A Velha
Letícia foi visitar a casa que ela e o marido compraram. Um sonho de infância realizado. Uma mansão centenária, de dois pisos, no meio de um enorme terreno, repleto de variada vegetação, em um bairro nobre da capital, que ainda conservava diversos casarões, principalmente na rua onde a médica escolheu para morar.
Caminhava pelo jardim lembrando que todos os dias, quando vinha do colégio, admirava o palacete, através das grades dos altos portões, fazendo o juramento que estudaria e trabalharia arduamente até conseguir comprá-lo.
Ao abrir a porta de ferro com vidros olhou encantada para os vitrais. Pensou em quantas vezes os admirou depois que comprou a casa e sempre se surpreendia com sua beleza.
Percorreu o imóvel vazio, conferindo o que precisava ser mudado ou reformado. Preservaria os vitrais, o mármore do chão e o gesso no teto. Queria tudo pronto para quando os filhos que moravam na Europa viessem visitar os pais.
Quando chegou à suíte de casal, um enorme recinto com uma grande sacada que dava para a rua, um estremecimento e um frio tomaram conta de seu corpo. Ela cruzou os braços e os esfregou tentando se aquecer. Sem saber o porquê, lembrou de uma vidente que conhecera quando caminhava com uma amiga em uma rua do centro da cidade, há mais de vinte anos. Ela apenas lhe disse que ela seria uma mulher muito rica, mas, teria uma morte trágica. Letícia aumentou a fricção nos braços, tentando esquecer a profecia. Estranhou ter dito o pensamento, que há muito tempo não lhe vinha à mente. Nada podia estragar sua alegria de ter realizado um sonho tão almejado.
Semanas depois, quando a reforma estava concluída, ela e o marido visitaram diversos antiquários. Queriam móveis que resgatassem toda a atmosfera daquela mansão que pertencera a uma antiga e tradicional família, e, que hoje, pelo que sabiam, restara apenas uma herdeira, a idosa que através de um procurador negociara a casa.
Letícia ficava encantada ao imaginar as concorridas recepções, os requintados jantares, chás e passeios pelos enormes jardins que aquele imóvel servira de palco.
Nos primeiros dias percorreu várias vezes cada recinto com o marido vendo o que ainda faltava, o que poderia ser melhorado para que a residência ficasse ainda mais de seu agrado. Logo depois, Dirceu teve que viajar a negócios e ela não se importou de ficar sozinha na mansão. A cozinheira e a faxineira vinham pela manhã e iam embora à tardinha. Era preciso escolher uma governanta que cuidasse da manutenção e funcionamento da moradia e uma pessoa para os serviços noturnos, como servir a janta ou então preparar algo para alguma visita inesperada.
Na primeira noite solitária ficou prazerosamente na biblioteca trabalhando e depois leu um livro. Ao subir para o quarto a cada degrau conquistado sentiu estranhamente um frio se apoderar de seu corpo. Parou no meio do caminho, estranhando que o barulho do relógio parecia ter seu som aumentando e que fora isso, não houvesse nenhum ruído. Era um silêncio pesado, mórbido.
Quando chegou ao andar superior viu cruzar pelo corredor uma senhora de estatura mediana, muito magra, que caminhava com um andar firme e que trajava um vestido e uma blusa preta coberta por um xale cinza. Tinha um cabelo branco e longo, penteado para trás e uma trança que se estendia até o meio de suas costas, retas como as de uma bailarina.
Letícia demorou alguns segundos para se recuperar da surpresa. “Quem era aquela senhora? Como conseguiu entrar, se estavam todas as portas trancadas?” Ela mesma se certificou, uma por uma. Recuperada do espanto correu até o quarto onde a mulher entrara e não a encontrou. Foi até o quarto do casal, de onde ela saíra e também estava vazio. Ficou imóvel tentando descobrir algum ruído que denunciasse a presença da intrusa, mas, só ouvia o som do relógio no corredor, que cronometrava sua agonia.
A dona da casa tinha medo, sofria arrepios por todo o corpo. Tentou se controlar, pensando que fora uma alucinação. Talvez estivesse estressada pelo trabalhado ou cansada da leitura na biblioteca.
Deitou e procurou esquecer a aparição. Mas, não conseguia dormir atormentada pela imagem da idosa. Levantou-se para ir ao banheiro e ao chegar à porta do dormitório viu novamente a mulher cruzar pelo corredor, indo de um quarto ao outro. Colocou um casaco sobre a camisola, porque sentia um frio de geada naquela noite mormacenta de verão e correu atrás da invasora. Mas, ao chegar ao recinto onde ela penetrara não a encontrou.
