O Vale dos Suícidas

Estava tudo escuro. Um breu indescritível. Despertei aos poucos - ouvia vozes ao longe.Sentia frio, muito frio.Parecia estar numa geladeira. Risadinhas soavam, e grande movimentação. Eu nada enxergava. Ouvia. Estava deitado, a cama parecia molhada e fétida - um odor desagradável de podre. Gritei:

- Alguém está aí?-A voz inaudível-soava o timbre com muito esforço.

A minha mente estava confusa, se quer sabia o que havia ocorrido. Despertei ali, do nada, ouvia vozes - diziam frases desconexas, ora se desenhava sonora balbúrdia, ora ,diálogos confusos, vozes diversas, algumas risadas guturais - e, até gemidos. Parecia um hospício,talvez.

Será que estava num hospital público? - o mal cheiro me remetia ás péssimas condições em que eles funcionam. Milhares de pessoas morrem por ano, por conta da infecção hospitalar - a mais alta do mundo.

O mal cheiro de carne podre, de carniça invadiam os meus pulmões, de forma incessante, cruel - sufocando-me, dando-me náuseas- vontade de vômito.

- Ei, você...

Parecia dirigir á palavra minha pessoa.Levantei-me.Nada enxergava devido ao breu que nos envolviam.

- Fala comigo? Onde estou? O que está se passando?

Então, recebi uma chicotada no lombo que me fez franzir o cenho, trincar os dentes e dobrar os joelhos ao chão, de dor. A forte sensação horrorosa, foi como um gatilho que disparou a volta de minha visão.

Então, pude ver a cena mais aterradora que poderia ser digna do mais amedrontador filme de terror.

Homens de aspecto animalesco, vestido com armaduras de confecção bizarras á semelhança dos filmes de época, de lanças e espadas. Alguns tinham escudos circulares. Máscaras no formato de deuses pagãos, ou à semelhança de demônios bizarros lhes cobriam os rostos - pude ver o olhar de um deles-, era um olhar aterrador, penetrante, frio, as pupilas acizentadas, o globo era ocular vermelho. Montavam em cavalos de aparência assustadora. Eram grandes feito os búfalos, porém, mais fortes, peludos, de cascos agigantados - todos eram negros e eram contidos por pesadas correntes de arreios. Faziam barulho ensurdecedor com os cascos ao solo. Um desfile amedrontador.

Era uma noite sombria, estávamos em número de mais de duzentos, contidos pelos cavaleiros armados com lanças e chicotes. Achava eu, estar num hospital, para minha surpresa estávamos num cemitério, saindo dele. Não estava tendo um pesadelo, tudo era muito palpável, toquei numa lápide, senti-a na sua solidez de cimento frio. Toquei no tronco de uma árvore - sim, estava tudo ali, não era um pesadelo.Os bustos de santos,anjos.As madonas...

Os que tentavam fugir eram contidos pelos cavaleiros montados, ou pelos chicotes - uma chicotada era semelhante ao recebimento de uma descarga elétrica pelo corpo - o prisioneiro dobrava os joelhos, trincava os dentes e caia inconsciente - uma segunda descarga o fazia acordar, então era levantado, e conduzido a permanecer na filheira, em dupla. Os gemidos eram ensurdecedores-alguns berravam com desespero incontido.Uma cena digna de um filme de terror.

Passaram horas a fio, fomos saindo da cidade na direção do subúrbio, a vegetação era de aspecto aterrador, tudo era feio e desprovido de vida. Encontramos pelo caminho pássaros que tinham canto agourento à semelhança dos corvos. Pequenos animais de aparência grotesca observavam a caravana de desvalidos sendo conduzidos pelos cavalariços. Apresentava-se um caminho de pedras escuras - o céu sempre nebuloso. Banhado por negras nuvens gigantescas-um breu surpreendente.Uma ventania fazia-me trincar de frio.

Observei os prisioneiros. Havia uma marca em cada um, como uma ferida a denunciar algo,um ocorrido,talvez sangravam.

O meu corpo estava dolorido, o frio era intenso, quanto mais andávamos, mais escuridão. Sempre para baixo, o terreno acidentado, abrindo-se em despenhadeiros infinitos, sempre para baixo.

