Gypsy Boys - Uma História de Arte Macabra - Parte II

-Mestre, olha a belezinha que consegui.

O mestre da pintura virou o rosto, de forma lenta, sem muito interesse, parecia cansado e introspectivo. Estava diante de uma tela inacabada. O corpo da criança, na tela estava pintado, porém, faltava o desenho do rosto. O cheiro da tinta á óleo era intenso no ambiente. Bisnagas estavam pelo piso de pedra, de todas as cores. Pincéis de crina de cavalo, outros de pêlo de marta - os melhores para definir, e para texturas intensas. Algumas espátulas, de dimensões diferentes, também, eram usadas - estavam sujas de tinta, por entre os pincéis.

-Oi.

Disse a garotinha,estava vestida com simplicidade. Uma blusa de cor ocre, de pintura desgastada, com alguns remendos, uma saia vermelha encardida. As maçãs do rosto eram de tom róseo vivo. Os cabelos loirinhos, de lindos olhos azuis. As unhas estavam sujas. Calçava um velho par de sapatos pretos, provavelmente devia ter furos na sola.

- Oi, tio,(falou para o pintor,com voz mansa,tímida) ele disse que se viesse para me pintar, eu iria ganhar pão, se puder, quero mais de um, tenho um irmãozinho - ele chora de fome. A guerra está acabando com tudo-que Deus nos acuda...

Falou o inocente anjinho. Tinha numa das mãos uma boneca - que fora encontrada no lixo- a boneca não tinha um dos braços e lhe faltava uma das pernas, o cabelo era pela metade,estava suja.

-É, eu sei, criança, a guerra trouxe a fome. Eu lutei, vi gente morrer assim, e, também, matei atirando. Eu tive medo de morrer. Você já teve medo de morrer alguma vez na vida?

A garota nada lhe respondeu, o olhava hipnotizada, o coraçãozinho em disparada carreira. Parecia sentir naquele homem o mal da guerra: destruíção e morte.

O timbre de sua voz, a intenção revelava isso para a pobre menina, que parecia pressentir mais algo além das dores da guerra.

- Mestre, quer que eu saia?

- Não vai ser preciso. Dê um pedaço de pão à garota, está la no armário da cozinha.

A criança, sem pedir licença sentou-se numa cadeira, com dificuldade, devido á sua pequena estatura. Talvez, tivesse apenas sete ou oito anos.

O mestre deu um grito, e pediu ao seu fiel escudeiro que desse um jeito no cheiro forte que vinha do fosso, onde jogava os seus modelos, após a conclusão da obra de arte. Costumava providenciar certo volume de ácido para apressar a decomposição.

Um pedaço de pão lhe foi servido, ela o abraçou, com um sorriso longo na sua linda face de pele alva - ficara surpresa com o tamanho do mesmo. Na guerra a alimentação é racionada-tudo é pouco.

- Eu vou pedir dividir com o meu irmão faminto, e talvez, até com a mamãe. O meu pai foi pra guerra, mamãe disse que talvez não volte.

Disse a criança, num sorriso - infantil, ingênuo, como se quisesse negar naquele sorriso de dentes amarelos, o fim do pai.

Giuseppe a observou - este era o nome que o mestre dos quadros Gypsy Boys estava usando naquela província. Gritou mais uma vez para o seu criado, que cuidava do fosso, este veio às carreiras.

- Traga mais um pão, de mesmo tamanho e dê à garotinha.

- Mas, mestre, não estou entendendo, o quadro vai ser tão custoso assim? Vejo que já o tem quase por completo, veja, mestre falta só o rosto, o desenho do rosto. Temos pouco pães...

- Traga o pão, poupe-me de suas observações.