Sentou na poltrona ao lado da cama e procurou se acalmar. Tremia e tinha vontade de chorar. Teve a idéia de ligar para alguém, mas, era muito tarde e não queria incomodar um parente ou amigo com uma estória que considerava tão absurda.
Olhou para a porta e viu a idosa passar novamente no corredor. Criou coragem e correu para tentar acabar com sua angústia, mas, não a encontrou mais.
No dia seguinte, mesmo perturbada foi trabalhar. Com medo de zombarias, não comentou com nenhum colega o que ocorreu, nem com as empregadas em casa. Pensava que precisava contratar a governanta e mais alguém para ficar à noite, o mais rápido possível. O marido telefonou, mas, ela não comentou o caso, não queria lhe causar preocupação.
Quando antes de deitar estava em frente ao espelho do banheiro penteando os cabelos, teve um susto ao ver atrás de si o vulto da mulher. Deixou a escova cair ao chão e de olhos arregalados olhou no espelho a senhora de olhar frio e fixo, de pele extremante branca e enrugada. Os olhos eram negros, sem brilho. A boca contraída e os lábios ressecados. O rosto magro, chupado, quase uma caveira. Ela a mirava sem demonstrar nenhum sentimento. Nada. Nem raiva, nem espanto ou alegria. Apenas a mirava em silêncio. Um silêncio de sepulcro. Letícia virou-se rapidamente, mas, a figura desapareceu. A dona da casa sentiu seu corpo ser tomado por calafrios. Suas mãos tremiam, sua pele se arrepiava. Os lábios estremeciam cada vez mais e ela tinha vontade de chorar. Cruzou os braços para se aquecer do frio gélido e correu para o quarto onde trancou a porta. Foi ao armário, pegou uma manta grossa e deitou na cama, coberta até os olhos que não desgrudavam da entrada fechada do dormitório com medo da invasão da desconhecida.
Ao amanhecer, Letícia estava assustada e confusa. Não foi trabalhar. Sentia-se cansada pela noite não dormida. Ficou em casa dando ordens às empregas e à tarde quando duas colegas vieram saber o porquê de sua ausência no hospital, não quis lhes contar o que tanto lhe causava horror. O marido ligou e ela pediu ansiosa que ele retornasse logo. Frente à insistência de Dirceu que notou seu estado alterado, ela apenas lhe confessou que sentia medo de ficar sozinha naquela imensa casa.
À noite, assistiu televisão até tarde. Tinha receio de ir para o quarto e encontrar a velha pela casa. Mas, ao levar a louça do chá até a cozinha deu de cara com ela no corredor. A xícara, o pires e o bule se espatifaram no chão. Letícia apavorada tremia e encarava com terror aquela figura imóvel, muda, que a mirava com um olhar fixo, sem demonstrar a mínima reação. Ficaram assim paradas frente a frente por alguns segundos. Letícia ouvia o tique-taque do relógio e o som de sua respiração cada vez mais acelerada. Agora o silêncio da mulher e a imobilidade daqueles olhos negros lhe davam mais medo do que sua presença. Balbuciante perguntou quem era ela? O que queria? Mas a mulher não lhe respondeu. Simplesmente continuou a perambular pela mansão.
Sem conseguir se controlar, as mãos tremendo, o corpo tomado por suores e arrepios subiu ao quarto, abriu apressadamente o guarda roupas, vestiu-se de qualquer maneira, apenas para não sair com trajes de dormir, atravessou o jardim escuro, correu à garagem, entrou no carro e arrancou em disparada. Seu medo e descontrole eram tamanhos, que ela tinha dificuldade em controlar o veiculo, fazendo-o ir de um lado para o outro, como se ela estivesse bêbada. Ao chegar ao portão, sua mão tremia tanto que ela apertou várias vezes no botão do controle remoto. O portão abriu até a metade e logo fechou. Tornou a abrir e fechar outra vez, demorando um pouco até abrir novamente, o que aumentou sua angústia. Ao obter êxito, ela tornou a pisar fundo no acelerador, raspando com a lateral do automóvel na coluna do portão.
Percorreu em alta velocidade as avenidas sem movimento. Minutos depois é que se deu conta que não tinha um destino. Parou o carro numa rua deserta e escura. Não conseguia se acalmar e controlar a tremedeira que se apoderou de seu corpo, principalmente das mãos e dos lábios. Tinha frio, mas, gotas de suor escorriam por sua face. O estremecimento agora chegava também às pálpebras e ela tinha dificuldade em ver a rua de altos muros e depósitos abandonados em que estava. Baixou a cabeça e passou as mãos trêmulas pelo rosto ensopado e suas palmas, além do suor, ficaram molhadas também de suas lágrimas.
