A Informante
Danilo já estava atrasado. Como se não bastasse o medo infantil que ir a um lugar desconhecido lhe inspirava, havia perdido o ônibus. Vestido como um executivo, ele se preparava para o grande dia. Desempregado há tantos meses, e precisando desesperadamente de grana, esse homem havia recebido uma proposta irrecusável. Seria entrevistado, e caso passasse no teste iria ganhar rios de dinheiro. Essa era a sua chance, uma oportunidade que só um louco perderia.
Finalmente o próximo ônibus chega, e a nossa criança sonhadora de 26 anos sobe, cheio de esperança. Quando se acomoda em seu assento, passa a refletir em torno do seu emprego. Pensa no quanto foi estranha a sensação que se apoderou dele quando pesquisou no Google Mapas, e viu o que parecia ser apenas um galpão abandonado. Mas logo afasta a voz da consciência, e volta a se imaginar rico e bem sucedido. Danilo dedica-se então a observar as pessoas e imaginar quem são e o que fazem. Observa por uns segundos o sujeito que ajeita os óculos e no momento lê um jornal. Observa ainda o skatista que luta para desenrolar o fio do fone de ouvido e sorri satisfeito quando consegue, estupidamente percebendo que poderá finalmente ouvir seu rock progressivo. A menina do assento ao lado chora baixinho e abaixa a cabeça para que ninguém perceba, ela é bonita, então provavelmente amou um cara que só queria uma noite legal. Uma senhora de cabelos brancos e cheiro de perfume barato vê uma foto que aparentemente a deixa nostálgica, o que é denunciado pelo seu suspiro. Quando Danilo (Dan, para os mais chegados) finalmente cansa de olhar para as pessoas, põe-se a ler “seus” adorados contos de H.P. Lovecraft.
Após um longo tempo em que Dan olhava de cinco em cinco minutos para o percurso que o ônibus fazia - sem conseguir, no entanto, identificar os pontos de referência que tinha guardados na mente – verificou seu relógio de pulso e percebeu com espanto que estava no ônibus há uma hora. Isso era consideravelmente estranho, uma vez que o Google Mapas havia fornecido a informação extra importante de que ele levaria apenas 40 minutos para chegar onde pretendia. Também não havia chances de ter se enganado quanto às referências, eram tantas e tão claras... “Posso ter pego o ônibus errado?”, pensou. Viu então que isso era impossível, não estaria cego ou louco o suficiente para ter visto outro nome no letreiro. “Foda-se, o Google também pode errar”. Voltou a ler.
Trinta minutos mais tarde, Danilo se encontrava a beira do desespero. Percebeu a coisa mais estranha até o momento: o ônibus não parava nunca. Não era possível que num horário como aquele, em que as pessoas saem para trabalhar, ninguém precisasse pegar exatamente aquele ônibus. E o motorista seguia, precisamente na mesma velocidade. Rápido e – provavelmente, como diz a lógica – ignorando quem acenava para que parasse. A entrevista com certeza já estava perdida. Então, blasfemando mentalmente, pôs-se a observar com mais atenção o cenário que se passava por trás da janela de vidro. A timidez acentuada pela raiva (sim, Dan era certamente um sujeito diferente) o impedia de conversar com a cobradora. Em alguns segundos percebeu aterrorizado que já haviam passado por ali. Tudo era semelhante naquele bairro desconhecido( que ele não fazia ideia de qual fosse): janelas quebradas, geralmente fechadas. Sem sinal de crianças brincando na rua, estabelecimentos apertados e cheios de bugigangas. Não havia por ali sinal de gente. Até os bares, pareciam vazios. Além do mais, a única coisa que se podia ver pelas janelas abertas era a escuridão.