Uma névoa intransponível se apresentava, junto com uma chuva torrencial. Mas não parávamos, nem era permitido que falássemos. Indagava-me:

Quem eu era, não me recordava, o que estava acontecendo, para onde nos conduzia? Quem eram aqueles cavalariços vestidos de forma tão estranha à semelhança dos filmes épicos, ou uma película de terror? E não amanhecia? A noite era eterna? Sofria com o frio intenso, o terreno alagadiço, Estávamos descalços, maltrapilhos, cansados, com sede e famintos, exaustos.Não adiantava reclamar-pior seria cair ao solo.Éramos massacrados por chicotadas ágeis,velozes que nos davam replicantes e dolorosas descargas elétricas que nos rasgavam a pele.

Desejei morrer, nunca desejei a morte com tamanha intensidade como naquele momento. Os gemidos e os soluços serviam do mais tenebroso fundo musical-uma sinfonia descompassada e de um timbre único:a dor.

Fomos abandonados numa região inóspita, aterradora, intransponível, até. quando ?Eles se foram montados em seus cavalos monstruosos. Tentei voltar pelo terreno acidentado, repleto de precipícios, vales e montanhas de pedras, de vegetação sombria - ali, reinava uma noite eterna. Fiquei perdido. Não havia como fugir, tive muito medo. As pernas tremiam,de medo.

Passei a gritar, gritava até à exaustão, pedia por socorro, não havia uma resposta - parecia que estávamos, realmente num pesadelo- ou no inferno. Consegui, não sei como retornar, onde tinham nos abandonado.Guiei-me pelo som emitido pelos desesperados,que gemiam,de forma alucinada.Era um espetáculo aterrador.Infernal.Eu estava no inferno-talvez...

Naquele momento, uma chuva torrencial castigava o ambiente, o frio era terrível, tremíamos sem ter abrigo,nenhuma proteção. Até que um a um foram descobrindo cavernas no paredão de pedra, e, ali em grupos foram se abrigando, um a um - não me restava outra alternativa. Sentia,pelo menos as paredes escuras proteger-me da ventania e dos açoites da chuva torrencial-que era fria e causticante. Sentia-me so e abandonado.

O local era fétido, úmido - la fora a chuva era torrencial, até que a inundação tomou tudo, até às cavernas. Era uma situação insuportável.

mais uma vez desejei morrer - Deus meu, que diabos de coisa fiz para receber tão cruel castigo? Amaldiçoei-me.Dizia palavrões,aos berros.

Indagava-me, quem sou eu, onde estava, por quê estava ali, o que se passava?

Observei o grupo que estava comigo sofrendo, junto na caverna. Todos tinham uma marca de dor no corpo. Procurei a minha - não tinha, seria eu, a exceção? Todos pareciam gravemente feridos.Alguns até sangravam.

Até que, em dado momento, senti o pescoço apertar, como num passe de mágica, como-se um ser invisível sufocasse-me com força de dínamo.

Perdia o fôlego, os meus olhos saltavam das órbitas, engasgava, a lingua saltava para fora - uma agonia incessante que se estendia por longos minutos, até que desfaleci. Estava sem poder respirar.

A noite era eterna. As horas eram longas, mas não se passavam, ali, naquela situação, mais uma vez praguejei contra Deus - todos ali, praguejavam, diziam impropérios contra a Divindade, se sentiam abandonados, largados á própria sorte. Ouvia-se urros de desespero, gritos guturais, de sofrimentos que pareciam não ter mais fim - cessavam, quando não se tinha mais energia para tal,deduzi.

- Eu quero saber o que se passa, o que parece é que morri, e vim parar no inferno.Não pode ser um pesadelo, tão longo, tão vivo.

Depois de algum tempo ali, presenciei uma cena de beleza indescritível. Um grupo diferente se apresentou, andavam juntos, enfilheirados, em pequeno número e eram protegidos por guardas. Todos se vestiam de batas de brancura admirável. Traziam um flâmula onde tinha um símbolo de uma pomba branca, onde estava escrito : "Trabalhadores da Luz-Estrela da Seara."

Ali, tive a certeza absoluta de que tinha morrido - havia apenas uma ponta de nada , de dúvida. Caso tenha morrido, por quê me sentia vivo, estava consciente? Tinha o meu corpo intacto. Sempre pensei que a morte fosse o fim,inclusive dos sofrimentos, de tudo. Estaria enganado, de alguma forma se sobrevive à morte?

