Vermelho Escuro
“Depois de ter dado abrigo ao mau, ele não mais precisará que você acredite nele”.
Franz Kafka.
Levantei-me a pulso naquela manhã, a minha perna estava cada vez pior. Tudo começou no dedão do pé esquerdo e depois a coisa se agravou, acabou acometendo meu tornozelo e joelho. Como sofro de gota, achei que fosse mais uma crise dessa dolorosa doença. Com o passar do tempo percebi que estava completamente enganado e meu problema não era o excesso de ácido úrico em meu organismo. Meu problema era outro, bem outro. Dentro de minha circulação navegava uma doença redentora. Fui infectado por uma espécie bacteriana invulgar, transformadora; sublime.
Esse sofrimento já durava quase sessenta dias, em alguns deles sentia-me bem melhor, dias que me davam esperanças de que o pé iria melhorar definitivamente. Em outros, ocorria uma piora significativa, como neste dia que estou contando, que me fez pensar em procurar um médico o mais rápido possível. Sentimento que logo se dissipou. Não gosto de médicos; tenho medo deles. No entanto, apesar do meu pé, o que mais me inquietou naquela manhã de sábado, foi quando me olhei no espelho. O rosto que eu vi me pareceu estranho. Não sabia dizer exatamente o que estava errado, mas sabia que tinha alguma coisa mudada, sutilmente transfigurada; metamorfoseando-se em silêncio. Os olhos que me fitavam no reflexo não pareciam ser os mesmos que estavam comigo. Os olhos do espelho pareciam seguros, pragmáticos, frios e insanos, ao passo que os olhos deste lado, do meu lado, os meus olhos de verdade, sempre revelaram o olhar de uma pessoa insegura, dócil e compassiva. Muito me incomodou, também, foi o cheiro que exalava de mim. Um cheiro acre, pestilento, que curiosamente e, convenientemente, depois eu descobri, somente eu sentia.
Quando levantei da cama e saí do quarto a Léa já estava de pé há muito tempo, como era de seu costume. Ela estava na cozinha aprontando uma encomenda de doce de leite. Fui coxeando até lá e pedi para que ela olhasse bem para meu rosto. Ela perguntou impacientemente por que, e disse que não estava no clima para as minhas brincadeirinhas sem graça. Eu disse que não era nenhuma brincadeira, que era sério, que queria que ela olhasse com atenção para meu rosto e me dissesse se via alguma coisa de errado nele, alguma mudança em minhas feições, se meu olhar tinha mudado, se ela via alguma diferença em minha face. Ela percebeu que eu não estava de zombaria e me examinou com afinco. Depois de algum tempo ela disse:
- Não vejo nada de mudado em você.
- Sério mesmo? Não viu nada de errado? E o meu cheiro? Sinta aqui. E cheguei com meu pescoço perto do nariz dela. Ela deu uma boa fungada e falou.
- Tá normal, tá com cheiro bom.
- É?
- É sim. Deveria estar fedendo?
Quase digo que eu estava sentindo um cheiro ruim saindo de mim, acabei não dizendo. Não queria aporrinhá-la com minhas esquisitices, e também acho que ela não entenderia, aliás, nem eu compreendia aquilo que eu estava sentindo.
- Não, não, tá tudo bem, deixa pra lá. Respondi. Ela deu de ombros e continuou sua tarefa, ela me conhecia o suficiente pra não dar muita importância as minhas costumeiras sandices.
Tomei meu café em silêncio enquanto Léa enchia os potinhos com o doce de leite.
Eu me sentia fraco. A dieta que eu estava fazendo para tentar me recuperar do problema, - que eu achava que era excesso de ácido úrico -, tava acabando comigo, deixando-me debilitado, sem forças, pelo menos era isso que eu pensava. Eu associei minha falta de força à ausência de carne, de proteína, em minha alimentação durante aqueles dias. Nunca tinha ficado tanto tempo num regime tão rigoroso como ao que eu estava me submetendo. Cortei toda a carne vermelha, peixes e afins, miúdos, tomates, molhos, e bebidas alcoólicas, - de carne de aves nunca gostei. Minhas refeições eram frugais e insípidas, e todo o ardor e voracidade que eu sempre dispensei a comida tinham evaporado como num passe de mágica. E o mais irritante de tudo era que parecia ser em vão. Toda minha dedicação na mudança de hábito alimentar não surtia o efeito esperado. Nenhuma outra crise tinha demorado tanto para desaparecer como desta vez, e eu me encontrava a cada dia pior, mais enfadado e enfraquecido. A vontade de comer um belo pedaço de bife sangrento me enlouquecia. A saliva escorria por minhas comissuras labiais só de lembrar o gosto de um suculento filé mal passado.
