Champanhe
Abriu os olhos.
À sua volta tudo estava tao escuro quanto antes, quando ainda estavam fechados. Parecia completamente cego. O calor beirava o insuportável, mas ele não transpirava. Cheiro de suor de flores, essência de um perfume extravagante, perfume de morte.
Tentou esticar os braços, mas não chegou a conseguir, encontrava-se preso em algum tipo de caixa, apalpou os lados, as paredes também eram de madeira. Caixote? Prisão? Caixão? Caixão!
Por que estava num caixão? Por que achavam que ele estava morto?
De repente a agonia. Claustrofobia. Medo do escuro.
Gritou o mais alto que pôde.
“Alguém me ajude!” batia histericamente na madeira. “Alguém!”
mas cada vez mais batia, mais imóvel se tornava a tampa do caixão, devia haver muita terra sobre ele.
Respirou fundo. Talvez fosse o último ar que restava naquele espaço tao mínimo. Então, sem saber exatamente porquê, pressionou as maos contra a tampa sobre o seu corpo, não apertou, não socou, apenas pressionou e esperou.
Suas mãos, devagar, atravessaram a madeira como se matéria física não fosse mais de nenhuma importância.
O que estava acontecendo com ele?
Mesmo que aquilo fosse contra a razão, ele não se importou em passar inteiro por através da tampa. Precisava subir até a superfície, talvez o ar fresco o ajudasse a raciocinar.
Viu o madeiro quando seus olhos passaram por ele, viu a terra escura e fofa quando a atravessou. Sentiu a resistência da grama na sua cabeça quando chegou até ela, e depois a ultrapassou também. Finalmente podia respirar fundo outra vez. Estava livre.
Só depois de tomar muito ar é que olhou em volta. Não estava sozinho. Uma música doce tocava em algum lugar muito próximo. Era uma cançao triste, mas que chamava para dançar; tango, valsa ou qualquer outra coisa – seus ouvidos não estavam normais.
Rodou os olhos pelo local: cruzes de concreto sobre lápides de mármore, dezenas ou centenas de placas de cobre presas à grama com inscriçoes e fotos, anjos de cimento com os olhos roídos pelo tempo e pela chuva, e as pessoas que davam vida ao lugar tao funesto, dançando e sorrindo, cantando e se beijando, rodando e rodopiando até caírem no chao, descansarem, e começarem tudo outra vez.
Era ao mesmo tempo assustador e cativante.
A lua era crescente, apenas uma linha torta e clara no céu iluminando todo o espetáculo.
Alguém passou com uma bandeja cheia de taças de champanhe que aparentava ser do mais fino.
“Aceita, senhor?”
“Que lugar é esse?” perguntou, pegando uma taça só por educação, não bebia. Fazia mal a saúde.
“O senhor não sabe?” lhe devolveu com um meio sorriso charmoso, mas discreto. Vestia um smoking típico dos anos sessenta. “Ou só não quer aceitar que sabe?”
“Quem são essas pessoas?” tentou outra vez, esperando agora por uma resposta mais direta.
O garçom olhou em volta a pedido do rapaz novo, ninguém ligava em esbarrar nos vasos e derrubá-los ou apagar velas cujas chamas dançavam no ritmo da música.
“São todos como o senhor.”
“Como assim?”
Foi na maior naturalidade, sem tirar o sorriso que aprendera na infância quando assistia aqueles filmes de Hitchicock no Cinema Brasil, que ele respondeu:
“Ora, estão todos mortos...”
o garçom se afastou, as madames já reclamavam que o champanhe acabara. O rapaz ficou sem reação por um momento, deixou a taça cair de seus dedos e ela se espatifou na placa de cobre em que ele estava sentado, na placa que tinha seu nome, sua data de nascimento, e a de óbito.
DESCANSE EM PAZ – vinha escrito logo abaixo, em letras adornadas.
Morto. Estava morto. Todos estavam mortos. Dançavam felizes banhados pelos raios da lua e se embriagando nos melhores champanhes como se isso fosse motivo para festim.
Uma garota olhava para ele. Ele olhava para ela.
Tinha cabelos levemente cacheados que desciam até seus seios e contrastavam os fios pretos com a pele branca e pálida. Ele ainda não entendia como foi parar ali, como foi morrer. Mas ela o olhava.
Pelas horas seguintes, ficou sentado naquela placa de cobre observando a dança feliz dos mortos e deixando-se observar pela linda moça lívida no meio da multidão.
Alguém gritou mais alto que a música:
“O sol!”
E todos pararam de dançar, olharam para o horizonte longinquo onde os primeiros raios alaranjavam o céu negro e correram para os seus lugares. No meio do alvoroço, ele perdeu a moça de vista.
Mas não importava. Abriu um sorriso, o primeiro da noite.
O garçom passou novamente por ali com apenas mais uma taça de champanhe na bandeja, ele o parou e pegou a taça.
“E então? Já entendeu tudo?”
“Não” respondeu, deixando a taça vazia novamente em seu lugar. “Ainda não entendi porque não tem cerveja por aqui!”
Com um sorriso tranquilo e cordial o garçom disse que providenciaria para a próxima noite.
“Faça isso...” divagou, sonolento, e se deitou na sua placa. Foi afundando lentamente. Sentiu a grama, terra fofa e madeira outra vez – até que fazia cócegas. E assim que se deitou no acolchoado de seu esquife revirou-se para encontrar uma posição mais comoda e dormir.
Não estava preocupado em não saber nada sobre aquela garota ou não ter conseguido conversar com ela. Ainda tinha uma longa eternidade para conhecê-la.