QUANDO OS ANJOS NÃO QUEREM VOAR

Quando desliguei o telefone, a minha vontade era apenas de chorar. Chorar como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorar como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

Quem estava do outro lado da linha era meu pai. Ele é zelador em um colégio de ricaços aqui em São Paulo. Graças a isso, eu e meu irmão tivemos educação de primeira classe quase que a custo zero. Ele havia ligado porque haviam problemas na escola, onde continuava trabalhando, mesmo depois de aposentado.

O problema todo tinha a ver com pessoas que eu conhecia. Dona Lucinda havia sido minha professora de educação artística. Foi uma das professoras que mais me influenciou pela vida toda, um ser humano fantástico. Só tinha um probleminha: fumava feito uma chaminé. Dava pra sentir um bafinho de cinzeiro de longe. Fora isso, e muito mais importante que isso, era um ser humano maravilhoso.

Fiz aula junto com a filha dela, Luísa. No segundo grau, ela foi uma das grandes paixões não correspondidas da minha vida. Vinda de uma classe muito mais abastada que a minha, acabei caindo no papel de pobrezinho bom para amigo, mas jamais bom o suficiente para namorado. Papel que, aliás, eu vivia interpretando enquanto estudei naquela escola. Fazer o quê? Felizmente, é um tempo que ficou para trás. Luísa, por sua vez, formou-se em Letras e foi dar aulas de Português e Inglês na escola onde sua mãe havia trabalhado e nós havíamos estudado juntos.

Lembro perfeitamente de quando Dona Lucinda morreu. Câncer de pulmão. Óbvio como dois mais dois serem quatro. Lutou muito, lutou até o último minuto. Mas há uma hora em que todos temos de ir.

Numa determinada hora do velório, lembro de ter saído para tomar um ar fresco e visto Luísa caminhando entre os túmulos, absorta em seus pensamentos, com um cigarro na mão. Apesar de odiar cigarro, normalmente não fico enchendo o saco de fumante, a menos que a fumaça esteja me incomodando. Mas, naquele dia, naquela situação, eu não consegui me conter:

- Já não é suficiente esta porcaria ter levado uma pessoa da sua família?

Ela me respondeu apenas:

- Fácil criticar. O vício não é seu...

Pouco tempo depois, Luísa morreu num incêndio, adivinhem só, provocado pelo cigarro que estava em sua mão quando ela adormeceu, bêbada. O divórcio com seu príncipe encantado acabara com os nervos dela. E a única coisa boa que resultou deste casamento foi uma menina linda chamada Maria Helena, para quem nunca consegui olhar sem pensar que ela deveria ter sido minha filha.

E era este mesmo o motivo da minha enorme vontade de chorar. Meu pai havia dito apenas uma frase ao telefone:

- Euller, a Maria Helena está com problemas. Ela precisa de você.

xxxx

Foi fácil encontrá-la. Terminei de subir a escada e virei à direita, na direção das salas de aula. Ela estava no ateliê das aulas de educação artística. Sentada no chão, entre papéis e giz de cera, desenhando. Eu procurei me aproximar com cuidado, não queria que ela se assustasse. Ao meu lado, o professor de educação artística, Professor Mazuka – do qual todos davam risada por ser talvez o único japonês no mundo a se chamar Sebastião. Sebastião Mazuka.

Eu estava apreensivo. Já é complicado quando se trata de adultos, fica pior ainda quando envolve crianças. Especialmente crianças que conhecemos e amamos. Mazuka, por sua vez, não conseguia disfarçar seu nervosismo. Eu entendia perfeitamente. Naquele momento ele era alguém que estava se sentindo fora de seu território, inseguro e se sentindo desafiado. E não podia fazer o que fazia habitualmente, se refugiar na sua autoridade de professor.

Chamei por ela com a maior suavidade que pude colocar em minha voz.

- Maria Helena?

Ela não virou o rosto em minha direção. Estava ocupada, desenhando. Apenas sorriu. E sorriso de criança é assim: um mais lindo que o outro. Aquilo doeu em meu coração.