O desjejum não me caiu bem e vomitei pouco depois de ter me alimentado. Corri para o banheiro e regurgitei tudo. Um cheiro nauseabundo contaminou todo o ambiente. Um odor de coisa podre, asfixiante, subiu queimando minhas narinas. Nem nos meus porres mais fenomenais, durante minha juventude, quando bebia de tudo e muito, eu expeli um lanço tão pútrido como aquele. Parecia que todo o alimento que coloquei no estômago tinha se estragado instantaneamente. Para minha sorte Léa não estava mais em casa, se estivesse, ela iria encher o meu saco dizendo que eu estava bebendo escondido, e coisa e tal, e seriam mil e uma reclamações, e falatórios, e todo aquele blablablá típico do sexo feminino, típico das esposas. Ela tinha ido fazer a entrega dos doces e ficaria o restante do fim de semana no nosso sítio na companhia dos meus pais. Só retornaria para a cidade na segunda-feira cedinho.
Fui até a pia para lavar-me. Enchi minhas mãos de água bem gelada e joguei no meu rosto. A água escorreu fresca e reconfortante pelas minhas bochechas, descendo pelo pescoço. Enxuguei o excesso de água com uma toalha, levantei a cabeça, olhei-me no espelho e tomei um baita susto. Os olhos refletidos, do estranho que não era eu, me miravam de forma impávida, o que fez meu coração disparar de medo. Rapidamente retirei meus olhos do reflexo e evitei os espelhos durante o resto do dia.
Saí do banheiro manquitolando e fui deitar-me em minha cama. Liguei o ventilador, peguei o livro que estava no criado mudo e fui ler. Eram, ainda, nove e quinze da manhã. O livro era “A Revoada” ou “O Enterro do Diabo” de Gabriel Garcia Marquez.
Acordei esbaforido de um pesadelo medonho. Sonhei que caçava. Eu estava perseguindo um coelho branco. Ele tentava fugir de meu perdigueiro que ia ao seu encalço. Meu cachorro conseguiu fazer com que ele, o coelho, fizesse uma volta de noventa graus e viesse diretamente na minha direção. Eu estava armado com uma espingarda calibre 22 e não perdi a oportunidade. No entanto, ao contrário do que se possa pensar, eu não atirei, eu joguei o rifle de lado e pulei de forma animalesca e instintiva em cima do pobre animal, cessando sua desesperada fuga com o peso de minhas patas, das minhas mãos, e, inexplicavelmente, cravei meus dentes em seu pescoço alvo e peludo, retirando um naco da carne do bicho. O sangue espesso, vermelho escuro, escorreu por minha cara, melou minhas ventas e desceu pela minha garganta, me proporcionando um prazer incomensurável. Despertei espantado com a gargalhada monstruosa que eu mesmo dei. Faltavam cinco minutos para as duas da tarde.
Minha perna doía muito. Estava muito inchada e as veias do peito do meu pé, tornozelo, canela e coxa estavam intumescidas, parecendo que a qualquer momento fossem pocar. E elas subiam turgidamente esverdeadas percorrendo um caminho tortuoso e maligno em direção a minha virilha. Naquela hora tive a certeza que eu estava acometido por uma grave infecção. Eu me encontrava purulento e febril. E o fedor de algo em decomposição, que se espalhava pela casa, era insuportável. Não obstante a dor e ao aspecto do meu corpo, meu desejo de comer carne era incontrolável, o que me levou a sair do meu quarto, arrastando aquela sórdida perna, e ir até a cozinha. Eu sabia que na geladeira tinha um bom pedaço de alcatra. Retirei a peça de carne, cortei em seis grandes pedaços e pensei em fritá-los no óleo. Contudo, a visão daquela carne apetitosa e fresca fez com que eu a devorasse do jeito que ela se encontrava; deliciosamente crua. Eu nunca tinha experimentado carne crua e a sensação foi das melhores possíveis. Aquilo me revitalizou e voltei para o quarto com meu espírito renovado, apesar do aspecto irremediável da minha perna. Trouxe da cozinha um caixa de antibióticos e tomei logo quatro cápsulas. O que dava uma dose de dois gramas do medicamento. Uma dose alta, impactante. Dali a oito horas diminuiria para duas cápsulas e seguiria com uma cápsula três vezes ao dia durante sete dias. Pensei que dessa maneira pudesse controlar aquela corrupção microbiana que me definhava.
O resto do sábado foi de pesadelos intermitentes, delírios e suores.
