A Caçadora
Diana era uma belíssima princesa, nascida e criada em berço de ouro, constantemente mimada por seus pais e pelos melhores servos do castelo.
Talvez, até por isso, a menina tenha se tornado um tanto voluntariosa e, muitas vezes cruel, na exigência da satisfação de suas vontades e manias.
Já mocinha, abateu-se sobre aquelas terras um inverno extremamente rigoroso, onde a neve e o frio tornaram-se uma constante. Diana odiou aquele clima e passava os dias a atormentar qualquer um que cruzasse seu caminho, gritando impropérios e acusando o pai de fraco por não ser capaz de resolver a situação.
O conselheiro do rei sugeriu-lhe que providenciasse um belo casaco de pele para a filha.
– Isso vai protegê-la do frio, – disse ele. – e tornará a passagem da estação um pouco mais amena para todos nós, se é que vossa majestade me entende.
O rei entendeu. Sabia que algo precisava ser feito para acalmar a princesa e, como era impossível fazê-la hibernar como os ursos, talvez fosse possível ter algum sossego, ao vesti-la com um deles, isto é, com a pele de um deles.
Naquele dia mesmo, procuraram o peleiro do lugar, que, em menos de uma semana, entregava a uma encantada Diana, o casaco costurado da mais macia pele de corça.
A princesa adorou o presente e usava o casaco todo o tempo. Mas logo percebeu que precisava de outros modelos, em cores e pelagens diferentes.
Sabendo que bastava-lhe levantar a voz para ver seus desejos atendidos, logo ela possuía um casaco de cada animal existente por aquelas paragens. Amava-os todos e a cada um odiava com todas as forças, quando desejava um novo, pelo qual bradava até ver-se atendida.
Logo, ela exigia ser treinada pelo arqueiro real, e todo domingo, saia a família real às caçadas, nas quais ela sempre trazia muitos troféus, cujas peles convertiam-se em agasalhos cada vez mais elaborados.
Em pouco tempo aqueles sanguinários programas familiares já encontravam oposição entre os súditos, que viam a obsessão da herdeira do trono como um mau augúrio para o futuro do país.
Impotente diante da fera que havia criado, o rei percebia que precisava atrair a atenção dela para outros assuntos e – por que não? – encontrar outro a quem transferir a responsabilidade de dominá-la ou, ao menos, de lhe colocar algum juízo na cabeça. Porém, sabia que ela jamais aceitaria qualquer matrimônio arranjado.
O velho conselheiro real logo encontrou uma solução:
– Meu senhor poderia realizar bailes semanais, com vistas a conseguir-lhe um pretendente, alguém que a própria princesa escolha.
Anotando para lembrar-se de premiar seu bom amigo caso o plano funcionasse e, ansiando por ver a filha finalmente apaixonada, dócil como um gatinho e suspirando pelos cantos como bem apraz a uma mocinha, o rei logo organizou o primeiro dos bailes reais, para o qual convidaram todos os jovens em idade compatível à dela.
Foi um sucesso. Ela logo identificou, dentre os presentes, aquele a quem entregaria o seu selvagem coração. O nome dele era Gabriel Barbot, um jovem de grande nobreza e bom coração.
Diante de tal espécime de caça, a princesa, pela primeira vez, viu-se intimidada. Não sabia como aproximar-se, o que dizer-lhe, como posicionar-se. Foram precisos três encontros ainda para que os dois, finalmente, iniciassem um diálogo e mais outros dois para que o namoro se oficializasse. Este foi o baile mais longo de todos. Ela não queria lhe permitir encerrar-se, pois não poderia mais prescindir dos beijos e carinhos de seu amado.
Quando, finalmente, o mancebo chegou à sua casa, encontrou sua mãe, a marquesa de Barbot, sentada na sala, à sua espera. Ele correu feliz até ela:
– Mamãe, mamãe! Estou amando.
– Sei disso e desse amor não faço gosto.
– Por que, senhora minha mãe? – perguntou ele, chocado com a atitude dela.
