TERRA SECA 2– HEREGE

"...Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos."

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Quando as guerras começaram, depois das catástrofes, todos foram convocados a lutar... não sabíamos pelo que lutávamos, apenas respirávamos e matávamos... nossas famílias se foram, lembro-me de quando era criança como foi difícil quando meu cachorro morreu, Bingo era o nome dele, eu o enterrei nos fundos do quintal e chorei por horas... antes de abandonar minha velha casa enterrei no mesmo local o que sobrou da minha família, nem sequer derramei uma lágrima. E por mais duro que seja, foi mais difícil abandonar os bens materiais do que meus entes queridos.

Você pode estar me condenando por isso, mas não sabe o quanto eles sofreram e o quanto eu sofro, agradeço todos os dias por estarem mortos. Já os bens materiais, por menores que fossem, me davam esperanças. Estar na minha casa e com as minhas coisas, me fazia sentir como se tudo estivesse bem... quando consegui me desapegar, tornei-me outra pessoa; uma máquina, sem esperanças, sem horizontes, sem destino.

As primeiras comunidades surgiram logo após as guerras, eram comandadas por líderes religiosos, tinham suas próprias regras, regras rígidas. Cercadas por muralhas ninguém entrava ou saia sem autorização. Lá dentro reinava a falsa paz, as pessoas, chamadas civis, se prestavam a tirania, as imposições, por medo do mundo lá fora... e elas tinham razão. Ingressei em uma comunidade depois que servi nos confrontos, nunca gostei do lugar, entreguei todas as armas que portava e me despus a seguir a religião deles.

Fanáticos até os ossos e doidos, na guerra a maioria perdeu a noção de humanidade, tornaram-se marionetes do que se dizia superior, faziam rituais absurdos e foi em um desses que reagi. Era uma data especial para eles, dia de não sei o que, já fazia um tempo que eu tinha perdido a noção do calendário, enfim, eles comemoravam sacrificando uma virgem. DÁ PRA ACREDITAR? eu não acreditei... escolheram uma criança, uma menininha dos cabelos vermelhos, aproximadamente dez anos de idade. Muitos pais abusavam das próprias filhas para livrá-las da fogueira, mas não os dela; eles eram “plantadores”, gente íntegra, honesta, cumpriam os deveres que lhe foram designados e cumpriram esse também... entregaram ao líder a sua garotinha, sua única filha.

Amarraram a pequena em uma haste de metal. Rezavam e a ungiam com óleo, fiquei estagnada, não era possível que levassem isso até o fim, mas pensei... já aconteceu antes. As pessoas assistiam como se o tempo houvesse retrocedido para culturas antigas, atearam fogo na criança... os gritos eram torturadores. A maioria das pessoas deixavam o local enquanto a menina ardia e gritava, seus longos cabelos em chamas, sua pequena face distorcida sendo consumida pelo fogo, pela dor. Não consigo descrever o que senti, mas não pude ver aquela cena e ficar ali; parada. Sem pensar nas consequências, por instinto agi. Avistei um longo machado de lenha, e não tive dúvidas. Avancei desesperadamente em direção à menina em chamas e desferi dois golpes na cabeça da pequenina. Enfim ela se foi, e eu... eu fui julgada e condenada ao exilio. Assim me tornei viajante.

Continua em Pós-Apocalipse – A vingança

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 17/10/2012
Reeditado em 16/08/2014
Código do texto: T3937878
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.