Quando os mortos caminham - capítulo IV - Devastação - "A morte nada mais é que uma ressurreição"
"O fim chega a ser algo tão próximo do recomeço que por vezes acabamos por descrer nas duas realidades”
É estranho estar cercado por essas paredes circulares. Sentir que a terra a qualquer minuto pode desabar sobre minha cabeça. Da para perceber que minhas mãos estão afundando devido a força que faço para me manter firme.
Meus braços semi-esticados nesse um metro de diâmetro. A terra umedecida pelo tempo, as baratas andando para lá e pra cá, batendo suas asas e saltando como se a liberdade fosse algo verdadeiro de fato.
Há tantas por aqui, se não tivesse matado minha fome há tão pouco tempo. Se todo aquele apetite ainda estivesse em mim, certamente esse seria o mais provável e saboroso dos lanches.
A mente humana é irritantemente patética. Desejos, vontades, nada disso é uma escolha, nós somos a escolha, e hoje me parece que a escolha deles é a minha carne.
Não quero sentir medo, tampouco solidão, agora é hora de lhes contar como nos unimos; Eu, Jaqueline e Pedro.
...
Quando os mortos caminham – Capítulo IV – Devastação
Ao som ecoante das balas viajantes, antes mesmo que soubéssemos o que estávamos de fato enfrentando era algo perturbador. O mundo nos sentenciou a morte, e o que nos restou foi nossa única e redentora opção. Sobreviver e se possível recomeçar.
- Anda logo! Vamos por aqui! – Ele me disse como se soubesse onde eles não estariam, onde realmente fosse seguro. Pensei se poderia confiar naquela pessoa, mas não dava tempo de pensar.
Corríamos desesperados pelas ruas, todos nós. E o pior era que eles pareciam não poder ser destruídos, afinal, acertar um morto vivo na cabeça, revelou-se ser algo não tão simples assim, não quando uma multidão deles marchava faminta em sua direção.
Nem mesmo em guerras pode se presenciar tamanha insanidade e desespero. Crianças correndo pelas ruas e sendo atacadas de maneira extremamente cruel, e após instantes a maioria se erguia novamente com semblantes que beiravam o demoníaco.
Mães, filhos, pais correndo e abandonando suas famílias. Cães e gatos sendo apanhados e destroçados. Eles queriam qualquer pedaço de carne viva. Via-se de tudo.
Eu corria, não dava para fazer mais nada que isso, eu só podia olhar. Pedro parecia um rato se enfiando pelas ruas, acuado, mas cheio de certezas que ele mesmo desconhecia.
- Por aqui – Ele dizia enquanto eu o seguia pelos becos da cidade. Estávamos cada vez mais longe dos mortos, ao menos daqueles.
Enfim ele parou frente a uma esquina e então se virou para mim.
- Eu acho que estou ficando louco! – Ele disse com uma cara que realmente me fez desacreditar ainda mais nele.
- Como assim? – Perguntei.
- Acho que aqueles caras estão mortos! – Ele me disse.
Caramba, aquilo sim foi o fim da picada. Eu pensei que ele pudesse dizer qualquer coisa, sei lá, algo do tipo: “Cara eu acho que isso é o inferno” ou “Você viu aqueles caras?”, mas não ele disse que achava que eles estavam mortos.
- É claro que eles estão mortos, não sei como, mas são mortos vivos, sim – Afirmei.
- Não, você não me entendeu bem, não da para ter certeza – Ele estava com um semblante sério no rosto, e por mais sério que fosse tinha uma cara que realmente o deixava engraçado, algo que me lembrava um pouco daquele personagem da série de T.V, o Mr. Bean, porém um pouco mais bem aparentado. Mas bem, ele continuou e me revelou o porquê daquela frase tão idiota, ao menos até ali – você não acredita não é? Eu ouço as vozes deles na minha cabeça. Vizinhos, amigos, alguns playboys agonizando – eu já tinha certeza que ele era maluco só pelos trajes esquisitos dele, mas aquele raciocínio, ah, isso foi o fim da picada.
- Você é louco é? – Perguntei balançando negativamente a cabeça, enquanto os gritos de horror pareciam nos alcançar – Temos que sair daqui, isso sim – Deduzi tentando não dar importância aquele louco, mas ele me surpreendeu.
- Não! Ela me disse que temos que ficar bem aqui! E você saberá o que fazer na hora certa! – Ele gritou comigo como se fosse meu maldito pai. Essa foi a pior escolha que ele podia ter feito aquele dia.
Avancei para cima dele e segurei-o pela gola da camisa. O ódio havia despertado de meu cerne como as larvas de um vulcão adormecido e a vontade que tive era de queimá-lo vivo, e vê-lo ardendo nas chamas.
- Me solte! Você quer ser isca de zumbi ou pretende escapar comigo na pick-up branca que ela me falou que vai passar por aqui? – ele me perguntou com toda certeza louca que podia ter e ainda sorriu enquanto deveria sentir-se acuado e indefeso.
- Quem você pensa que é? – perguntei abismado com tamanha insolência, acostumei-me a ser mais temido que aquilo ao longo dos anos. Talvez eu não fosse mais aquele homem imponente, mas agora...