Letícia não sabe quanto tempo permaneceu ali. Mas, mesmo nervosa teve a consciência de que corria o risco de um assalto. Não queria ir àquela hora da madrugada pedir abrigo na casa de amigos, ainda mais com uma estória absurda como a que vivia. Foi para um hotel.
Pela manhã, Dirceu chegou em casa. Não encontrou a esposa. Não estranhou, afinal, talvez ela tivesse ido mais cedo para o hospital ou para o consultório. Aproveitou sua ausência para esconder no escritório alguns papéis, que não queria que Letícia visse. O pretexto de sua falsa viagem de negócios. Exames que comprovavam que ele tinha câncer em estágio muito avançado. Segundo os médicos, ele tinha poucos meses de vida.
Após guardar sua sentença de morte, Dirceu foi à sala, onde a faxineira trabalhava. Perguntou pela esposa. A jovem disse que não a viu quando chegou. Que a porta estava aberta e que ela e a cozinheira estranharam a ausência da patroa. Dirceu ficou apreensivo. Tentou se acalmar, pensando que Letícia pudesse ter ido atender alguma emergência. Mas, o receio de que alguma violência tivesse lhe acontecido latejava em sua mente.
Minutos depois, ao ver o estado em que sua mulher entrou em casa, o medo se dissipou dando lugar ao espanto. Letícia andava como uma sonâmbula. Estava despenteada e desarrumada. Tinha um olhar perdido, quase de louca e suas roupas amarrotadas e desabotoadas. Logo ela que sempre fora tão vaidosa. Dirceu pressentiu que alguma tragédia havia corrido e apressou-se em abraçar a esposa. Sentiu o frágil corpo ser tomado por convulsões e um choro se tornar cada vez mais alto e intenso. Acariciava o rosto e os cabelos loiros, longos e lisos, repetindo baixinho para que ela tivesse calma. Permaneceram em pé abraçados e em silêncio por alguns instantes, até que ele a sentou no sofá e pediu que lhe contasse o que houve, mas, ela só chorava e tremia.
A mando do dono da casa, a empregada correu para buscar água com açúcar. Dirceu se assustava cada vez mais com o estado e o silencio da esposa. Ele lhe alcançou o copo. Letícia tremia tanto que o liquido escorria entre seus lábios pingando em sua blusa azul de seda. O marido olhava o semblante de terror da esposa e tinha certeza que algo de muito grave havia acontecido à mulher que sempre fora o grande amor de sua vida. Levantou-se para chamar um médico, quando ela lhe segurou pelo braço e pediu que a levasse para a biblioteca. Não queria que as empregadas fossem testemunhas de sua loucura.
A presença do marido e o fato de estarem sozinhos no recinto a tranqüilizou. Letícia contou todos os detalhes do que ocorreu. Tinha certeza de que era o espírito de alguma moradora daquela casa que agora surgia para assustá-los. Dirceu achou que tudo não passava de sua imaginação. Era stress devido a tantas horas de trabalho. Propôs uma viagem para que ela se recuperasse, mas, a esposa apenas balançava a cabeça, discordando do marido e dizendo que sua estória era verdadeira. Ele tentou novos argumentos. Lembrou à mulher que eles nunca acreditaram em nada de sobrenatural ou em religião. Mas, Letícia continuava em seu delírio, apenas balançando suavemente a cabeça e sussurrando que o marido estava errado e que tudo aquilo que ela lhe relatava era verdadeiro.
De repente, Letícia ficou ainda mais agoniada. Sua respiração se acelerou, gesticulava e balbuciava palavras que o marido não conseguia compreender. Dirceu procurou novamente acalmá-la. Pedia que ela respirasse fundo, devagar, não ficasse aflita. Esperou alguns instantes sempre pedindo calma toda vez que a mulher tentava e não conseguia se expressar. Respirava com dificuldade pela boca, tentava falar, mas, só pronunciava monossílabos sem nenhum sentido e logo começou a se lamuriar. Tapava o rosto com as mãos, gemia e o seu pranto era cada vez maior.
Depois de algum tempo, tentando se controlar, com o olhar fixo na parede como se buscasse algum tipo de apoio, revelou ao marido que aquele fantasma era a vidente que alguns anos havia lhe dito que ela teria uma morte trágica. Tinha certeza. Era ela. Só que mais envelhecida. Mas, estava convencida de que era a mulher que quando ela e Solange caminhavam por uma rua do centro da cidade lhes pediu esmola e olhando no fundo de seus olhos lhe fez a profecia.