O grupo, posicionava-se, e chamava alguns pelos nomes, os que não atendiam o chamado, os guardas entravam nos buracos incrustados na parede de pedra, e os traziam na maca, desacordados. depois partiam, não nos era dado o direito de nos aproximar deles, não nos davam atenção, da mesma forma rápida que ali apareciam, iam-se, de forma apressada, rompendo a escuridão - não pisavam no solo, onde estávamos-,usavam botinas protetoras. O ambiente para eles, parecia mais sufocante, asfixiante do que para nós, os condenados do Vale das Sombras.

-Tenho algo para lhe informar.

Disse um dos que dividia a caverna comigo.

- Você está morto, sim, todos aqui estão mortos, não fazemos mais parte do mundo dos vivos.Não estão mais no Globo dos homens-la da Terra.O planeta.

- Como pode saber disso?

Às vezes, temos crises de consciência, e as cenas, as últimas cenas vivenciadas na hora da morte retornam, é um tormento. E, tem mais: pode-se ver a nossa última morada, e o nosso corpo sendo devorado pelos vermes numa cova.Fazem um banquete de vísceras podres.

E, como num gatilho, de momento, aconteceu:

Viu o seu último momento de vida:

Sem saber o por quê, ali, estava ele preparando a corda na árvore frondosa, que irônicamente, havia plantado, com a ajuda do pai, para registrar a sua infância - ela estaria frondosa, quando ele estivesse idoso. Saltou para à morte, e sentiu laço no pescoço apertar, sufocando, asfixiando. A lingua embolando, travando. A asfixia desenvolvendo-se, o corpo perdendo a força de resistência, os pés balançando, no desespero, procurando o apoio ja inexistente - o pior daquele momento -, o arrependimento do ato - que ja não tinha mais volta, mais retorno.

- Recordo-me, agora - o pior do ato, é o arrepedimento, quando não tem mais volta, o ato covarde ja em andamento. Lembro que buscava o apoio pelas pernas, buscava o chão, enquanto sentia, em total desespero a corda asfixiar-me, de forma impiedosa.

Então, chorou naquele momento, copiosamente, pronunciando o nome de Deus, e chamando pelo seu pai querido que o ajudou a plantá-la.

Um dos seus companheiros, também, confessou:

- Muito triste, quando havia me jogado do alto do prédio, estava em total desequilíbrio, so depois, quando não tinha mais volta, estava arrependido, não havia mais retorno, sentia a morte se aproximar, quando o meu corpo despencava na direção da calçada.

Outro, disse:

- Dei um tiro no peito, quando senti a dor dilacerante do projétil rasgando o meu peito e varando o meu coração - vi a ação do ato reprovável que havia feito contra mim mesmo, contra Deus, contra a humanidade, terrível, terrível. Não sabe como sofro por isso.

-Somos condenados, cometemos um ato vergonhoso, imperdoável contra nós, mesmos. Merecemos o sofrimento, de se quer poder ver o por-do-sol, ou a beleza de uma flor diante dos nossos olhos.Vivemos na lama.Na mais cruel escuridão.

A região era tomada, ora pelo calor intenso, insuportável - á semelhança do inferno citado na literatura religiosa, ou pelo frio do ártico. A escuridão era intensa, se quer se podia ver um palmo além do nariz. Andava-se tateando pelas paredes, ou de cócoras pelo solo - o solo úmido, emporcalhado por uma substância negra, viscosa e mal cheirosa. As nossas roupas viviam grudadas em nossos corpos, pastosas, úmidas, como se vivêssemos cobertos por uma substância viscosa e mal cheirorosa.O ar era pesado,asfixiante.

Esse era o nosso sofrimento - mas, havia muito mais -, atos insanos eram vivenciados dia a dia. Agressões físicas e verbais, humilhantes. Grupos reunidos para a prática do mal praticavam atos indignos, até voltados para a agressão sexual, de toda ordem, sem pudores. Ali era uma terra sem lei, a lei do mais forte imperava - grupos de seres cruéis, violentos, repróbos molestavam a todos sem dar trégua. Triste das mulheres que ali chegavam - viravam escravas sexuais, eram espancadas e tomadas por colheiras e correntes, feito bestas humanas, não era lhes dado um so momento de descanso - grupos a seviciavam a todo momento. Vi homens sofrendo as mesmas dores.Eram infelizes,imorais,sem ética-sem Deus no coração.Uma terra sem Leis,sem ordem-so existia a Lei do Mais Forte.