A garotinha estava mais desinibida, vasculhava o ambiente, indo até ás telas, olhava os quadros de crianças chorando. Eram meninos e meninas, como ela -´filhos da guerra e da miséria-, que assolava a Europa. Ficara num míster de euforia e festividade, por conta dos pães, que não largava com os dois bracinhos sustentados no seu tórax.Porém, os quadros eram amedrontadores. Curvava o corpinho para melhor ver as pinturas sinistras, que retratavam a dor, o sofrimento infantil durante àquele período obscuro da humanidade - onde pais iam para a guerra e não voltavam. Senhoras e jovens mulheres eram espancadas, humilhadas e estupradas. Filhos eram recrutados para irem ao front de batalha - iam para matar ou morrer. A guerra faz assassinos - tudo muda na vida de um homem depois de empunhar um fuzil, e poder matar ,sem sentido. A alegria dos pães se confundia com a tensão.

O mestre a observava na sua curiosidade infantil, viu os olhinhos vasculharem os tubos de tintas, pincéis, os tecidos sujos de variadas tonalidades de cores das tintas. Mas, percebeu que lhe foi impactante as imagens de gente de sua idade chorando - como se tivessem sido castigadas. A garotinha parecia ter percebido qual seria o seu fim. O mau cheiro de carne podre era intenso, ainda no ambiente. Apesar do choque, não largava dos pães - os apertava com os dois bracinhos contra o peito, enquanto o par de lágrimas, enfim, escorreu pela bela face de anjo. Ali, ficou estática, em choque. Desenhou-se uma carranca de dor e sofrimento em sua bela face, transformando-se numa carranca de choro intenso, silencioso, de soluços contidos.

Tudo o que o mestre fez foi puxar o cavalete para junto de si, e dali, em diante, como se estivesse possesso, em traçados ligeiros, usando a gama de cores que ja dominava com todo o seu talento excepcional para fazer retratos de figura humana, rabiscou o rosto da garotinha, com grandes lágrimas que lhes escorriam pelo rosto. Os braços da pintura foram arrancados às pressas, de forma febril - foram substituídos de forma magistral pelos seus que seguravam os pães. O mestre estava suado, porém, alcançara um êxtase que so ele sabia o sabor, e pela primera vez, depois de tantos quadros de Gypsy Boys havia, atalvez, feito a sua maior obra de arte daquela coleção.

Amabelle não aguardou que o mestre lhe dirigisse a palavra. Depois do choque, de ter ficado ali, estática, com medo do que lhe sucederia- à semelhança das demais crianças-, quando percebeu que não era mais útil ali, como um animal acuado desejoso de se livrar de um fim eminente, movimentava-se sem gestos bruscos, virou-se sem pressa, sem tirar os olhos do mestre das pinturas- este a observava, como fazem os lobos diante da presa frágil, impávido, frio. Ela abriu a porta e saiu. Quando estava na rua deu uma carreirinha, sempre olhando para trás. Não largava dos pães. Chorava de alegria, por ter sobrevivido, por não ter sido tocada. O coração batia forte.

- Mas, mestre, assisti a tudo - o quadro ficou perfeito.

- Obrigado, mas não preciso dos seus elogios.

Depois de alguns segundos de silêncio sepulcral, o criado indagou:

- Não entendi...desta vez, por quê não a maltratou, e deixou que se fosse? Querendo posso ir atrás dela e trazê-la, de volta...O fosso tem espaço para mais um.

- Não. Ela foi perfeita. Não precisei de nada, além de observá-la e usar dos pincéis e das cores. Perfeita, ela foi perfeita.As suas lágrimas escorrendo pelo rosto juvenil,a expressão do mais absurdo pânico,medo,terror...ela foi excepcionalmente perfeita.Eu não precisei judiar,maltratar,ofender...parece-me que a guerra ja a tinha tocado no interior para sempre,como se fincasse em sua alma,de forma impiedosa:a dor. A dor que retratei no quadro,uma arte macabra dos homens em busca do poder.

FIm

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Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 19/10/2012
Reeditado em 20/06/2018
Código do texto: T3941871
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