Nádia

A escuridão foi sumindo, como uma introdução de filme de cinema e aos poucos enxerguei uma trilha no meio de uma mata, não tão densa e fechada, mas o suficiente para se perder. Escutei o ronco de uma motocicleta, bem ao longe. Segui pela trilha e a mata foi diminuindo, o sol estava a pino deixando fachos de luz entrarem por entre as arvores, o barulho de automotores aumentava à medida que seguia em frente.

Olhei para minhas mãos, algo diferente existia e não conseguia identificar, não sentia a brisa leve que mexia as folhas, eu achava que o tempo estava quente, mas sem convicção porque o calor não tocava minha pele. Minha pele... Nunca foi tão alva como a enxergava agora, parecia ter uma áurea emanando dela, antes de qualquer outra constatação cheguei até a beira da pista, uma rodovia.

Caminhei bem no canto da pista, sem saber como, onde e porque de tudo. Dois ciclistas vinham na direção contrária, de encontro a mim.

— Ei!!! Vocês sabem...

Os dois passaram quase me atropelando, que falta de educação a deles eu pensei, resolvi atravessar a rodovia, não passavam tantos veículos naquela hora. Tinha uma pequena abertura na mureta que dividia a autoestrada, atravessei, me localizava bem perto da fissura quando vi se aproximar um veículo, ele devia estar a uns 100 metros de distancia de onde eu me encontrava e provavelmente a mais de cem quilômetros por hora. Quando passou ao meu lado, por um momento percebi que ele me viu. O carro derrapou, virou 90 graus para a esquerda e deu varias piruetas no ar, encontrando o asfalto várias outras vezes com violência, o veículo estava muito amassado agora.

Por alguns momentos fiquei parada ali mesmo, olhando fixamente para o carro, agora imóvel e sem nenhuma menção de qualquer um dos ocupantes saírem de dentro.

— Não era pra você estar aqui!...Não era par nós estarmos aqui!..

Escutei alguém falando a mim, me virei e vi um homem, uma mulher e uma menina que seguiu dizendo: — Meu pai te viu... se assustou... e agora nós estamos mortos!!!

Corri até o veiculo, já existiam algumas pessoas curiosas perto dali, ninguém parecia se importar comigo, cheguei bem perto e olhei para o interior do carro. O homem estava com a cabeça aberta e os miolos para fora, a mulher com um pedaço de vidro atravessado no meio da garganta e a criança quebrou o pescoço com o cinto de segurança que era grande demais pra ela, todos ensanguentados.

— Viu o que fez?!!!

Disse a menina atrás de mim, eu sem saber o que argumentar disse a ela:

— Sinto muito... mas não fiz nada... não sei nem onde estou... o que aconteceu comigo?!!!

— Você morreu!!! Disse o pai, rispidamente.

A cruel verdade dos acontecimentos se revelara a mim, eu estava morta... sem saber, sem lembrar o que me ocorrera... quem me fez isso, tinha apenas 16 anos... ainda me lembrava da festa de debutante que minha mãe me preparou um ano atrás. Uma mistura de tristeza, agonia e ódio inflamavam meu ser com uma intensidade incrível. Corri até onde eu estava anteriormente e segui pela trilha novamente, até chegar a uma clareira. Lá estava meu corpo, roupas rasgadas, sutiã até a metade da barriga, mamilos arrancados, calcinha pra baixo dos joelhos, uma faca cravada na minha face, sangue... muito sangue, uma visão macabra da morte. Horrendo perder a vida desse modo, ódio... ódio!!! Esse era o que me restou, como meus pais me encontrariam aqui?

Mas quem foi, que monstro seria capaz de tal atrocidade?!!! Gritei:

— Pela minha alma daria tudo para encontrar esse infeliz!!!

— Você disse pela sua alma?!!!... Um homem subindo ao lado falou.