– Esta moça não te merece. Seu coração é perverso e mau.
– Mamãe! Como podes dizer isso de minha doce princesa? Eu te desafio a prová-lo.
– Ah, filho meu! Estejas certo de que isto doerá mais em mim do que em ti. – disse ela levantando-se do sofá e dizendo alguns sortilégios, com voz grave e potente, as mãos erguidas sobre ele.
Na mesma hora, Gabriel jogou-se no chão, debatendo-se, torturado, como se milhares de agulhas lhe furassem a pele e, seu corpo começou a deformar-se, enchendo-se de pelos, longos e escuros, seu rosto prolongou-se para frente como as mandíbulas de um felino, em que ameaçadoras presas projetavam-se para fora da boca, as orelhas prolongaram-se para o alto, pontiagudas como as de canídeos, as mãos tornaram-se garras, com unhas grande, curvas e negras.
Terminada essa transformação, a marquesa declarou:
– Se ela realmente te ama, saberá reconhecer-te sob esta forma bestial.
Em seguida, desapareceu no ar, deixando apenas uma lágrima para trás.
Gabriel levantou-se com dificuldade e, ao perceber as modificações ocorridas em seu corpo, correu até o grande espelho, localizado sobre a lareira. Vendo-se por inteiro, as roupas rasgadas, os pelos, garras, unhas e dentes, soltou um grito lamentoso, que mais se assemelhou a um uivo.
Ele andou por toda a casa procurando sua mãe. Não encontrando, foi até o jardim, onde espalhavam-se pela grama, alguns estranhos roedores. Tinham algo de coelhos e também de castores e eram grandes como capivaras. Nunca havia visto daqueles animais antes e, ao aproximar-se de um deles, reconheceu-lhe a expressão: era o cozinheiro da família. Em cada um dos outros, conseguia reconhecer algum dos empregados da casa, todos transformados em animais como ele, todos igualmente atordoados diante de sua nova condição. Sem precisarem se falar, de alguma forma, eles se entendiam e logo cada um retomou as suas tarefas, para que nada faltasse ao seu amo.
Gabriel só pensava em Diana. Não poderia ir ao seu encontro daquele jeito. Ele precisava enviar-lhe um recado, para que ela viesse encontrá-lo, de forma a provar à sua mãe o seu amor, mas com todos os empregados igualmente transformados, seria impossível levar qualquer mensagem até ela, sem expor a sua condição a toda gente do lugar .
Diana, por sua vez, esperava impaciente por notícias dele. De início, buscava razões para sua ausência:
– Deve estar dormindo, ainda, pobrezinho. A balada abala. – disse, rindo nervosamente da própria piada infame.
Na manhã seguinte, bem cedo, depois de uma noite insone, tornou a acordar a todos no castelo. Queria caçar. Precisava caçar. Precisava direcionar contra alguma coisa a sua frustração de ver-se ludibriada por um fanfarrão, um cafajeste, um crápula.
– Mas, filha... – resmungou o rei.
– É domingo! Dia de caçada.
Sabendo que não adiantaria tentar dissuadi-la, todos se prepararam e seguiram para a floresta. No caminho, passaram em frente à casa de Gabriel. Atraído pelo tropel dos cavalos, um dos servos aproximou-se do portão. Ao ver aquele animal enorme e tão diferente, Diana não pensou duas vezes. Sacou do arco e o atingiu, matando-o imediatamente. O dia fez-se noite e do céu, surgiu a monstruosa face de Gabriel, olhando ameaçadora para eles. Em seguida, ele soltou um rugido assustador e disse, com uma voz potente, grave e gutural:
– Tu mataste um de meus servos. Agora, deverás recompensar-me.
Diana ficou realmente assustada com aquilo tudo. Seu pai tentou protegê-la, mas foi impedido, por uma forte lufada de vento. A mesma ventania, em redemoinho, arrancou-a de seu cavalo e a arrastou para dentro da casa, cuja porta fechou-se com estrondo.
