Contos do Cemitério - Saudades Eternas

A chuva torrencial causava uma sinfonia ensurdecedora no telhado de telhas. Antes de deitar-se deu uma última olhada pela janela. A noite estava escura, porém a luz do poste que dava para o caminho principal do cemitério desenhava os pingos de chuva que caiam, feito flechas varando a noite. Era uma cena bonita de se ver, a chuva caindo - ficou olhando, por segundos -" talvez ele esteja la, de pé, diante da cova" - pensou. Era um homem solitário, meio século de vida - nada de vitórias. Havia seis anos que estava empregado no cemitério, um dos maiores da cidade. Ali, a burguesia escolhia: o crematório ou um mausoléu com decorações no estilo gótico, de linhas sinuosas na construção - que lembrassem a idade média Na arquitetura,ali apresentada no estilo arco de ogiva. Ali, o morto aguardaria com paciência os vermes fazerem dos restos mortais, o banquete do corpo ja sem vida, inútil. Este estilo, o gótico, surgiu na França nos fins do século XII e expandiu-se pela Europa Ocidental, mantendo-se até a Renascença, ou seja, até o século XIV, na Itália, e até o século XVI ao norte dos Alpes. A arquitetura gótica como um sistema de abóbadas, cuja estabilidade era assegurada por um equilíbrio perfeito de forças, como o bem e o mal, céu e inferno. Anjos acompanhavam a última morada dos mortos para suavizar o macabro, talvez aproximar o que se foi para o celestial - sempre pensamos que os que morrem vão para o céu, ou para o inferno -, a vida tem provado que nem sempre é assim. A morte é um mistério inexplicável, nem sempre. Muitos fenômenos ja se manifestaram ao longo dos séculos impressionando gerações. O cemitério é uma testemunha viva desses fenômenos,acreditem.

A chuva alagava a rua princiapal, a que abria várias bifurcações para diversos caminhos de covas de todos os tipos e estilos. Tinha as que ficavam sobre a grama, com a lápide sobresaindo-se, de forma imponente, ali estava o epitáfio escolhido pelo parente querido, talvez, pelo próprio falecido. As kriptas em estilos diversos, casavam-se num conjunto de formas,cores,azulejos e pedras de diversos estilos que nos remetiam num relance ao contato com o silêncio eterno: a morte.

José , um homem comum, pobre, semi-alfabetizado. Um salário na carteira e habitava ali, no silêncio da noite, entre os mortos. Uma cama, um guarda-roupa, com poucas peças de roupas, três pares de sapatos, um criado-mudo. Chuveiro sem água quente. Uma cozinha de fogão de duas bocas. A tv eternamente ligada, pois, a noite custava a passar.

A recomendação da administração do cemitério:" fazer uma ronda por entre as covas, pois, os mortos nem sempre descansam em paz."

Rituais sinistro eram feitos na calada da noite, por seitas ligadas ao ocultismo, por entre os túmulos. Roubavam partes dos cadáveres, ainda em putrefação, ou ja em estado esquelético. Casais com fantasias incompreensíveis - fazer sexo entre os mortos-, jovens invasores, que ali, aproveitado-se do silêncio, bebiam e afogavam os conflitos da adolescência no etílico.

Certa noite, saiu para a ronda costumeira, munido de uma lanterna, vestido com uma longa capa, um chapéu. Calçando botas e um cassetete na mão direita. Sempre que fazia àquela ronda ficava tenso, amedrontado. A adrenalina lhe subia no sangue. Ficara gelado, de medo ao avistar uma dupla de ladrões violando um túmulo. Escondeu-se por entre as tumbas, pois, temia pela sua vida, eram dois, ele um homem so e de posse apenas de um cassetete. Para sua surpresa estavam violando uma tumba, cujo enterro havia acontecido naquele dia, em menos de oito horas. Era meia-noite. Viu o caixão ser retirado da cova. Um deles tirou um maço de notas do bolso da calça, o outro recebeu o dinheiro pela ajuda e se foi. O homem que ficou fazia sexo com a jovem mulher morta. Estarrecido, o vigia José sacou o apito que tinha pendurado no seu pescoço, pôs a apitar sem parar. O homem assutou-se, correu e saltou o muro." O que poderia fazer?" - Indagava-se. Não chamou à polícia, poderia ser confuso aquele ocorrido, nem pensaria em avisar á direção do cemitério pela manhã - ele não tinha como provar, poderia até ser acusado daquela violação macabra. E, ali, na calada da madrugada, se sentindo mal, tremendo de medo, tentou ser forte o bastente e devolveu a jovem morta para o seu caixão, preparou o cimento e retocou a sua kirpta, com esmero. " Os mortos não incomodam os vivos"- dizia para si o tempo todo, a cada segundo, objetivava fortalecer a sua coragem, enquanto enterrava a morta. Sonhara por muitas noites com o rosto da morta lhe olhando, parecia viva, sorrindo-lhe - acordava assustado, suando frio - olhava pela janela, como se quisesse ver in loco o fantasma da mulher vindo em sua direção, ja não fazia a ronda com tamanha frequência, disposição - tinha medo, uma inexplicável sensação desagradável. Não podia sair do emprego- não teria outro meio de vida.

