20 anos, ainda não tinha uma profissão definida e muito menos uma renda que o deixasse viver tranquilo em São Paulo, para continuar a sua vida de farras com os amigos e com as muitas garotas que traçava com frequência.

Ao menos seus primos estavam morando perto e às vezes saiam para outras cidades vizinhas para se divertir. Meses depois, engatou um namoro com uma moça da cidade. Precisava de um emprego com urgência, não queria ficar na pindaíba e amolar seu pai pedindo dinheiro emprestado. Seu primo era funcionário da prefeitura e lhe falou de um trabalho que era moleza, ser vigia do IML municipal, vaga noturna.

Ênio não pensou duas vezes e aceitou o cargo, sabia que iria demorar a encontrar outro nessa cidade pequena, mesmo sabendo que também demorariam a preencher a vaga de vigia noturno do necrotério. No começo foi horrível, maus pressentimentos, não dormia, qualquer barulho o assustava. Aos poucos foi perdendo o medo, já não se incomodava mais, os legistas e auxiliares que trabalhavam lá, saíam no máximo as 00:00 hs, agora seria apenas dar uma olhadela pelas redondezas, verificar portões e cadeados e ir até a sala da segurança que fica ao lado da sala de autópsia e geladeiras de gavetões para os corpos e dormir até umas 5:30 hs, seis horas era sua rendição.

Viu de tudo um pouco, atropelados, afogados, sem cabeça, queimados, aidéticos, infartados, mutilados, abortos e até um triturado, que caiu numa moedora de ossos.

Mas o que mais o deixava fudido de raiva, eram as pessoas indigentes, nem em sua morte tinham um tratamento humano, ao invés disso, seus corpos eram negociados com faculdades, para serem dissecados pelos aspirantes a cirurgiões, alguns valiam uma boa grana se estivessem em bom estado.

— Porra!!! Esses aí valiam mais mortos do que vivos!!!

Pensou alto de novo, mas Ênio não podia delatar, seu primo participava do esquema. O Fim de Novembro se aproximava, e as boas novas não tardaram a surgir, não era o adiantamento da 2ª parcela do 13º salário, como pensava assim que foi chamado para uma conversa com seu supervisor, e sim que teria que trabalhar na noite de natal e o dia também, os outros teriam uma licença.

Quase surtou, só que a bem da verdade é que estava de mãos atadas e engoliu a seco a situação. Havia planejado uma noite especial com sua namorada, estava louco para depois das comemorações natalinas, arrastá-la para seu quarto onde se transformaria no "local de abate" (assim por dizer!). A ideia de chamar sua garota para passar um tempo com ele no necrotério, após a meia noite do festejo natalino, não foi muito bem aceita no começo. Como diz o ditado: "Quando um não quer... O outro insiste!" Convenceu ela, mentindo descaradamente dizendo que não haveria cadáveres naquela noite, um sossego só.

O grande e esperado dia 24 chegou e com ele 9 defuntos fresquinhos para a sala do rigor mortis, chacinados com requintes de crueldade, segundo o delegado, alguns com faces e costas marcadas com iniciais, mutilados, desfigurados, facadas e muitos tiros, inclusive no rosto. Rumores que uma pessoa escondida no mato presenciou as mortes, ao que parece ser vingança. E relatou com tremor que morreram com ódio no olhar, mesmo suplicando por clemência, não receberam misericórdia e a cada vida ceifada, o ar vibrava com tamanho sentimento de cólera emanado de seus corpos.

Esses só seriam examinados a partir do dia 26, quando os legistas voltariam da folga. Nove da noite e o celular de Ênio toca, acertando os últimos detalhes da vinda de sua namorada, umas amigas a acompanhariam até seu local de trabalho. Meia-noite e meia, duas amigas trazem sua namorada como um presente para Ênio, elas ficariam numa praça não muito distante, curtinho a noite de festa com outros amigos e estariam à espera de um telefonema da moça, para a levarem de volta.

Sós na sala de segurança, a porta da autópsia fechada, música no seu rádio MP3, ainda havia muita gente soltando fogos lá fora, olhares apaixonados e falas ao pé do ouvido, beijos quentes e a garota esqueceu onde estava e cedeu as vontades do namorado. Duas e vinte da manhã, um telefonema e as duas amigas apareceram no portão em uns dez minutos, beijos de despedida e Ênio voltou pra dormir na sala, com expressão muito feliz.

Pouco tempo após adormecer, acordou assustado com um barulho enorme vindo da sala de autópsia. Respirou fundo, se recuperando do susto e foi abrir a porta para averiguar o que aconteceu. Tudo escuro, procurou o interruptor na parede, acendeu a luz e mirou um dos gavetões no chão, a sala era ampla, aproximou-se da janela para ver se estava aberta, tudo em ordem e em silêncio, silêncio quebrado pelo homem pelado no canto da sala, tentando balbuciar algo.

— Morrr...raaa! Arrrrg!

Virou-se para Ênio, que apático, não conseguia se mover. Um dos olhos pendurados por um pequeno nervo, a boca rasgada no seu lado direito, buracos de bala no peito, vertendo um sangue grosso e escuro, caminhando com dificuldade para cima de Ênio.

Ênio dava passos para trás, não desviando o olhar daquela criatura horrenda que vinha em sua direção. Ouviu pancadas atrás dele, as portas dos gavetões estavam sendo rompidas de dentro para fora, caixas de lata caindo ao chão e com elas mais "mortos", com um pouco de gelo nos corpos, levantavam e murmuravam querendo desforro, sangue e morte.

Ênio chorando, pedia por sua vida:

— Por favor... Não me machuquem... Pelo amor de Deus!!!!!

No dia 26, logo de manhã, o vigia notou que estava tudo revirado e as portas abertas. Entrou na sala de exumação e encontrou Ênio em uma caixa de lata, mãos e braços e pernas quebrados, todo desfigurado e sem os olhos, nem um sinal dos 9 cadáveres.

Eles irão atrás de vingança e não só isso, mataram também, não eram bons na vida e com certeza serão malditos na morte. Cuidado eles estão à solta e ai daqueles que cruzarem o seu caminho.