Sim, eu estava no Inferno. Acompanhei passo a passo a desestruturação molecular do meu corpo de matéria. Sentia a picada dos vermes, como se eles estivessem passeando pelo meu corpo do lado de ca. Inexplicável, mas era assim. O mal odor da decomposição me acompanhava, como se eu mesmo apodrecesse diante de todos. Parecia- me ser de obrigação assistir os vermes devorando a minha carcaça ja desprovida de vida própria - ja que quem o animava era a minha alma. A mais horrorosa das visões, o momento mais marcante daquela estadia de dor e sofrimento.

O meu pai faleceu, de forma ingênua, na minha ignorância, achava que o veria - " as ovelhas não se misturam com os porcos" - disse-me um dos nossos companheiros de estadia por aqui.

Eu estou aqui.

A árvore frondosa que plantei junto com o meu pai, ainda continua de pé, de caule forte e de folhagem viçosa. O galho de onde me joguei para a morte, o meu pai, de forma digna, o decepou- por insistência de minha mãe, manteve a árvore de pé- era a única lembrança viva que tinha de mim. A casa onde morei virou ruínas, muitos parentes ja encerraram as suas vidas, na velhice. os meus filhos envelhecem - abandonei-os, de forma trágica, quando ainda eram bebês - que dor a minha esta - quão covarde, eu fui. Crescem os meus netinhos, sem terem conhecido o avô. O tempo passa la, aqui é eterno, parece ser eterno os nossos sofrimentos.

Perdi uma existência, por um problema que parecia intransponível - bobagem, aqui aprendi que as dificuldades existem para que possamos aprender a ser fortes - é a dificuldade que desenvolve a inteligência, e à capacidade de superação - aprendi assim, tarde demais... tarde demais, tarde demais... tarde demais...tarde demais....tarde demais...Repito sem me cansar:TARDE DEMAIS.

Choro, vivo agônico, em total desesperação - não tenho mais energias. Indaguei a respeito do grupo que vestiam batas brancas, e que nos visitam de tempo em tempo, e levavam alguns poucos consigo-, os que pareciam ter uma segunda morte. Caiam ao solo desfalecidos, não respondiam mais a estímulos algum. Um dos nossos que estava ali há bastante tempo me respondeu:

- Dizem que são os socorristas. Atendem e levam os que têm condições de uma nova estadia em outro local, onde ha mais conforto e o amparo. Não sei se é verdade. Nunca tive a oportunidade...

Afastei-me um pouco, e refletia a respeito do ato praticado, tirando a minha vida. Tarde demais, muito tarde... tarde demais...tarde...para o arrepender-se...

Tarde demais, descobri que o suicídio é trocar um problema por outro bem maior. Descobri tarde demais que não morre o homem, morre o corpo, a alma é eterna, e pode sofrer puniçõe severas, por corromper às Leis Divinas. Oh, Deus, até quando durará a minha estadia nesse inferno gelado, escuro - onde so há lamentações, desesperações, e o ranger de dentes...até quando?

Para minha surpresa, a cada dia, enquanto muitas cavernas ficavam vagas, pela a ação do socorro dos chamados Socorristas do Além Túmulo, outros desavisados, desprovidos da moral, e fé em Deus, devido aos muitos problemas que enfrentavam no orbe terrestre, aqui aportavam, por suicídio - chegam em caravanas, em número considerável para uma estadia de sofrimento e dor no rigoroso Vale dos Suicidas. Tarde demais, tarde mais para mim e para os que buscam numa fácil solução o fim dos seus problemas, e se encontram com uma realidade dolorosa, mais ainda das que vivíam, muito mais...

tarde, tarde demais...tarde demais para mim e para os demais.Tarde demais,tarde demais,tarde .Tarde..........demais..................................................................................................Tarde demais........................................................................................................................

Leônidas Grego

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 28/09/2012
Reeditado em 19/02/2017
Código do texto: T3906608
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