“... eu estava num rio de águas calmas e vermelhas, me sentia bem, mergulhava, nadava e bebia aquele rubro líquido renovador...”.
“... Um homem chegou até mim. Reconheci-o como sendo o médico do livro que eu estava lendo. Ele se aproximou com cuidado, eu estava meio que acocorado e olhava pra ele com curiosidade, esticando minha cara para cima, mexendo meu pescoço de um lado para o outro, e abrindo e fechando minhas narinas, farejando. Ele disse que eu não tivesse medo, ele iria me curar. Tirou do bolso uma grande quantidade de erva vulgar, capim, destas que os ruminantes se alimentam. Ele estendeu à mão cheia de mato na direção do meu focinho, eu cheirei, resmunguei algo parecido com um rosnado e, subitamente, me lancei em cima dele e o despedacei com os meus próprios dentes, lambendo embevecido todo o líquido vermelho que brotava dele...”.
“... eu estava me arrastando pelo teto completamente nu, grudado como uma lagartixa, meus olhos eram enormes e eu possuía uma longa cauda. No canto da parede uma grande mosca varejeira, do tamanho de uma ratazana, me olhava enquanto passava as suas duas patas dianteiras pela sua imóvel cabeça. Aproximei-me devagar, ela, a mosca, não pareceu perceber minha aproximação, fui chegando com cautela e, na hora exata, uma língua enorme saiu de dentro de mim, grudou no gigante inseto e o trouxe velozmente para o interior da minha escancarada boca, estraçalhei seu frágil corpo facilmente...”.
Passei o domingo quase todo deitado em minha cama. Nunca tinha sentido tanta falta de Léa como naqueles dias de enfermidade. Entretanto, decidi não importuná-la. Aqueles dias eram de transformação. Eu sentia que se eu sobrevivesse àquela provação tudo seria diferente. Sentia-me oco. Tinha a sensação que inúmeras larvas estivessem roendo minhas entranhas, sugando minha alma, me deixando vazio; incompleto. Tornando-me um receptáculo desabitado a espera de um novo conteúdo.
Levantei-me às cinco da tarde, com um pouco mais de disposição. Eu estava com fome e sede, o que era um bom sinal e a fraqueza sumira completamente. Fui até a cozinha, retirei do freezer alguns bifes de fígado e os joguei congelados no liquidificador. Bati e depois bebi em quatro grandes goladas. Fui ao banheiro e olhei-me no espelho com muito receio, mas, não mais me assustei. Aqueles olhos terríveis, que me encaravam, já me eram familiares e não me provoca mais nenhum medo. Ao contrário, comecei a sentir-me reconfortado e protegido por eles. Os olhos de cá, os olhos que originavam o reflexo, os meus olhos de verdade, estavam cada vez mais plácidos e resignados. Tinham perdido suas forças e se deixavam vencer e dominar-se pelos olhos perversos do espelho.
Minha perna estava com um aspecto melhor e doía menos. Um ar necrótico inundava toda a casa, paradoxalmente, me deixando vivo e alerta. Deitei-me e dormi serenamente como há muito tempo não acontecia.
Acordei de um salto, com uma disposição incomum. Experimentava uma sensação de plenitude nunca antes imaginada. Eram cinco da manhã e minha perna não mostrava qualquer resquício de infecção ou inflamação. O edema sumira completamente e a dor evaporara. Sentia-me forte, confiante, faminto, sedento. Encarei o grande espelho da parede do meu quarto e vi os olhos que eu queria ver. Os olhos do novo eu. Olhos brilhantes, seguros e impudicos. Olhos de um ser especial, poderoso e infinito. Fui em direção à cozinha e nesta hora Léa entrou em casa. Deixou sua bolsa no sofá da sala e caminhou em minha direção. Eu fiquei parado no meio do corredor, esperando por ela. Ela chegou perto de mim e fez menção de me beijar. Afastei-me um pouco. Ela sorriu e veio de novo. Eu segurei sua nuca com minha mão direita, entrelacei meus dedos nos seus cabelos, puxei sua cabeça para trás, esticando e deixando a mostra seu belo e branco pescoço, e sorri mostrando meus dentes. Por um segundo ela também sorriu, foi então que seus olhos cruzaram com os meus e, nesta hora, ela viu e estremeceu. Ela percebeu que aqueles olhos doentios que a fitavam não eram os mesmos olhos do homem que um dia ela conheceu, se apaixonou e se casou. Ela tentou fugir, mas era tarde demais...
J. A. COSTA, 15/11/2012, às 18h:35min.