Meia-noite e um
Um trovão reluziu nos céus deixando o mar visível por um décimo de segundo antes de se abraçar mais uma vez na mais intensa escuridão. Agora era tarde. O que poderia fazer?
Gritar? Gritar! Gritou.
Um grito seco e grave que ecoou até o Hades mais profundo do inferno. Ele não podia fazer mais nada.
A chuva caía em gotas tão finas que elas voavam levadas pela brisa da baía, o ar tão gelado que se intrincavam os dentes e ardiam os ossos. Ele arfava, por mais que tivesse corrido para chegar até aqui, agora era tarde.
O sino já batera meia-noite e o eco apenas o avisara que ele havia falhado, não correra o bastante.
Estava sobre o cais de concreto e dali podia ver a imensidão negra das águas se estender até o farol que agora parecia tão distante, com uma luz tão fosca, inútil.
Outro raio brilhou e o mar se iluminou mais uma vez. Foi naquela hora, naquele pequeno momento de luz que ele a viu sendo levada pelas pequenas ondas da baía.
Soltou a sacola pesada que trazia em mãos. Agora ela não era mais importante. Não era mais importante saber que havia conseguido o dinheiro que ela pedira. Não chegou a tempo, o dinheiro já não valia nada.
A escuridão voltou depois do raio. Com a ponta dos dedos tirou os fios de cabelo que tapavam sua visão do imenso escuro, do infinito breu. Não podia dizer que não sabia, ela deixara tudo bem claro: o dinheiro no cais à meia-noite ou a morte. Sabia que esse seria o fim se não conseguisse.
De uma hora para outra, sem forçar ou se importar, uma lágrima rolou pelo seu rosto, mas não era uma lágrima de tristeza, não era uma lágrima de dor. Era alegria.
Ela sempre dizia que queria morrer linda, dizia que não gostaria que vissem seu rosto pálido ou tocassem em sua pele gelada. Ela sempre dizia que ninguém tinha o direito de dar-lhe adeus, porque quando ela partisse seria por vontade própria, seria seu tão esperado reencontro com antigos amigos. Dizia que ninguém tinha o direito de fechar-lhe os olhos e murmurar-lhe que descanse em paz. Ela não sabia o que era paz. Sempre dizia que escolheria a hora da morte, para que pudesse declamar seu último poema antes do silêncio eterno. Ela dizia que o dia em que morresse seria o mais feliz.
A lágrima que rolava era alegre porque ela estava pela primeira vez desfrutando da felicidade.
Faltou tão pouco para conseguir salvá-la. Um minuto para ter chegado a tempo, antes de ela ter se lançado para a sua antiga companheira Morte. Sessenta segundos separavam-no do final feliz ao seu lado.
Mas das coisas que ela dizia, ele não poderia esquecer da mais importante:
“Quando eu partir, não se lamente por mim, não sinta minha falta. Eu estarei melhor...”
Outro raio reluziu. Agora o corpo dela já estava tão longe, nem que nadasse a plenos pulmões poderia resgatá-la. Aliás, resgatá-la para quê? Ali naquelas águas não estava mais a sua amada, ela se encontrava em algo mais profundo agora. Ela via um lugar mais negro que aquele breu. Ela estava descobrindo o que mais gostaria de conhecer, explorando o mundo com o qual mais sonhou naqueles pesadelos singelos.
Não podia desobedecê-la agora, ela pedira para que não se lamentasse... Enxugou a lágrima que rolava, arrumou mais uma vez os cabelos molhados que insistiam em recair sobre os olhos. Lançou a sacola de dinheiro na baía, aquilo lhe seria inútil agora. Deu as costas para o breu das águas e partiu para longe daquele cais, para longe da sua amada.
Chegou a Igreja e olhou para a torre do relógio esperando impacientemente que aquele minuto tão prolixo passasse logo, que chegasse depressa meia-noite e dois.