Contos de Cemitério - O Zelador de túmulos

Era mais uma de suas tardes vadias. Pegou o ônibus e se dirigiu para o cemitério. No âmago de sua alma o frenesi do encontro com o sonhado inimigo, ali, fragilizado, impotente diante de suas ações indignas, censuráveis. Tinha muito ódio no coração e a satisfação sádica de ter conseguido realizar o seu objetivo maléfico. Observou as pessoas no transporte coletivo. Senhoras, senhores, jovens damas e crianças. Estudantes e vendedores ambulantes - desses que usam colete do sindicato dos vendedores ambulantes -, e oferecem queimados, bombons, canetas lanternas e pequenos brinquedos. Uma estudante com o seu grupo de piriguetes no fundo do ônibus fazia encenações dançantes do mais novo pagode que rolava nas rádios, dançava e mostrava a calcinha vermelha - eram de uma conhecida rede de escola evangélica. Uma senhora pedia esmolas, acompanhada por uma criança negra, barriguda e remelenta. Ele lhe deu um real - a criança riu, mesmo sabendo que nada de direto teria daquela esmola. Andar de ônibus é um universo mirabolante.

Dameceno observava os prédios ficando para trás, o largo do Campo Grande, o hospital Universitário da UFBA. Ganhou o viaduto que daria no bairro da Federação.

O carro chegou ao Cemitério Campo Santo. Ele sentiu o mesmo frio na barriga, de sempre - o coração batia de forma descompassada. Ficou frio. Entrou com passos curtos, alheio ao movimento de gente, que ali iam visitar, ou enterrar os seus mortos. Era forte o cheiro de flores,ali.

Os túmulos - a sua visão é de mexer com os nossos sentimentos, principalmente, o medo - temos medo de morrer, e temos medo dos mortos. Temos, até respeito pelos mortos, talvez, daí, tenhamos tanto medo dos mortos, por não se querer ter inimigos invisíveis, habitantes de um mundo que o homem encarnado ainda desconhece.

Andava com passos lentos, por entre as covas. Mas, ali naquele momento era o ódio, o sentimento de vingança que apoderava o seu ser. A maldade latente, e até o escárnio.

- Enquanto, na porta do cemitério, vendem-se flores para os que aqui vêem visitar os falecidos, e outros se oferecem por alguns poucos reais para lavar o túmulo, trocar as flores, eu venho te dar o que merece Gordo.

Cuspiu no túmulo, em cima do rosto da foto.

Disse assim, diante do túmulo. E, ali se recordou da rivalidade que havia entre ambos. Eram vizinhos. Brigavam por tudo. Muitas vezes desenharam a reconciliação e o início de uma amizade - porém, a incompatibilidade de gênios não permitia a consolidação de uma amizade duradoura.Coisa de ódio mútuo - o Gordo era meio psicopata, não tinha domínios das suas emoções, era impulsivo, estava sempre se envolvendo em confusão, espancando e furando gente..

O Gordo usava drogas, vendia, também, na porta de casa da família. Tinham um pequeno negócio , onde comercializavam côco verde no passeio. Roubava - Certa feita, invadiu a sua casa e lhe roubou a tv. O seu cinismo era tamanho, apesar do roubo, fingia que nada havia acontecido, e ainda se utiliza do mais claro cinismo:

- Vai na delegacia, dar queixa... o ladrão deve ser conhecido.

Ele nada dizia. Muitas vezes o Gordo o encontrava saindo, pegava-o na porta de casa, e debochava, de forma humilhante:

- Viadinho, ja deu queixa? vai dar queixa... vai deixar o ladrão sem pagar? Não vou a sua cara, vontade de te dar chumbo na cara.

O Gordo era tirado a perigoso, mas nunca havia tirado cadeia. Os seus amigos eram os usuários do bairro e de outras áreas. Quando estava duro roubava senhoras no ponto de ônibus, ou estudantes - para manter o vício. O comportamento era de opressão, diante da vizinhanaça-gostava de se comportar como os bandidos do Rio de Janeiro. Dizia: " O comando é meu."

Queria o fim do Gordo, urgente, não iria esperar a polícia ou os seus rivais.

Então, resolveu tomar uma atitude de homem. Passou noites acordado pensando nas consequências do seu feito. Ganhando coragem, pois, estava sendo impulsionado pelo ódio, sentimento de vingança. O Gordo sempre que cruzava com ele o humilhava. Chamava-o de viadinho - isso o deixava roxo de ódio. Acontecia na frente de todos, algumas pessoas riam de sua cara. Chamavam-no de covarde, otário, bunda-mole.