Pés descalços, bata branca, calvo, sem sobrancelhas e sem cílios, se aproximava. Rodeava o meu corpo que ali estava estendido e prosseguiu dizendo:

— Hummm!...Corpo de mulher, mas ainda uma criança! É Nádia meu garoto fez um belo serviço aqui!... Te estuprou e matou, enquanto você estava inconsciente!... Mas seu trabalho com você foi seu maior erro, acarretando sua vinda antecipada pra mim. Ele me mandou tanta puta ruim nesse meio tempo... Mas ele tinha que te pegar!!! Era sua obsessão.

Um tremor interior me sobreveio, atenuando até mesmo a cólera que me consumia. Mesmo já pressentindo sua resposta o indaguei:

— Quem é você e como sabe tudo isso?

— Nádia... tenho vários nomes em muitos lugares e épocas distintas...

— És o diabo!!!

— Apenas trabalho para ele. Sou um mensageiro, por assim dizer, e tenho um trato pra você, Foi o próprio "Luci" que me mandou aqui!

Num piscar de olhos aquele homem transfiguro-se para uma forma feminina, enquanto virava-se pra me encarar.

— Te dou em suas mãos o cara que te fez isso e de quebra ainda permito que seu corpo seja encontrado para seus pais poderem te enterrar e ter esse pequeno alento... Se quiseres, basta vir comigo...

O demônio do inferno estendeu sua mão para mim. Mãos grandes, unhas compridas, vermelhas, com seu ar prepotente, parecia até generoso, um sorriso sagaz, confiante, sabia que eu não tinha muitas escolhas. Se recusasse, meus pais talvez nunca achassem meu corpo, iriam ficar numa eterna esperança falsa e agonia. Por outro lado se aceitasse, sabia bem no meu íntimo que estaria condenada a queimar em brasa e fogo por toda a eternidade. Meu fervor por vingança falou mais alto. Quando toquei na mão do demônio, de súbito já estava em outro lugar, uma linha de trem passava bem próximo de onde eu me encontrava agora. Mais a frente avistei um boteco, boca de porco como se costuma dizer, já era noite. Fui em direção do bar e assim que vi um homem debruçado no balcão, me veio em aparições tudo o que ocorrera comigo, flashes de informações vinham a minha frente me mostrando tudo. O desgraçado esperou-me na saída da escola, quando justamente naquele dia minhas amigas não saíram comigo. Num beco escuro por onde sempre passei ele espreitava e com um lenço embebido com algum produto com cheiro forte me fez desmaiar, pelas costas ele me dominou e me colocou em seu carro.

Aproximei-me e ainda via alguns flashes dele me cortando com uma faca, satisfazendo seu desejo selvagem sobre minha carne e sangue. Ele saiu, carregava uma garrafa consigo, fiquei ao lado do bar observando para onde iria. Se dirigiu para uma rua pouco iluminada, perto da linha férrea, o segui, já era hora de mandá-lo pro inferno.

— Filho da puta!!!

Ele se virou, largando o vasilhame quando me viu.

— Não!!! Você não!!!... Veio para me assombrar...

Parecia um espectro flutuando no ar com os olhos marejados de sangue.

— Agora eu vou possuir você!!! HA HA HA HA!!!

Um som forte se aproximava... o trem... que mal tinha iluminação naquele lugar, por isso ele não viu... ele só via a mim! Gritava, urrava se estremecia e ia caminhando para traz sem tirar os olhos da minha figura transfigurada. Estiquei meus braços para pega-lo, ele se virou e correu, não teve tempo de reação, a locomotiva o destroçou por completo.

Olhei e vi em uma de suas pernas que haviam sido decepadas, no bolso havia um pequeno pedaço de papel com abreviações, os indícios que mostrariam a policia onde meu corpo estava.

8:30 da manha seguinte, minha mãe nem deu atenção para o telefone tocando insistentemente, ela só ficava olhando minha foto, meu pai que estava de licença da empresa atendeu, um policial pedindo pra fazer o reconhecimento do meu corpo, ele foi até a trilha junto com um soldado da PM. Aterrorizado ao me ver daquele jeito só conseguiu gritar e chorar.

— MINHA FILHAAAAAAAA!!!! NÁDIAAAAAA!!!

Eu vendo tudo ao seu lado quando uma mão com unhas vermelhas me tocou o ombro:

— É hora de irmos Nádia.