- Oi, Euller!

Eu não sabia o que dizer. Felizmente, ela mesma acabou quebrando o silêncio.

- Euller, por que o professor Mazuka nunca deu dez em desenho pra ninguém da minha classe?

Desta vez, eu sorri. Eu sabia a resposta para aquela pergunta. Mas achei que Mazuka precisava participar da conversa também.

- Então, professor Mazuka, por que você nunca deu dez para ninguém da sala da Maria Helena?

Mazuka estava realmente incomodado. E quase se precipitou.

- Ela...

Fui rápido em interrompê-lo.

- Professor Mazuka, não seja indelicado. Apenas responda a pergunta, sim?

Não me preocupei em ser gentil com ele porque já havíamos conversado antes. E ele quase estragara o que havíamos combinado.

- Sim, cl-claro - gaguejou Mazuka - Desculpe... ahn, é que eu percebi que, quando eu dava dez nos desenhos, as crianças acabavam se acomodando depois. E não criavam mais como poderiam criar, entende?

Sorri de novo para ela.

- Está explicado?

Ela fez que sim, balançando a cabeça. Seus longos cabelos castanhos balançaram de maneira desajeitada.

- Euller, você quer desenhar comigo?

- Claro, Maria Helena! - Eu não queria que a situação se prolongasse, mas contrariá-la não ia ajudar em nada - O que eu devo desenhar?

- O que você quiser.

Apanhei papel e giz de cera. Mazuka fez menção de falar, mas fiz sinal para que silenciasse. Ele se calou a contragosto. Eu entendia o seu incômodo. Mas eu falaria com ele depois. Havia questões muito mais importantes em jogo no momento.

Sentei-me em uma das carteiras e comecei a desenhar, sem tirar os olhos dela. Mas também procurei caprichar no desenho. Nada ali poderia dar errado.

- Maria Helena, o que você acha do meu desenho? - coloquei o papel no chão, ao lado do desenho dela.

Ela olhou com um ar bastante crítico. Eu não pude deixar de sorrir, eu conhecia aquele ar de superioridade, como se o desenhista fosse um espécime inferior e que estivesse prestes a ser guardado num frasco ou jogado no lixo. Mazuka fazia isso com todos os alunos. Era muito ruim. Não era à toa que ela tinha tantas divergências com ele. Ele não era mau. Mas era uma pessoa difícil de se lidar, especialmente para uma criança vinda de um lar onde o conto de fadas acabara de falir.

- Eu achei seu desenho muito bom, Euller. Eu acho que você merece dez. O professor Mazuka concorda?

- Professor Mazuca, Helena acha que meu desenho merece um dez. O que você acha?

Ele fez o que sempre fazia. Levantou os óculos, fez aquela expressão desagradável e deu seu veredicto:

- Eu concordo com ela. Você se saiu muito bem. E ela fez uma excelente avaliação.

Cortei Mazuca antes que ele estragasse tudo, pecando agora pelo exagero.

- Obrigado, Professor Mazuka. Foi muito gentil de sua parte.

E, voltando-me mais uma vez para Maria Helena:

- Você não está cansada, querida? Não quer ir descansar?

Ela acenou que sim, com a cabeça.

- Mas antes quero terminar uma coisa.

Estendendo-se até onde estava meu desenho, ela escreveu algo nele com seu giz de cera. Depois levantou-se e, batendo a poeira do uniforme, ela finalmente virou-se de frente para mim. Pude então ver o outro lado de sua face, destruído pelo fogo.

Foi uma das poucas vezes que fiquei feliz por ter a experiência que tenho nestes assuntos. Apesar da visão da face desfigurada ter mexido comigo, pude disfarçar meu incômodo. Ela não precisava tomar consciência daquilo. Tampouco iria contar aquele detalhe para Mazuka. A cabeça dele já estava a mil com toda aquela situação.