E, naquela noite, o invasor foi ele. Preparou uma "bola" - um bolo de carne, com veneno e vidro pisado. O cachorro do Gordo comeu, em questão de minutos estava silenciado. Invadiu o quintal do Gordo. Pulou no murinho, escalou a grade da varanda. O Gordo estava bêbado e drogado. Dormia a sono velado. Os pais do Gordo e a irmã dormiam em cômodos distantes daquela parte da casa. Dava para invadir a casa pela varanda, ali não tinha grades.

recordava-se naquele momento, enquanto invadia a casa do Gordo, das muitas humilhações. O Gordo abria a janela do seu quarto, que ficava abaixo do dele, e pedia:

- Ô, vei me consiga um fósforo ai,vai, rápido.Vombora meu irmão.

Ele lhe dava, de boa vontade a caixa de fósforos, ou por temer as ações covardes do Gordo - temia principalmente pela irmãos que dividiam a casa com ele, oGordo poderia tentar algo contra, os irmãos eram pacíficos, e temiam mais o Gordo, respeitando-o como se fosse um líder do tráfico. Negando aquela caixa era uma semana de" aluguel". Coisas do tipo: " Viadinho, quando eu pedir as coisas passe.". Tinha o Gordo o objetivo de desmerecê-lo diante de todos, principalmente, quando tinha mulheres por perto. Gostava o Gordo de ter uma postura de miseravão, dono da área, o cara. Era de costume dar na cara dos outros, bater de pau.

Quando avistou o corpo gordo, ali diante da cama, tão frágil, dormindo.

Ficou tão emocionado - pois, exercitaria os mais reprováveis sentimentos, era muito mais do que ódio. Tinha a peixeira numa das mãos, a sua lâmina brilhava. O ódio na outra.

Ficou ali, imóvel diante do Gordo, observando, e pensando: " olha aí, o vacilão, podia estar morto, agora, todo furado."

Não teve coragem de matá-lo, o seu plano maquiavélico foi por água abaixo. Desceu, por onde veio - pobre do cachorro que morreu aos poucos, envenenado, sem um objetivo comum. Percebeu a loucara que havia feito, caso fosse descoberto seria um homem morto.

Assistiu na manhã seguinte, a família se deparando com o corpo do cachorro.

- Está morto?

- Oxente, morreu como?

- Deve ter sido o vizinho, quem mais?

Nada vizeram com ele a respeito do cachorro. Dera sorte, pois, eram pessoas sem amor pelos animais - se quer amavam o próximo. O pai era enrolado, dividia e não pagava, e usava o filho como um escudo para o confronto com os vizinhos.

Quando ele passou pelo Gordo na porta de sua casa, este lhe falou:

- Caso eu descubra que foi você quem matou o cachorro...eu te mato.

O pai do Gordo o dissuadiu daquela idéia, ele tinha certa postura diante dos todos, aquele segredo não seria nunca revelado, pois, tinha fama de ser boa gente, incapaz de matar um animal inocente. Além do mais, o cachorro incomodava com os seus latidos a mais de 20 vizinhos - qualquer um poderia ter feito. O caso foi esquecido.

Percebeu que havia dado sorte, caso tivesse matado-o seria um crime burro. Facilmente iria ser descoberto e iria para a cadeia por ter matado um verme humano, um desajustado.

Então, teve a grande oportunidade. Encontrou o seu rival num bar fuleiro da praia de Canta Galo, uma praia frequentada por pessoas sem boa reputação - era comum o crime de homicídio por ali. Era um beco frequentado por drogados e por pequenos traficantes, ladrões. Pacientemente ficou esperando. O Gordo saiu do bar acompanhado por dois camaradas seus. Estes montaram numa moto e seguiram, o gordo apertou a mão dos dois, e seguiria andando para o bairro da Calçada, onde moravam. Ele ficou sentado na calçada na penumbra à espreita.

Aguardou o gordo passar, então, saiu da escuridão do beco e o golpeou com um golpe de porrete na sua cabeça. O gordo caiu pronto. Continuou a bater, bater, bater na sua cabeça, transformando esta numa massa vermelha de sangue, ossos partidos e massa encefálica espalhada pelo piso de pedra de calçamento. Deu vários chutes nas costelas, no saco e seguiu na direção da praia.

Sentiu tanto prazer naquele momento, um êxtase semelhante ao orgasmo sexual. Pingos de sangue banharam a sua camisa. Foi á praia e lavou a camisa e a calça. Seguiu pela escuridão da praia. Andou mais de dois quilômetros, então, foi dormir num hotel das proximidades. Relaxou e dormiu o sono dos anjos.

Uma semana depois o Gordo morreu no Pronto Socorro. A família chorou, a vizinhança comemorou. Ele seguiu o enterro.

Naquele dia Damaceno fazia um upgrade das muitas humilhações que o Gordo lhe fazia sofrer - quando uma mulher lhe interessva, como foi o caso da linda loira que trabalhava numa loja de motos, próximo de sua casa, e ele tratava de queimar o seu filme: ´"é viado e é muito otário, aquilo é homem, nada, um bosta, bunda-mole."