O rei deu ordens para que seus homens invadissem a propriedade e retirassem a princesa de lá, mas era como se a casa estivesse protegida por um escudo. Nada ultrapassava a barreira da pequena muralha que cercava o terreno.
Diana, caída no chão da sala, não percebeu quando Gabriel aproximou-se. Somente quando ele já estava ao seu lado é que ela viu suas botas e as reconheceu, imediatamente:
– Gabriel! – exclamou, feliz, por reencontrá-lo.
Porém, ao levantar-se e encará-lo, deu de cara com aquela fera horrenda, olhando-a com visível ansiedade. Ela atirou-se contra ele, furiosa, batendo-lhe no peito:
– Quem és tu? O que fizeste com o Gabriel?
Ele tentou falar, mas apenas emitiu alguns grunhidos. Ela prosseguiu:
– São as botas dele! Quem és tu!?
Ele voltou a grunhir. Queria dizer a ela quem era; explicar-lhe que não era o responsável pela aparição lá fora; queria que ela o reconhecesse e procurava fazê-la olhar para ele, para seus olhos. Ele acreditava que ela enxergaria todo o amor que brilhava neles. Como ela continuasse tentando esbofeteá-lo, ele a segurou pelos braços, encarando-a intenso.
A partir daquele instante, ela mudou completamente. Parou de tentar agredi-lo e, quando ele a soltou, olhou serenamente para seu rosto. Ele rosnava alguma coisa que ela não entendia, mas ela recostou-se suavemente contra aquele peito forte de pelo macio e quente.
Ele a abraçou, feliz em tê-la novamente entre os braços. Ela, então, retirou a faca que tinha sempre à cintura e a cravou, com toda a força no peito dele, que, agonizando, caiu. Enquanto ele lhe lançava um último olhar, suplicante, ela apenas pensava em quão lindo ficaria seu novo casaco, com pelagem tão densa e negra.
Porém, à medida que ele dava seus últimos suspiros, foi retomando a forma humana e logo ela o reconheceu.
– Gabriel!? – exclamou, horrorizada. – Oh, meu Deus, o que foi que eu fiz?
E ajoelhando-se ao seu lado, começou a apalpá-lo, procurando:
– Cadê a minha pele? Cadê meu casaco novo?
– Mulher cruel e sem coração! – disse a marquesa, aparecendo do nada à frente de Diana, que, assustada, caiu sentada para trás. – Não era este o homem que amavas? – apontou para o filho, morto.
– Oras! Ele me abandonou, esperando... – ela tentou defender-se.
– Pelo que fizeste, pelo filho que me roubaste, por sua obsessão em tirar vidas para seu deleite e conforto, receberás o castigo que mereces. Já que gostas tanto de vestir-te de fera, hás de tornar-te uma delas.
E, repetindo as palavras mágicas, transformou Diana num monstro, igual àquele que Gabriel fora, antes de ser morto por ela.
– Seguirás sozinha pelo mundo, lutando pela sobrevivência, fugindo dos caçadores e só retomarás a forma humana, no dia em que conquistares verdadeiramente, um grande amor.
Ela tentou falar, dizer alguma coisa para se defender, mas sua voz não saia mais, substituída por sons grotescos, indecifráveis rugidos.
A marquesa desfez o feitiço sobre seus servos e esquecidos de Diana, prantearam a morte de Gabriel e do outro servo alvejado, que foram enterrados juntos no mausoléu da família.
Quanto à Diana, o mesmo vento que a lançou para dentro da casa, levou-a para o meio da floresta, onde passaria a viver. Nas suas muitas tentativas de voltar à casa de seu pai, foi rechaçada pela guarda do rei. Finalmente, conformou-se e foi cumprir sua maldição.
Diz-se que ela permanece transformada em fera até hoje e que, provavelmente, jamais voltará à sua forma original, pois, dentre todas as outras feras, ainda é possível reconhecê-la pelos ridículos casacos de pele humana que passou a usar desde então.
