Um (quase) monólogo entre uma assombração e o reflexo assombrado
— Olá, como tem passado?- disse a assombração.
— Mais ou menos. Ninguém olha pra mim. - lamentou o espelho em tom pesaroso.
— E eu sou o quê?
— Você... Você não conta. Além do mais...
— Além do mais o quê? – perguntou em tom de irritação.
— Almas penadas não me assustam.
— Huummmm...Você é tão... – pensou alto e girou o pescoço.
— Que foi? Tá com medo de olhar para mim?
— Não é isso... é que às vezes te acho... - vacilou: as palavras agonizaram, atrofiaram e ressecaram na garganta como folhas de outono.
— Seco? Direto?
— Não sei. - respondeu após uma longa pausa.
— Claro que sabe... Assombraçãozinha de butique! - pausou – Olhe bem fundo que encontrará as respostas.
— N...
— Sim bunda mole!- esbravejou o espelho com tamanha fúria, que pareceu encerrar em si mesma a totalidade dos desencantos e frustrações.
— Pare com isso!- respondeu com voz aquosa -Você me deixa... Confuso. - abaixou a cabeça aguardando a chegada da bruma melancólica.
—Você é confuso... e covarde...- transpirou; erupções sudoríficas umidificaram a moldura vitoriana quando a superfície prateada enevoou.
— Vamos encerrar. - disse com voz embargada.
— Covarde. - suava.
— Pare. - tremia.
— Covarde. - suava, suava...
— Chega!- tremia, tremia...
— Covarde, covarde, covarde, covarde...
— Não!
— Sim!!!
Silêncio.
— Olhe pra mim. - disse o espelho serenamente enquanto a névoa deformava uma realidade há muito caótica e convulsiva. – Então? Não vai me encarar... Mesmo?
Como que por um estranho feitiço hipnótico, a assombração ajoelhou-se e olhou fundo:
— Sabe por que não gostas de mim?- perguntou o espelho.
— Não.
— Eu não minto!!!
Numa explosão de fúria e reconhecimento, a assombração estilhaçou a monstruosidade vitoriana em mil pedaços, abaixou a cabeça e se fundiu ao reflexo vaporoso que emanava dos incontáveis estilhaços afiados.
FIM