Como Afugentar Demônios!
¨Nenhuma fé é mais absoluta que a crença nas suas próprias forças!
(Do Autor)
Sei apenas que meu perseguidor era um demônio e que me encurralara naquele banheiro. Exasperado, batia na porta, que tremia frágil, dando-me palpitações aceleradas. Destruíra praticamente toda minha casa com sua fúria insana e, o motivo de sua ira era o meu ofício como caçador de falsos paranormais. De alguma forma, naquele último trabalho, o irritara bastante.
Foi em uma casa paupérrima, nos subúrbios da grande metrópole cercada por chaminés que cuspiam brasa e fogo, transformando o céu ao fim do dia naquela cor arroxeada, escondendo eternamente o encanto das estrelas, que despertei-lhe a ira doentia.
Tornei-me conhecido, na minha região, por desmascarar falsos endemoniados, profetas, videntes e qualquer outro tipo de situação que envolvesse o que as pessoas apelidavam de ¨sobrenatural¨. Meu método era simples: encarava os ¨ditos¨ e os invocava, provocava, confrontava seus métodos com a razão exigindo, entre outras coisas, que os fenômenos se dessem às claras.
Fantasmas e demônios, casos realmente existam, não se intimidariam com a claridade, de outro modo seriam fraude: essa era a minha lei.
Ao chegar àquela morada que mal se suportava em pé, repleta por infiltrações e cravada por rachaduras, vi que uma pobre menina afrodescendente encontrava-se atada a uma cama. A primeira coisa que fiz, ciente que na maioria dos casos, a própria vítima cria demônios imaginários fazendo-se arranhar, morder ou prejudicar propositadamente, parti para o confronto direto. Aprendi que a mentira não sobrevive a um olho-a-olho.
Os pais se recusaram:
- Moço, diziam, é perigoso! O ¨Cujo¨ é muito forte.
- Não acredito nesse ¨Cujo¨ ou em qualquer outro. Retirem as amarras. Eu me responsabilizo.
Tementes, fizeram o que ordenei.
A menina, nos seus 12 anos, frágil nas carnes, transpirava abundantemente. Um cheiro pútrido invadiu o ambiente. Enquanto ela vertia lágrimas, vi seus olhos revirando ao contrário e, primeiro se tornando esbranquiçados em toda a órbita, seguindo de uma vermelhidão impressionante. Já vira outros revirar os olhos falsamente, mas aquilo era inédito.
A seguir, sua cama começou a vibrar. Observei os pais, para saber do truque, mas encontravam-se afastados. Não vi cordas, nem madeiras soltas que pudessem causar vibração. Deitei-me ao solo e não vi nenhum aparato na armação e ninguém escondido. Quando me levantei, seu pequeno corpo flutuava a poucos centímetros e, em breve, subira a quase 1 metro. Fiquei pasmo. Não havia, naquela casa, ou no ambiente, nada que justificasse a elevação. Passei minha mão sob o corpo, e em volta, não percebendo truque algum.
Pela primeira vez meu ceticismo fora desafiado. De repente, seu corpo começou a girar no ar de modo violento e tremendamente rápido. Os pais gritavam temendo pela vida da garota. Sem saber o que fazer, ordenei em um impulso:
- Em nome da Verdade, exijo que pare!
O giro parou. A posição do corpo mudou e a sua fisionomia era terrível. Transmudara-se para um aspecto monstruoso, longe de qualquer paralelo. A repugnância levou os pais a se ajoelharem e começarem uma reza.
A criatura, encarando-me, inquiriu:
- Verdade? E o que é a Verdade? – Em seguida emitiu estrondosa gargalhada.
- Seja o que for você, desafio-o a abandonar essa forma frágil e a me encarar de homem para homem!
- Se é o que quer! – Em seguida, de forma abrupta, o corpo da garota caiu sobre o colchão. Os pais correram a auxiliá-la. Suas faces voltaram ao normal e o odor desaparecera. Fiquei em choque com o ineditismo da situação. Agradeceram-me muito. Disse que não havia motivo para tanto e que, se algo tornasse a acontecer, que me telefonassem.
Dentro do meu veículo, senti uma incômoda presença. Virei para o banco de trás e não vi nada, embora, nitidamente, o estofamento denunciasse que alguma coisa estava sentada ali. Estendi meu braços e senti, em pleno ar, uma aspereza. Puxei a mão e procurei dirigir enquanto, ao olhar pelo retrovisor, percebi dois negrumes a encarar-me como se fosse órbitas oculares pairando no vazio. Parei o carro e olhei de novo: nada, a não ser aquele estofamento amarfanhado.
A viagem de volta foi terrível. Os vidros embaçaram, sentia uma baforada gélida na nuca e via, vez ou outra pelo retrovisor, aqueles dois negrumes fitando-me. Subi rapidamente para meu apartamento e, ainda nas escadas, ouvi passos pesados, como se algo metálico batesse ao solo.
Tranquei a porta assim que entrei e me encostei de costas contra a parede. Batidas potentes vibraram a porta. O trinco não suportaria. Desesperado, lancei contra a mesma o volume do primeiro livro que peguei na estante ao lado:
- Vá embora! – Gritei.
Uma estrondosa gargalhada fora a resposta. Logo depois, a porta estilhaçou-se em dezenas de pedaços. Não tendo saída, corri para o banheiro em pânico. Ouvi que algo entrara pesadamente iniciando uma destruição completa de toda a minha mobília. Tranquei-me no banheiro. Procurei ajuda pelo celular. Sem sinal. A criatura bateu na porta. Empurrei-a com o corpo na inútil tentativa de resistir. Nisso, lembrei de algo que aprendera com minha mãe na infância:
- Sempre, quando algo de muito ruim acontecer, encare de frente!
Não havendo alternativa, olhei pelo buraco da fechadura após tirar a chave. Não havia nada. Então, gritei:
- Mostre-se para mim. Quero ver a sua cara.
Por um instante, foi como ouvir um baque. Um negrume se mostrou do outro lado e, a seguir, uma face monstruosa materializou-se. Ganhando força, ordenei:
- Encare-me! Eu o desafio a me encarar! – Vi, para meu espanto, que a coisa se afastara ouvindo seus passos cambaleando pelo corredor. Criando coragem, abri a porta. O quadro era devastador. Não havia nada inteiro no apartamento. Diante de mim, uma forma horrenda, monstruosa, peluda e pisando sobre cascos, tendo um olhar sinistro, defrontava-me. Provoquei:
- Encare-me!
Sem saber o motivo, ele desviava seu olhar. Pisei pé-ante-pé. Gritando sempre:
- Encare-me!
Dentro em pouco, vendo-se acuado, a criatura partiu pela janela destruindo-a e tomando um rumo desconhecido...
A partir daquele dia, mudei radicalmente minha conduta e, pelo menos por uma vez pude atestar que vencera o demônio. Não sei, no entanto, até hoje o que intimidou, se a minha disposição em não ceder, ou se o medo dele em encarar a minha cética determinação. Talvez tenha descoberto o que sempre soube: que minhas dúvidas são mais intensas que a fé de muitos, o que, por seu lado, não deixa de ser uma fé...