Talvez, até por isso, a menina tenha se tornado um tanto voluntariosa e, muitas vezes cruel, na exigência da satisfação de suas vontades e manias.
Já mocinha, abateu-se sobre aquelas terras um inverno extremamente rigoroso, onde a neve e o frio tornaram-se uma constante. Diana odiou aquele clima e passava os dias a atormentar qualquer um que cruzasse seu caminho, gritando impropérios e acusando o pai de fraco por não ser capaz de resolver a situação.
O conselheiro do rei sugeriu-lhe que providenciasse um belo casaco de pele para a filha.
– Isso vai protegê-la do frio, – disse ele. – e tornará a passagem da estação um pouco mais amena para todos nós, se é que vossa majestade me entende.
O rei entendeu. Sabia que algo precisava ser feito para acalmar a princesa e, como era impossível fazê-la hibernar como os ursos, talvez fosse possível ter algum sossego, ao vesti-la com um deles, isto é, com a pele de um deles.
Naquele dia mesmo, procuraram o peleiro do lugar, que, em menos de uma semana, entregava a uma encantada Diana, o casaco costurado da mais macia pele de corça.
A princesa adorou o presente e usava o casaco todo o tempo. Mas logo percebeu que precisava de outros modelos, em cores e pelagens diferentes.
Sabendo que bastava-lhe levantar a voz para ver seus desejos atendidos, logo ela possuía um casaco de cada animal existente por aquelas paragens. Amava-os todos e a cada um odiava com todas as forças, quando desejava um novo, pelo qual bradava até ver-se atendida.
Logo, ela exigia ser treinada pelo arqueiro real, e todo domingo, saia a família real às caçadas, nas quais ela sempre trazia muitos troféus, cujas peles convertiam-se em agasalhos cada vez mais elaborados.
Em pouco tempo aqueles sanguinários programas familiares já encontravam oposição entre os súditos, que viam a obsessão da herdeira do trono como um mau augúrio para o futuro do país.
Impotente diante da fera que havia criado, o rei percebia que precisava atrair a atenção dela para outros assuntos e – por que não? – encontrar outro a quem transferir a responsabilidade de dominá-la ou, ao menos, de lhe colocar algum juízo na cabeça. Porém, sabia que ela jamais aceitaria qualquer matrimônio arranjado.
O velho conselheiro real logo encontrou uma solução:
– Meu senhor poderia realizar bailes semanais, com vistas a conseguir-lhe um pretendente, alguém que a própria princesa escolha.
Anotando para lembrar-se de premiar seu bom amigo caso o plano funcionasse e, ansiando por ver a filha finalmente apaixonada, dócil como um gatinho e suspirando pelos cantos como bem apraz a uma mocinha, o rei logo organizou o primeiro dos bailes reais, para o qual convidaram todos os jovens em idade compatível à dela.
Foi um sucesso. Ela logo identificou, dentre os presentes, aquele a quem entregaria o seu selvagem coração. O nome dele era Gabriel Barbot, um jovem de grande nobreza e bom coração.
Diante de tal espécime de caça, a princesa, pela primeira vez, viu-se intimidada. Não sabia como aproximar-se, o que dizer-lhe, como posicionar-se. Foram precisos três encontros ainda para que os dois, finalmente, iniciassem um diálogo e mais outros dois para que o namoro se oficializasse. Este foi o baile mais longo de todos. Ela não queria lhe permitir encerrar-se, pois não poderia mais prescindir dos beijos e carinhos de seu amado.
Quando, finalmente, o mancebo chegou à sua casa, encontrou sua mãe, a marquesa de Barbot, sentada na sala, à sua espera. Ele correu feliz até ela:
– Mamãe, mamãe! Estou amando.
– Sei disso e desse amor não faço gosto.
– Por que, senhora minha mãe? – perguntou ele, chocado com a atitude dela.
– Esta moça não te merece. Seu coração é perverso e mau.
– Mamãe! Como podes dizer isso de minha doce princesa? Eu te desafio a prová-lo.
