Gritos do desespero
Gritos desesperados despertam Márcia do tranquilo sono, e assustada no escuro do barraco ela se levanta ao reconhecer a voz do filho Dudu entre berros lamentosos com espasmos de choro:
- Não faz isso comigo não, meu irmão. Eu não entreguei parada nenhuma não. Isso é caóó. Pode crer mano. Não sou vacilão não...
Márcia, apressada, abandona a cama usando sua camisola amarela e abre a porta do barraco apreensiva com o que vê acontecendo:
- Mãe, me ajude, eles vão me matar. Mãe me ajude...
- Larga meu filho gente. Soltem meu filho. O que vocês querem? Eu dou o que vocês quiserem, mas soltem meu querido filho.
Márcia, aos prantos, implora pela liberdade do filho, percebendo claramente o que poderá acontecer a partir desta cena chocante que vivencia, na qual o filho ensanguentado leva socos, pontapés e coronhadas de três jovens armados que despejam palavras agressivas sem qualquer piedade do jovem, que encolhido numa parede dum barraco, luta suplicando para sair do martírio humano sentido na pele marcada e dolorida:
- Ele é um dedo duro. É um vacilão. Traiu nós. Agora ele vai pra vala tia.
- Não! Não matem meu filho, por favor. Não façam isso!
Os bandidos saem arrastando Dudu pelos becos sujos, enquanto Márcia persegue-os implorando pela vida do querido filho de apenas dezesseis anos de idade. Ela sabe que se não aparecer uma saída imediata perderá o filho nos minutos seguintes, mediante o que seus olhos constatam, e lamenta perceber o mesmo que tantas vezes acompanhou de perto ao ver o sofrimento de outras mães as quais vivenciaram o drama de perderem seus filhos adolescentes nesta vida triste e desgraçada que levam. Márcia já viu vários corpos humanos sendo transportados em sacos por entre esses becos onde criou o filho, e sempre rogou a Deus pela proteção de sua criança que crescia no meio dessa realidade cruel e “normal” da pequena cidade tão próxima e tão distante da segurança pública. Ela é sabedora de que a policia que se entranha dentre os corredores estreitos destes barracos apertados, geralmente não vêm à comunidade para tentar resolver o problema, mas sim, para receber a contribuição financeira para deixar o ritmo de o local seguir sem quaisquer maiores complicações. Márcia sempre quis se mudar deste lugar, só que as difíceis condições financeiras nunca lhe possibilitaram tal fuga e, assim segue o ritmo da vida resguardando nalgum lugar do peito a esperança de dias melhores. É moradora desta comunidade há quinze anos e sabe muito bem como deve viver por aqui, e assim educa o filho desde pequeno de como se comportar na comunidade para não ser mais um a cair no mundo do crime. Lutou muito para Eduardo se interessar pelos estudos, mas sempre notou que o filho queria mesmo era ser jogador de futebol ou cantor de funk e pagode; músicas que o mesmo adora ouvir. A cabeça de Márcia permeia pelas diversas vias de sua existência nessa agoniada e torturante situação a qual passa ao ver o filho sendo carregado ao topo da favela para ser morto.
- Tia, se a senhora não quiser ver seu filho ser cobrado, é melhor não vim atrás de nós, pois vamos torrar ele no forno...
- Não, por favor, não façam isso. Eu faço o que vocês quiserem, mas não matem meu filho. Oh! Meu Deus faça alguma coisa. Tenha piedade do meu filho, não deixe matarem meu filhinho...