- Sou um vidente, e pela primeira vez na vida não estou blefando. Tem uma garotinha de pele negra ao seu lado, e ela acaba de me dizer que os mortos também estão chegando, e ela é um deles – Ele voltou a me dizer e assim entendi que ou e Le era louco ou de repente eu, quiçá aquilo fosse tudo um pesadelo, mas se assim o fosse mais uma peça minha mente estava pronta para me pregar.
Os gritos, gemidos, sussurros e urros dos cadáveres chegaram alarmantes e a primeira coisa que vi virando na direção do beco onde nos encontrávamos era uma garotinha negra de olhos pálidos como os da morte; brancos e sem vida. Ela estava com metade de seu rosto completamente destruído, a pele despencando de sua face e ao redor do macabro olho esquerdo um furo vazando em seu cérebro.
Ela foi a primeira, mas seu gesto logo os atraiu. Apontou seu dedo indicador na nossa direção e rugiu feito fera endemoniada atraindo o restante do grupo de zumbis que ao perceberem o cheiro da carne fresca mal se preocuparam em ter que dividir cada fatia de nossos corpos.
- Opa! É maluco, não sei se é vidente ou mágico, mas se tem realmente um carro na Cartola e melhor tirar ele agora desse seu pijama maluco! – Disse como se acreditasse no que Pedro havia me contado.
Acho que nem ele mesmo acreditava piamente naquilo. Era como se as coisas acontecessem. Quando ele me disse que a garotinha estava do meu lado, eu não vi nada, não havia ninguém ali, mas ele olhava de uma forma, tão certo daquilo.
Os marchavam em nossa direção, podia ter ido em frente, saído dali e deixado Pedro para morrer, mas algo mais ainda me deixava atônito. Como ele sabia meu nome? Como sabia da garotinha negra? Eu estava quase acreditando nele quando o som de uma buzina ecoou na rua lateral e eu vi o carro, um maldito opala branco de quatro portas, ano 72 provavelmente. Pude perceber isso pelo câmbio que era ao volante.
Esgueirei-me para rua quando o carro apareceu e entrou pelo beco atropelando meia dúzia de zumbis e simplesmente batendo contra a parede lateral, passando raspando em meu corpo. Apenas suspirei e vi a garotinha que foi atropelada e com o impacto foi espremida contra a parede. Sua foi achatada, mas o mais estranho era que o maluco do Pedro falava sozinho no meio do beco.
- Obrigado Ellen, espero que fique bem – Ele disse e então chorou, aquilo foi ainda mais absurdo para mim do que tudo que ele havia me dito. Olhei para dentro do carro e vi o homem que o havia dirigido, e vi também o sangue que escapava por um furo que atravessara sua nuca, vazando bem no meio da testa.
Ouvi então o clique quase silencioso que ameaçava e tive a mais bela visão daquele dia.
...
Alguns minutos antes...
Acordou sentindo o latejar invadir seu crânio, como se mil agulhas adentrassem em seu cérebro. Estava deitada no banco de trás do carro e chegou a sentir náuseas, pois o veículo oscilava como se estivesse participando de um verdadeiro Rali Dakar.
O velho dirigia o carro enquanto falava através de um comunicador, ela permaneceu ali por cerca de três minutos ouvindo a tudo. O que ele falava não poderia fazer sentido, afinal, quem era ele e por que ele sabia de tudo aquilo.
Jaqueline se sentindo ainda tonta viu que precisava sair dali e se salvar, pois o que ouvira era algo completamente absurdo e não podia confiar naquele homem. Abriu os olhos enquanto ainda o ouviu dizer:
- Estou levando uma vagabunda para podermos brincar. Não, não, é uma putinha que tentou me roubar num posto de gasolina. Ela mal sabia com quem ou com o que estava lidando – E foi naquele instante que a jovem viu a arma bem na cintura do motorista que ainda estava entretido, falando sobre o que faria com ela. E foi naquele momento que ela levou a mão ligeiramente até a arma e puxou-a para si.
O homem se assustou e perdeu o controle do carro. Gritou em sou total desespero, mas sua atitude mais idiota foi a de tentar resistir a ela socando-a novamente e abandonando o volante.
Jack fez o que deveria fazer, disparou um único tiro, certeiro e mortal, bem na nuca do velho. Sentiu-se aliviada, o carro havia batido contra um bando de mortos vivos. E agora ela estava cercada, de um lado dois homens aparentemente normais, ou melhor dizendo vivos, e do outro um bando de famintos cadáveres andantes que avançavam contra ela.
A ameaça mais próxima era um maldito mendigo de barba enorme e olhos esverdeados. Cabelos não penteados há anos. Não aparentava ser velho, apenas mal cuidado.
Abri a porta do carro, olhei para Pedro e só pensei em fugir, mas de repente ela abriu os olhos e apontou a arma em minha direção enquanto me disse: sinto muito!
...
No próximo capítulo...
Tudo foi tão rápido, em meia hora helicópteros e soldados bombardearam a cidade. Eles queriam matar todos, até mesmo os vivos. Engraçado isso, não é mesmo?
A cidade foi completamente devastada, enquanto fugíamos o mais rápido que podíamos, seguindo um maldito mapa, que possivelmente nos levaria a respostas, possivelmente...
Estava cansado de tudo aquilo eu só queria parar e comer um pouco.
...
Continua em...
Quando os mortos caminham – Capítulo V – O Canibal
leiam....
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