No dia seguinte, chocado com tal pertubação desrespeitosa, adquiriu um buquê de flores e o depositou na cova da mulher, talvez assim, a mesma pudesse sentisse-se mais aliviada diante de tal violação, e o deixasse em paz nos seus pesadelos - José acreditava na imortalidade da alma.

A cena repetida todas as noites era digna de um filme classe B de terror, temia perder o emprego, precisava dar continuidade ao serviço noturno pelas ruas do cemitério. Os passos lentos por entre ás covas. A luz da lanterna de túmulo a túmulo, e rompendo a escuridão do caminho. Um barulho estranho por entre uma kripta, um susto terrível, o coração disparando - medo, - e a luz da lanterna denunciando um gato preto, que o olhou e em silêncio e se foi. Uma coruja que soltava o seu conto agourento, pulando de galho em galho. A chuva torrencial, incessante. A visão dos túmulos, assustadora.

Até que, estranhamente, parecia que mais uma vez naquela noite, o descanso dos mortos seria interrompido, mas, o que vira o deixara pasmo:

Um garoto, adolescente estava parado, de costas diante de uma cova. Não se importou com a sua aproximação, as suas passadas, de botas eram bastante denunciadoras.

- Ei, você, o que faz aí?

Gritou para o garoto - na verdade, tremia de medo, a voz saiu travada, tremida. Ficou parado, não se aproximou. A vontade foi sair correndo, assustado. Sentia as pernas tremendo.

O garoto o olho, virando somente o rosto, viu lágrimas no seu rosto.

- Não se respeitam mais nada nesta vida, moço.

Disse o garoto.

- Q-quem é você? O que faz uma hora dessas aqui?

José estava acostumado com situações das mais esdrúxulas no cemitério. As pessoas precisam sair um pouco mais de frente da tv, ou da internet para saberem como a vida é, não, como pensam que seja.

- A minha mãe, moço...ela está nesta cova...

- Compreendo a sua dor, garoto, mas isso é hora para vir chorar um familiar falecido? Não posso deixa-lo aqui, é contra o regulamento.

- Não vou sair daqui, ficarei aqui guardando a sua cova, eternamente,caso seja possível. Agradeço as flores que depositou na sua cova,e por ter escurraçado aquele maldito doente, o necrófilo.

Então, José se recordou do feito - havia sete dias o acontecido, mas, estranhou que o mesmo estivesse naquela noite ali, e presenciara tudo sem ter se manifestado. Ficaram alguns minutos dialogando, reconfortando-o da perda da mãe e pela violação do seu túmulo. O garoto resistia, não queria ir embora - o vigia o deixou e foi repousar - abriu naquela noite essa execeção na invasão do cemitério.

Manteve-se em silêncio, com relação á presença do garoto, por todas ás noite no cemitério. As suas rondas noturnas não estavam mais acontecendo, haviam se tornado obsoletas. Dormia tranquilo - havia um vigilante espontâneo assombrando os visitantes indesejáveis- o filho da jovem senhora, que o vigia havia impedido a ação do necrófilo. Dias depois havia depositando mais uma vez, de compaixão, em outra cova um novo ramo de flores, conquistando de vez a simpatia do garoto, que seria ali, um vigia eterno, eterno enquanto durasse os seus dias de alma penada.

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 11/10/2012
Reeditado em 18/09/2013
Código do texto: T3928067
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