Fuga para a morte
Tarcísio ouviu um sino badalar distante. Meia-noite. O sono, porém, teimava em não vir e as lágrimas corriam por seus olhos vermelhos. Estava encolhido na cama, chorando e soluçando, ouvindo a briga dos pais. O pai, novamente, havia chegado bêbado e estava discutindo a mãe, uma briga sem sentido que, normalmente, resultava em hematomas na mulher.
O garoto não aguentava mais aquilo. Socos, gemidos de dor, vidros quebrados, cada som amplificado na solidão do seu quarto causavam novos estremecimentos e seções de lágrimas. Tarcísio não conseguia entender porque tinha que aturar tudo que acontecia na família, queria apenas levar uma vida calma, ser feliz com a mãe e com os amigos da escola, mas o pai impossibilitava tudo isso.
Não suportando mais ficar deitado o menino levantou e começou a andar pelo quarto, encostou o ouvido na porta, mas só ouviu os costumeiros xingamentos e vidros que se quebravam, nada de novo. Tarcísio parou e olhou para as coisas que havia no quarto, uma mochila vazia, pacotes de biscoitos que ele guardava para a noite, os bonecos da Liga da Justiça, livros da escola. Então, uma ideia começou a se formar na sua cabecinha infantil. Fugir de casa. Sim, isso resolveria o problema de uma vez por todas, ninguém mais ouviria falar nele. Não ia fazer que nem os amigos, que às vezes fugiam e iam para a casa dos avós, não, ele iria fugir de verdade, ia sair de casa, da cidade, quem sabe até entrar em um circo como via nos filmes, ainda não sabia ao certo, só sabia que o mais importante era ir para longe do pai.
O garoto pegou as bolachas, dois bonecos, um canivete que havia ganhado de presente de aniversário, algumas mudas de roupa e colocou tudo na mochila, depois a atirou pela janela do quarto no primeiro andar. Agora começava a parte difícil: como sair? Pular estava fora de questão. A única saída era a porta da frente, passar pela briga. Ignorar o pai seria fácil, Tarcísio não conseguia sequer chama-lo de pai. Ele não sabia se conseguiria encarar a mãe, mas era o único jeito. Abriu a porta do quarto e foi andando lentamente, como se estivesse se despedindo de todos os objetos da casa. Passou reto pela sala, parou em frente à porta, pegou na maçaneta e ouviu a mãe falando entre soluços:
- Onde você está indo, filho? Está tarde, volte pra seu quarto.
- Cale a boca mulher! Se ele quer sair o problema é dele, tem mesmo é que aprender a se virar sozinho! – Seu pai mal acabou de falar e esmurrou a mãe, um soco que a fez voar para uma prateleira onde guardavam alguns cristais derrubando todas as frágeis peças, o som deles se partindo apenas serviu para firmar a decisão do garoto.
Tarcísio abriu a porta, o ar frio da noite o envolveu, saiu para o jardim olhando para a lua, enorme, cheia, linda. O garoto contornou a lateral da casa, pegou a mochila, voltou ao portão e ainda teve tempo de ouvir a mãe gritar:
- Paulo, seu filho está fugindo de casa!
- Não grite comigo vadia! Eu sou o homem desta merda de casa e não vou suportar que grite comigo!
Novamente a fala foi emendada por um soco. O menino atravessou o portão e caiu no escuro véu da noite, não sabia para onde ia, seus pés o levavam pelas ruas, desertas àquela hora, o único som que ouvia era a sola dos tênis batendo contra o asfalto. O sino da igreja badalou uma ultima vez. Tarcísio parou, perdera a noção de tempo, parecia que já haviam passado algumas horas desde que saíra de casa, mas na verdade passaram-se poucos minutos. Sentiu um calafrio, olhou para os lados, não sabia onde estava, caminhou até debaixo do halo de luz de um poste, numa viela ao lado pensou ter divisado duas pequenas chamas. Tornou a andar, dessa vez mais rápido.
Os postes estavam cada vez mais esparsos e seu folego acabando. Nos longos metros de escuridão o garoto se forçava a correr a toda velocidade e numa dessas corridas divisou as chamas novamente. Duas pequenas chamas que flutuavam, não sabia por que, mas aquilo o enchia de medo.
Parou dentro de um circulo de luz para comer algumas bolachas, na pressa acabou esquecendo a água, mas era melhor que nada. O calafrio novamente. Olhou para os lados e viu as chamas, mas o circulo de luz o deu coragem para observar por mais um tempo e ele conseguiu divisar um rosto.
Um rosto branco, anormalmente branco, com lábios muito vermelhos repuxados num esgar demoníaco que permitia visualizar dois caninos extremamente longos, mas o mais assustador foi perceber que aquelas chamas na verdade eram os olhos da criatura brilhando em vermelho. Uma palavra veio-lhe à mente, vinda das histórias que andava lendo ultimamente: vampiro.
Não pensou duas vezes, levantou e correu o máximo que suas pernas conseguiram, correu para salvar a vida, mas parecia que quanto mais corria mais perto a criatura se encontrava. Podia até ouvir sua respiração, passava rápido pelas luzes e agora a cada vez que olhava para os lados via o vampiro.
O menino conseguiu imprimir mais alguma velocidade, mas sentia que seu corpo não aguentaria muito tempo, uma dor começava a se desenvolver na lateral do abdômen. Ele sentiu um hálito pútrido e uma mão tocou-lhe o ombro. Em desespero baixou a cabeça e correu mais, sabia que estava no limite do corpo, se o monstro conseguisse correr mais que ele estaria acabado. Em meio a esse pensamento a cabeça do garoto bateu em algo duro como rocha, o que o fez cair para trás. Levantou a vista pensando ter atingido um poste, mas viu horrorizado o vampiro, que começou a gargalhar.
Tarcísio sabia que não conseguiria fugir. Se os livros estivessem certos não havia maneira de escapar, o jeito era tentar enfiar alguma coisa naquele coração morto. Pegou o canivete e colocou-se em posição de ataque. O vampiro continuou rindo, para ele aquilo não passava de um passatempo divertido.
Com o canivete em riste avançou para o monstro. Esforço inútil. A criatura o agarrou pela garganta, levantou-o como se fosse um de seus bonecos, encostou a boca no seu ouvido e sussurrou:
- Você está morto.
Aquela frase fez o corpo de Tarcísio gelar. Todo o sangue sumiu da face e o medo tomou conta dele. O vampiro inflou as narinas, farejando o medo como um cão fareja um suculento pedaço de carne. Sorriu de prazer. Esmigalhou a garganta do garoto e cravou as malditas presas nele.
O menino se debateu um pouco, mas enfraquecia a medida que cada gota do precioso liquido vital esvaia-se de seu corpo. A vista saia de foco. Um entorpecimento mórbido tomou conta dele e foi morrendo lentamente nas mãos da criatura. Na sua cabeça infantil a lua parecia tomar o formato do rosto da mãe. E então, o escuro.