– Ah, filho meu! Estejas certo de que isto doerá mais em mim do que em ti. – disse ela levantando-se do sofá e dizendo alguns sortilégios, com voz grave e potente, as mãos erguidas sobre ele.
Na mesma hora, Gabriel jogou-se no chão, debatendo-se, torturado, como se milhares de agulhas lhe furassem a pele e, seu corpo começou a deformar-se, enchendo-se de pelos, longos e escuros, seu rosto prolongou-se para frente como as mandíbulas de um felino, em que ameaçadoras presas projetavam-se para fora da boca, as orelhas prolongaram-se para o alto, pontiagudas como as de canídeos, as mãos tornaram-se garras, com unhas grande, curvas e negras.
Terminada essa transformação, a marquesa declarou:
– Se ela realmente te ama, saberá reconhecer-te sob esta forma bestial.
Em seguida, desapareceu no ar, deixando apenas uma lágrima para trás.
Gabriel levantou-se com dificuldade e, ao perceber as modificações ocorridas em seu corpo, correu até o grande espelho, localizado sobre a lareira. Vendo-se por inteiro, as roupas rasgadas, os pelos, garras, unhas e dentes, soltou um grito lamentoso, que mais se assemelhou a um uivo.
Ele andou por toda a casa procurando sua mãe. Não encontrando, foi até o jardim, onde espalhavam-se pela grama, alguns estranhos roedores. Tinham algo de coelhos e também de castores e eram grandes como capivaras. Nunca havia visto daqueles animais antes e, ao aproximar-se de um deles, reconheceu-lhe a expressão: era o cozinheiro da família. Em cada um dos outros, conseguia reconhecer algum dos empregados da casa, todos transformados em animais como ele, todos igualmente atordoados diante de sua nova condição. Sem precisarem se falar, de alguma forma, eles se entendiam e logo cada um retomou as suas tarefas, para que nada faltasse ao seu amo.
Gabriel só pensava em Diana. Não poderia ir ao seu encontro daquele jeito. Ele precisava enviar-lhe um recado, para que ela viesse encontrá-lo, de forma a provar à sua mãe o seu amor, mas com todos os empregados igualmente transformados, seria impossível levar qualquer mensagem até ela, sem expor a sua condição a toda gente do lugar .
Diana, por sua vez, esperava impaciente por notícias dele. De início, buscava razões para sua ausência:
– Deve estar dormindo, ainda, pobrezinho. A balada abala. – disse, rindo nervosamente da própria piada infame.
Na manhã seguinte, bem cedo, depois de uma noite insone, tornou a acordar a todos no castelo. Queria caçar. Precisava caçar. Precisava direcionar contra alguma coisa a sua frustração de ver-se ludibriada por um fanfarrão, um cafajeste, um crápula.
– Mas, filha... – resmungou o rei.
– É domingo! Dia de caçada.
Sabendo que não adiantaria tentar dissuadi-la, todos se prepararam e seguiram para a floresta. No caminho, passaram em frente à casa de Gabriel. Atraído pelo tropel dos cavalos, um dos servos aproximou-se do portão. Ao ver aquele animal enorme e tão diferente, Diana não pensou duas vezes. Sacou do arco e o atingiu, matando-o imediatamente. O dia fez-se noite e do céu, surgiu a monstruosa face de Gabriel, olhando ameaçadora para eles. Em seguida, ele soltou um rugido assustador e disse, com uma voz potente, grave e gutural:
– Tu mataste um de meus servos. Agora, deverás recompensar-me.
Diana ficou realmente assustada com aquilo tudo. Seu pai tentou protegê-la, mas foi impedido, por uma forte lufada de vento. A mesma ventania, em redemoinho, arrancou-a de seu cavalo e a arrastou para dentro da casa, cuja porta fechou-se com estrondo.
O rei deu ordens para que seus homens invadissem a propriedade e retirassem a princesa de lá, mas era como se a casa estivesse protegida por um escudo. Nada ultrapassava a barreira da pequena muralha que cercava o terreno.