Danilo encontrava-se angustiado, sabia que já estava segurando o choro. Não se tratava mais de raiva, sentia medo. E ao mesmo tempo em que estava nervoso, não conseguia parar de observar o estranho bairro que se apresentava diante de seus olhos. Num dado momento, algo não exatamente bom, mas certamente diferente acontece. Numa das poucas janelas abertas (mais precisamente um buraco numa parede), ele viu uma coisa. Melhor dizendo, alguém. Era uma mulher, ou uma garota. Certamente, uma garota. Usava um vestido vermelho, também seus lábios eram escarlates e assim como os olhos, seus cabelos eram castanhos. Bonita, assustadoramente bonita. Ela o fitou por uma fração de segundos, com um olhar de súplica que parecia mais alertá-lo que pedir ajuda, e rapidamente foi tragada pela escuridão, como se algo a puxasse.
Agora, definitivamente, não era possível negar a si mesmo o fato de que estava no lugar errado, na hora errada. Danilo tentou controlar-se para não berrar, implorando o amparo de sua mãe. Resolveu dar atenção para os passageiros novamente, e depois decidir se desceria nesse lugar ou se esperaria para descer mais adiante. Eram mais de duas horas num ônibus que não passou por nenhum tipo de engarrafamento.
Danilo se concentra novamente nas pessoas. O sujeito simples ajeita os óculos e lê o seu jornal. O skatista luta para desenrolar o fio do fone de ouvido e sorri satisfeito quando consegue. A menina do assento ao lado chora baixinho e abaixa a cabeça para que ninguém perceba. A senhora de cabelos brancos e cheiro de perfume barato vê uma foto que aparentemente a deixa nostálgica, e suspira.
Parecia um pesadelo. Quem sabe fosse um pesadelo. Os outros passageiros faziam as mesmas coisas que estavam fazendo há duas horas e meia. Dan sentiu todo o seu corpo entrar numa espécie de transe momentâneo, era o famoso “estado de choque”, com direito a todos os sintomas: Pele fria, sudorese, palidez da face, respiração irregular, visão turva, pulso rápido e fraco, semiconsciência. Ele nunca soube e nem poderia saber por quanto tempo permaneceu assim. Quando despertou, movido por um sentimento nato de esperança, imediatamente levantou-se, e, resoluto, seguiu com passo firme a fim de falar com a cobradora.
- Ei, moça. Pode me dizer onde estamos? Como faço para chegar ao Parque da Liberdade?
Silêncio. A cobradora parecia fitar o horizonte, e não parecia ter notado a presença de Danilo.
- Moça? – Agora ele gritava, dominado por uma nova espécie de terror, o medo de estar sozinho.
Nem sinal de reconhecimento.
- CARALHO, TEM ALGUÉM VIVO NESSA PORRA? – Agora ele se dirigia aos passageiros.
Ninguém se moveu. Todos pareciam estar dentro de um mundo próprio, totalmente alheios da realidade. O skatista balançava a cabeça ao ritmo da música que ouvia, e a menina enxugava as lágrimas. A senhora olhava a foto antiga. Danilo então arranca os fones de ouvido do garoto, e atira o jornal do homem sério ao chão. Observa perplexo o garoto recolocar os fones e o homem pegar novamente o jornal como se nada tivesse acontecido. Definitivamente, era um pesadelo. Dan então pede parada. As portas nunca se abrem. Grita novamente, suas forças se esvaem, quebra o botão. Emprega o resto de sua força para despedaçar o vidro de emergência e puxar a alavanca, mas este não corresponde a suas expectativas. Pede parada. Reza. Tenta utilizar o celular, encontra-se fora de área. Como acordar de um sonho ruim? Danilo batia-se, jogava-se contra os ferros, e nada. Observou todos os detalhes, queimou alguns neurônios, mas não havia nada que pudesse ajudá-lo. Já nem olhava para o relógio.
De súbito, Dan vê algo me movendo na parte mais afastada do ônibus. Chegando mais perto, vê o que no momento era um anjo. Aquela garota! Toda pálida e aflita, ela sussurra as últimas palavras que Danilo ouviria:
- Vim avisar-te. Você está no limbo. Todo ele está contido nesta única palavra: solidão.
E tudo se tornou vermelho.