Mais Uma Noite para Arcádio

“Gotas de água se desprendiam do teto úmido, caiam numa poça d’água fazendo ondas que refletiam não só as paredes escuras da galeria onde eu estava, mas também meus pensamentos que estavam turvos como aquela água suja. Noite após noite e vinte anos passaram galopantes por mim sem ter uma pausa na minha enfadonha procura por quem me fez um monstro.”

“Perdi as contas de quantos pequenos animais matei, para não dar pistas da minha existência aos homens. Ratos, gatos, cachorros e até sapos fizeram parte dessa dieta escabrosa. O sangue deles é ruim, mas me mantem vivo, com foco e fúria na minha vingança, porém, confesso que minha avidez pelo sangue humano toma conta das minhas vontades e do raciocínio nos momentos de maior abstinência.”

Sons de pisadas na água ecoaram nos ouvidos aguçados e fizeram Arcádio voltar a realidade, pôs-se em alerta cingindo sua capa negra contra os ombros.

— Zé, estes cabos tão ruins mesmo!

— Fazer o que né Manuel... Sobra essa merda pra gente arrumar mesmo!

— Vamo lá, mais cedo a gente começa e acaba logo com isso.

— Beleza, já tô aqui com todas as ferramentas... Vamos procurar onde estão os cabos em curto.

Arcádio aproximou-se sem ser notado, viu três homens uniformizados mexendo no cabeamento da galeria, estava escuro, mas eles tinham consigo lanternas potentes. Havia dado meia volta, porém, um fato mudou a sorte daqueles três infelizes trabalhadores.

— Porra!!! Caralho!!! Cortei o dedo com essa porcaria de estilete! - Disse Manuel, muito irado com o corte profundo e a dor do ferimento.

O odor do sangue vertendo ao chão úmido foi percebido pelo vampiro que já batia em retirada e estava a mais de 50 metros dos operários, seus sentidos evoluíam cada vez mais. Parou por alguns segundos, uma angústia interior o consumia, seu desejo agora era saciar sua sede, cedeu ao inelutável furor que tomou conta da sua tênue resistência.

— Caramba Zé! Não para mais de sair sangue!!!

— Se preocupa não amigo... Já vai passar... Garanto que vai!!!

Os três operários viraram-se com as lanternas em punho apontadas para o vampiro e bradaram:

— Que você faz aqui rapaz? Tá louco cara? Quer morrer?! Só têm fios de alta tensão nessa galeria, fora os ratos...

— Baixem as luzes! Meus olhos são sensíveis...

Assim que declinaram as lanternas, os trabalhadores puderam enxergar o homem de sobretudo preto, com olhos vermelhos flamejantes. Não tiveram mais argumentos, com um movimento rápido Arcádio chegou perto deles e com os dedos esticados, cravou as unhas pontiagudas no pescoço de Zé, que expeliu mais sangue pela boca. Os outros, boquiabertos, estupefatos e sem ter tempo pra qualquer reação foram dilacerados pela fúria da criatura cega e sedenta por sangue. Com uma das mãos o vampiro suspendeu bem acima de sua cabeça Manuel, que ainda permanecia vivo. Desferiu um golpe com a outra mão, cortando o pescoço dele transversalmente com suas unhas como navalha, bebeu o liquido grosso que escorria abundantemente para seu rosto.

— Não disse que ia passar, amigo! - Disse Arcádio com ironia.

Satisfeito, mais calmo e embebido em sangue, saiu dos esgotos e ganhou a noite, era por volta das vinte horas, entretanto não mais para caçar ou continuar sua procura, mas encontrar um local seguro e bem distante dali, não demoraria a darem falta daqueles infelizes e os homens começarem a vasculhar pelos arredores. Mesmo assim andou tranquilamente por uma avenida pouco movimentada e precariamente iluminada por lâmpadas que eram sufocadas pelas árvores grandes e vistosas ao longo da via.

Subitamente interrompeu seus passos, olhar vitrificado, reto, compenetrado, observava uma moça que vinha em direção contrária do outro lado da avenida. Devia ter uns 18 anos no máximo, cabelo comprido e negro como petróleo, olhos azuis penetrantes, magra, mas com uma silhueta curvilínea magnífica. A íris do vampiro fitava-a, contudo não tinha um olhar cobiçoso e sim saudosista.

A memória antes entorpecida pela volúpia da vingança, evocou a recordação mais terna que perdurava no seu intimo, a moça parecia por demais com sua filha. Assim que ela passou seu semblante caiu, prostrou-se ao chão, lágrimas desceram fartas, sentiu que por uma fração de segundo seu coração gélido bateu forte mais uma vez. A lembrança resoluta de sua filha lhe rendeu mais dor e amargura, saber que nunca mais teria sua presença, seu abraço, o calor do amor de filha.

Arcádio não sabia se sua menina e sua esposa haviam morrido, para ser realista consigo mesmo não queria nem saber, por não suportar a ideia delas o verem assim, uma aberração. Enterrou suas lembranças o mais fundo que pôde até aquela noite, vindo à tona como uma tempestade de sentimentos malévolos e destrutivos que só alimentaram mais sua cólera.

Com sua audição apurada, ouviu sirenes se aproximando, correu e subiu nas árvores. Mais uma vez sumiu em mais uma noite, uma noite que lhe propiciou emoções inauditas até então a sua vida escura. Arcádio nutria o desejo cada vez mais intenso de encontrar seu criador, para poder ir a desforra, porem sabia que não seria fácil para um vampiro sozinho e sem tutor.