A humilhação foi maior, ao ver de sua janela a loira no quarto do Gordo, e este lhe pediu: " Ô vei, jogue uma camisinha, aí..."

Jogou a camisinha - e, ficou ali, sofrendo, ouvindo as estocadas do feio Gordo na mulher que ele desejara - e ,a vadia estava ali com o Gordo suado, que fazia trabalho braçal. Analfabeto, sem educação, sem boas relações sociais. Doeu, e muito para ele.

- Está morto, viu filho de puta.

falou assim, com sadismo desmedido - a voz de um assassino cruel. Uma vingança implacável, acreditava até, que foi Deus quem lhe proporcionou tal coisa. Jogou o lixo fora - limpara a rua onde morava.

Cumpria sempre aquee ritual, quando podia, ia ao cemitério visitar a cova do Gordo.

- Viu desgraçado? Mexeu, mexeu em cobra com vara curta. Achava ser o miseravão, por ser viciado em drogas, ser traficante pequeno, e por ter amizades de caráter duvidoso. Agora, está aí, apodrecendo: MORTO.

dava risada e urinava na cova do algoz. Passou a fazer seviço completo, urinava e fazia coco em cima da cova do algoz. dava cusparada, escarradas, quando estava gripado. havia cometido o absurdo de se masturbar e espirrar na foto do Gordo.

Aquela atitude havia se tornado uma obsessão irresponsável, nutrida por um ódio incontrolável que não havia cessado com o fatídico.

Mais um dia se dirigiu para o cemitério para tal ritual de escatologia.

Urinava e fazia as necessidades fisiológicas no túmulo do inimigo. Ficava ali, admirando o banho de urina no túmulo e a rodia enorme de coco em cima do mesmo. Não sentira naquele dia a noite chegar. Por curiosidade, observava o zelo de todas as covas, onde jarra com flores decoravam-nos. O zelador cuidava dos mesmos com esmero.

- Vou embora, verme. Tenha um boa estadia aqui na terra dos pés juntos. Andou por um caminho entre túmulos, andou, andou. Virava as esquinas entre os túmulos, até que pressentiu algo estranho.

- Mas, cadê a saída?

Mais uma vez inicou a andar por entre as covas e túmulos, andou à exaustão, pressentira que a noite se estendia e não conseguia encontrar a saída do cemitério.

- Mas, o quê é isso? Este cemitério não pode ser tão grande assim...

Observava com espanto. Agora, até passava por cima dos túmulos, e percebeu, que estava andando em círculos, por mais que andasse por entre as lápides, mausoléus e túmulos, covas, voltava a estar na frente da cova do seu inimigo - suja de merda e de urina.

Não se deu por vencido e iniciava novas procuras, novos percursos em busca da saída do cemitério, até que exausto, desesperado e crente de que se encontrava diante de um fenêmeno sobrenatural. Então, ouviu uma voz que lhe respondeu:

- Não tem saída...

Assustado, procurou por entre os túmulos, quem lhe havia respondido.

- Quem está aí? Quem falou comigo?

- Não tem saída...

Foi o que ouvia. A madrugada estava alta. As corujas ja caçavam as ratazanas que no cemitério fazia abrigo. A lua cheia imperiosa no céu. Desenhava na abóboda celestial uma grande nuvem cinza. Caiu um toró.

E, ali, ele continuava, por entre as covas, túmulos e lápides a procurar a saída do cemitério, sem contudo ter sucesso. Por mais que procurasse não encontrava a saída, como se tivesse sido envolvido por uma maldição sobrenatural. Ele griatava:

- A saida, eu quero encontrar a saída, os mortos me perseguem, socorro, eu quero encontrar a saída, os mortos me perseguem,socorro.

Uma semana depois.

O cemitério seguia na sua rotina: enterros, visitas.

Em certo momento, um enterro foi interrompido por um homem sujo, mal vestido, feito um mendigo, descabelado e gritava:

- Socorro, eu quero encontrar a saída, os mortos me perseguem, eu quero encontrar a saída do cemitério, socorro..

As pessoas ficaram assustadas, quando um funcionário pediu calma á todos, o enterro não seria interrompido. Deu um balde com água ao louco, um vassoura e um rodo.

- Calma, tome va cuidar de sua cova.

Uma senhora que ali, estava, com curiosidade perguntou:

- Não entendi, ele trabalha no cemitério, é o zelador?

- Não senhora, é louco mesmo. A família o encontrou certa vez aqui, feito um louco, perdido por entre as covas. Mas, ele sempre foge e vem para o cemitério. Surta, so fica calmo quando damos uma vassoura, um balde com água e o rodo. Então, fica ali, lavando, limpando aquela cova. É uma cova que vivia abandonada, estava sempre suja de coco e urina.

Fim

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 21/10/2012
Reeditado em 06/08/2013
Código do texto: T3944743
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