Diana, caída no chão da sala, não percebeu quando Gabriel aproximou-se. Somente quando ele já estava ao seu lado é que ela viu suas botas e as reconheceu, imediatamente:
– Gabriel! – exclamou, feliz, por reencontrá-lo.
Porém, ao levantar-se e encará-lo, deu de cara com aquela fera horrenda, olhando-a com visível ansiedade. Ela atirou-se contra ele, furiosa, batendo-lhe no peito:
– Quem és tu? O que fizeste com o Gabriel?
Ele tentou falar, mas apenas emitiu alguns grunhidos. Ela prosseguiu:
– São as botas dele! Quem és tu!?
Ele voltou a grunhir. Queria dizer a ela quem era; explicar-lhe que não era o responsável pela aparição lá fora; queria que ela o reconhecesse e procurava fazê-la olhar para ele, para seus olhos. Ele acreditava que ela enxergaria todo o amor que brilhava neles. Como ela continuasse tentando esbofeteá-lo, ele a segurou pelos braços, encarando-a intenso.
A partir daquele instante, ela mudou completamente. Parou de tentar agredi-lo e, quando ele a soltou, olhou serenamente para seu rosto. Ele rosnava alguma coisa que ela não entendia, mas ela recostou-se suavemente contra aquele peito forte de pelo macio e quente.
Ele a abraçou, feliz em tê-la novamente entre os braços. Ela, então, retirou a faca que tinha sempre à cintura e a cravou, com toda a força no peito dele, que, agonizando, caiu. Enquanto ele lhe lançava um último olhar, suplicante, ela apenas pensava em quão lindo ficaria seu novo casaco, com pelagem tão densa e negra.
Porém, à medida que ele dava seus últimos suspiros, foi retomando a forma humana e logo ela o reconheceu.
– Gabriel!? – exclamou, horrorizada. – Oh, meu Deus, o que foi que eu fiz?
E ajoelhando-se ao seu lado, começou a apalpá-lo, procurando:
– Cadê a minha pele? Cadê meu casaco novo?
– Mulher cruel e sem coração! – disse a marquesa, aparecendo do nada à frente de Diana, que, assustada, caiu sentada para trás. – Não era este o homem que amavas? – apontou para o filho, morto.
– Oras! Ele me abandonou, esperando... – ela tentou defender-se.
– Pelo que fizeste, pelo filho que me roubaste, por sua obsessão em tirar vidas para seu deleite e conforto, receberás o castigo que mereces. Já que gostas tanto de vestir-te de fera, hás de tornar-te uma delas.
E, repetindo as palavras mágicas, transformou Diana num monstro, igual àquele que Gabriel fora, antes de ser morto por ela.
– Seguirás sozinha pelo mundo, lutando pela sobrevivência, fugindo dos caçadores e só retomarás a forma humana, no dia em que conquistares verdadeiramente, um grande amor.
Ela tentou falar, dizer alguma coisa para se defender, mas sua voz não saia mais, substituída por sons grotescos, indecifráveis rugidos.
A marquesa desfez o feitiço sobre seus servos e esquecidos de Diana, prantearam a morte de Gabriel e do outro servo alvejado, que foram enterrados juntos no mausoléu da família.
Quanto à Diana, o mesmo vento que a lançou para dentro da casa, levou-a para o meio da floresta, onde passaria a viver. Nas suas muitas tentativas de voltar à casa de seu pai, foi rechaçada pela guarda do rei. Finalmente, conformou-se e foi cumprir sua maldição.
Diz-se que ela permanece transformada em fera até hoje e que, provavelmente, jamais voltará à sua forma original, pois, dentre todas as outras feras, ainda é possível reconhecê-la pelos ridículos casacos de pele humana que passou a usar desde então.
Texto escrito para o Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Contos de Fadas da Dinamarca - Etapa 4 - Opção 9: E se a Bela for a própria Fera?