Dudu é o único filho de Márcia que o criou sozinha, batalhando duro nas cozinhas dos outros para o sustento de ambos. Ele está matriculado numa escola de um bairro próximo, embora não se interesse muito pelos estudos. O jovem convive na companhia de outros garotos de sua idade e todos têm contato direto com o tráfico da favela “Morada Feliz”. Porém, Dudu não é traficante, embora conheça as articulações do tráfico em todo este entorno onde cresceu convivendo com essa realidade crua. Também já presenciou a morte de alguns garotos de sua idade que se meteram no crime, os quais, devido algum “vacilo” foram eliminados da cena da vida. Embora Dudu já tenha recebido convite para trabalhar no ramo das drogas nunca aceitou, sabendo que isso seria a maior decepção para sua querida mãe, a qual respeita muito, entendendo o empenho dela em lhe manter distante do erro. A mãe até já lhe arrumou um emprego de empacotador num supermercado. Porém, ele não tem relações maiores com o pessoal do trabalho, os quais em sua grande maioria moram também em outras comunidades, seu entrosamento se restringe ao entorno da comunidade que vive, onde conhece boa parte dos moradores. Sua diversão noturna ocorre pelos bares espalhados por diversos pontos da favela e nos finais de semana sua presença é certa no Funk da comunidade, junto com sua “mina” Jéssica, com a qual namora há dez meses. Jéssica também é moradora da favela e tem quinze anos, mas ambos já planejam se casar nalgum tempo futuro quando o bebê deles nascer, pois descobriram recentemente da gravidez da garota, e ao conversarem sobre o assunto decidiram que irão morar na casa de Márcia a qual ainda não sabe que está prestes a se tornar avó.
Esses tortuosos instantes na vida de Eduardo se transformam num filme triste que se aproxima do final, e ele ainda nutre o desejo de escapar dessa enrascada. Em breve será pai e ainda quer viver muitas coisas pelos anos do tempo. Entretanto, segue puxado por estes três bandidos impiedosos de idade equivalente a sua que o leva pelos estreitos becos da cidade marginalizada, e é consciente do terrível fim que se aproxima nesta madrugada silenciosa que o empurra rumo à certeira morte...
Márcia diante aos seus quarenta e cinco anos de idade está em total choque com a vida, e ao tentar se aproximar do filho machucado, é empurrada por um dos bandidos, fazendo com que a mesma caia no chão duro:
- Eu já disse coroa: seu filho vacilou. Ele ta na mancada. Agora ele vai ser cobrado com a vida. Melhor voltar pá casa e calar tua boca ou vamo apagar a senhora também.
- Não! Não! Não! Não façam isso. Não façam isso, pelo amor de Deus! Não tirem à vida do meu bebê!
Afora o barulho desta dramática ocorrência envolvendo Eduardo e Márcia a favela se encontra num verdadeiro silêncio. Os demais moradores ouvem toda a movimentação e com toda a certeza sabem o que acontecerá, mas não ousam se intrometerem na complexidade da questão, afinal são sabedores das leis que regem a pequena comunidade às margens da segurança pública. Assim, os demais habitantes se resguardam trancafiados em seus barracos, acomodados em suas camas ou mesmo nutridos em curiosidades, observando pelas aberturas das portas, e onde também aguardam o fim do espetáculo corriqueiro para voltarem a dormir, pois logo cedo retornarão aos trâmites diários na “normalidade” de suas vidas...
Márcia revestida de seu amor de mãe não desiste do filho e continua atrás dos traficantes sem nenhum medo de também levar um tiro. Ela suplica para que libertem seu querido filho, pois não deseja ver tal aniquilamento, e lembra que pensou e planejou tantas realizações para o filho que é uma grande injustiça da vida roubá-lo de si tão cedo e de modo tão brusco como este que presencia. Recorda-se do carinhoso filho e de que são apenas os dois no mundo e que se o matarem, não terá mais motivo algum para viver, e tem certeza que o filho não fez nada de errado; ele sempre foi um garoto bom e sempre lhe prometeu que jamais se meteria no mundo do crime; dizia que não queria acabar como muitos dos garotos que conheceu. Nutrida dessas verdades, Márcia questiona para saber o que o filho tinha feito de tão grave; ela precisa saber:
- Ele é X-9, nos dedurou pro outro comando. Filmaro ele dando informações pá nosso inimigo e por isso, vamo passar ele tia, pois é isso que dedo duro merece, ir pá vala...
Márcia aflita e molhada em lágrimas se aproxima do filho e pergunta angustiada deslizando as mãos por seus cabelos:
- É verdade meu filho? É verdade o que eles estão dizendo?
- Não mãe. Não sou envolvido. Eu não dei mancada. Eu juro, eu juro, eu não quero morrer mãe, eu não fiz nada...
- Ele não fez nada. Vocês ouviram? Ele não fez nada. Soltem meu filho...
Um dos bandidos afasta e segura Márcia longe do querido filho, e de alguma distância é possível se ouvir o ressoar do barulho de alguns tiros, e alguma chama de luz brilha nos olhos umedecidos da desesperada mãe, atingida por gritos de desespero...