Dirceu abraçou a esposa, afagou-a enquanto sussurrava que era tudo bobagem, imaginação e que logo iria passar.
À noite o casal jantou. Após, foram à sala da televisão, assistiram a um telejornal e depois conversaram e tomaram chá. Quando estavam se preparando para irem para o quarto ambos sentiram a temperatura cair. Um silêncio pesado tomou conta de todo o casarão, apenas, o som do relógio era ouvido e Letícia viu quando o vulto cruzou pelo corredor. Gritou e apontou em direção à porta. Dirceu pressentiu algo atrás de si, virou com rapidez e correu para o corredor. Viu a mulher de costas e a perseguiu perguntando cada vez mais alto:
- Quem é você? Quem é você? Pare! Pare! Quem é você?
A mulher se virou, mirou-o com seus olhos fixos, o semblante sem nenhuma expressão. Ele repetia as perguntas, mas, não obtinha resposta. Voltou à sala ameaçando chamar a polícia. Pegou no telefone, estava mudo. Rapidamente procurou o celular. Encontrou-o na mesinha de centro. Também não conseguia completar a ligação. Estranhou tudo aquilo. Tentou agarrar a mulher, mas, ela se esquivou. Novamente procurou segurá-la e ela agarrou sua mão torcendo seu braço. Logo após, jogou-o contra a parede, fazendo com que Dirceu caísse de costas no chão. A força desproporcional da idosa o fez acreditar que se tratava de um homem travestido, um ladrão. Transtornado, subiu as escadas correndo a procura do revólver que guardava no quarto. Quando retornou encontrou a mulher na sala. Estava imóvel entre ele e sua esposa. Apontando a arma lhe perguntou quem era e ela lhe respondeu:
-Eu sou a morte. Vim buscar a sua mulher.
-Não! Não! Não – repetia enquanto apontava a arma.
Notou que a imagem tinha um sorriso sarcástico, mal, que o revoltou profundamente e ele deu seis disparos contra o espectro que se esvaecia. O barulho da arma ecoou pela casa e encobriu o ruído monótono e ritmado do relógio. Quando a imagem sumiu completamente, Dirceu viu o corpo da esposa caído no chão crivado de balas. Correu até ele. O sangue escorria de três furos no peito e um na cabeça. Dois tiros atingiram a parede.
Desesperado, foi até o telefone, que continuava mudo. Olhou para a velha que havia voltado e levava em seus braços o cadáver de Letícia, sem demonstrar nenhum esforço, como se ele fosse uma pena. Dirceu observou o corpo mole da esposa com os braços que pendiam no ar. Desesperado, tentando evitar que a bruxa levasse sua amada para as trevas tornou a carregar o revólver. Suas mãos tremiam. Errava a colocação das balas no tambor, fazendo com que elas caíssem no tapete. Olhou para a velha que lhe disse, ainda segurando Letícia no colo.
- Depois, eu volto para te buscar! – e se virou levando o cadáver.
Dirceu olhou a mulher que se afastava carregando sua esposa. Os braços e as pernas de Letícia balançavam de cada lado do corpo ereto da velha. Trêmulo, Dirceu gritou:
-Nãããããoooo!
E disparou cinco vezes nas costas do fantasma. Mas, a imagem foi se dissipando e junto com ela, Letícia. Atordoado, Dirceu correu até o corredor onde a aparição sumira e não encontrando nenhum vestígio, entrou num desespero tão grande, que começou a chorar e abrindo a boca, enfiou o cano do revolver até ele atingir o céu da cavidade e disparou a única bala que a arma ainda tinha.
No dia seguinte, informada pelas empregadas, a polícia encontrou o corpo do marido no corredor e o de Letícia na escada. A imprensa noticiou a suspeita da policia. Crime passional seguido de suicídio. Ciúmes. Talvez a descoberta de um possível caso extraconjugal da esposa ou então um pedido de separação que ele não aceitava eram as hipóteses mais prováveis.
Dias depois, a mansão estava novamente vazia. No quarto que era do casal, a morte espreitava pela janela as pessoas na rua, que apontavam para o casarão, mostrando e comentado com amigos onde ocorrera a tragédia.
Parecia que a velha escolhia entre aquelas crianças, mulheres e idosos qual seria a sua próxima vítima. Pensou: “ quem sabe aquela pequenina que está no carrinho de bebê?”.
Sorria. A morte debochava da vida e dos homens.