- Bom, então eu vou indo, Euller. Estou tão cansada...

- Sim, querida, vá tranquila. Está tudo bem. Pode ir descansar agora. - Queria abraçá-la, beijá-la, dizer que eu queria muito ter sido pai dela e que eu ia sentir muitas, mas muitas saudades mesmo. Mas me limitei a sorrir. Eu não queria que nada lhe prendesse aqui, neste mundo, agora que ela já não pertencia mais a ele.

Ela fez um tchauzinho para mim, virou-se e seguiu andando em direção ao fundo da sala. Antes de chegar à parede, ela desapareceu.

xxxx

A copa estava vazia, afinal todos os professores tinham iniciado suas aulas naquele momento. Então eu e Mazuka podíamos conversar à vontade, sem precisar nos preocupar com ninguém, pelo menos pelos próximos quarenta e cinco minutos.

- Euller, você pode me explicar o que é toda esta confusão onde acabei me metendo?

- Embora pareça absurdo, é relativamente simples. - Minha vontade era aproveitar o momento para dar um sermão em Mazuka, porque eu também nunca havia gostado da pose que ele fazia e do modo pedante como tratava os alunos. Mas sabia que ele fazia tudo isso porque era tímido e inseguro. Tratar-lhe com dureza não o ajudaria a aprender nada com aquela situação.

Ajeitando meus óculos, continuei minha explicação:

- Maria Helena admirava muito você. Ela sempre foi uma excelente desenhista, você sabe disso. E admirava você, não apenas por sua habilidade em desenho, mas também por ser capaz de ensinar as pessoas a desenhar.

- Nunca percebi isso...

Acabei sentindo pena do pobre coitado. Tinha um talento enorme para desenho, pintura e design, mas era um zero à esquerda quando se tratava de pessoas.

- Mas é verdade. Ela me disse isso várias vezes, quando ainda era viva. Então, quando cheguei aqui e meu pai disse que algumas das suas alunas começaram a gritar no meio de sua aula que estavam vendo o fantasma dela, eu logo entendi o que estava acontecendo. Ela queria resolver suas diferenças com você antes de partir. Morrer pode ser uma coisa confusa, ainda mais quando se é criança e se parte de uma forma tão violenta assim, como no incêndio que vitimou Maria Helena

- O que foi que você viu lá em cima? Ela estava realmente lá?

Percebi onde ele estava querendo chegar:

- Você realmente não está acreditando em nada disso, não é?

Ele respirou fundo. E foi sincero:

- Não. Aceitei você aqui porque seu pai, a quem todo mundo admira nesta escola, me disse que você podia ajudar estas pobres meninas histéricas. Mas não achei que você ia acabar me fazendo passar por essa encenação, de ficar falando com o ar, como se fôssemos duas crianças brincando de faz de conta.

- Eu entendo. Mas há algo que você deveria ver, antes de chegar a qualquer conclusão.

E entreguei para ele o desenho que eu havia feito lá no ateliê de artes, quando conversamos com Maria Helena.

Quando ele olhou para o desenho, pude observar a surpresa em seu rosto. Ele estava estupefato. Afinal, escrito com giz de cera no canto inferior direito da página, estava escrito "Dez! Meus parabéns!" E ele conhecia bem aquela letra, sabia que pertencia a Maria Helena.

- Meu Deus, esse seu dom deve ser horrível, né? Ficar falando com os mortos....

- Existem raras vezes em que vale a pena. Esta foi uma delas. Bom, até logo, professor.

- Até logo e obrigado, Euller.

Deixei Mazuka na copa e fui até um banheiro que ficava nos fundos da oficina de manutenção, o pequeno império de meu pai dentro daquela escola. Fui lá porque sabia que ali eu não seria incomodado. Tranquei a porta e finalmente me permiti chorar.

Chorei como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorei como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

FIM

Walcyra Costa
Enviado por Walcyra Costa em 06/10/2012
Código do texto: T3919491
Classificação de conteúdo: seguro