Os Mortos Também Amam: Alma Gêmea

Feira de Santana, noite sombria, sem lua e sem estrelas, 12:00h da noite - Praça da Matriz.

Disse ele para a jovem:

-À meia-noite entro no cemitério, ali faço de meu escritório, uso uma tumba de escrivania. Os mortos me sussurram as suas histórias, então, inspirado, escrevo - uso um pergaminho de pele humana, como papel e sangue humano como tinta, e um dedo esquelético, de pena.

Não lhe deu a devida atenção, se quer virou o rosto em sua direção-fingiu não ter ouvido aquele discurso amedrontador, com nuances do macabro, do sinistro. Ela perdeu a exibição de um belo sorriso.

A jovem mulher estava sentada no banco de cimento que ficava na frente do cemitério Piedade, no largo da Matriz, onde ficava uma majestosa igreja católica, de arquitetura gótica - daquelas de torre única, sua arquitetura era sombria - estava sempre de pintura gasta, desbotada, tingida de cinza. O cemitério fora presenteado com um lindo jardim na sua porta, onde bancos circulares de cimento cru permitiam que as pessoas que porventura, ali passassem se sentassem, ou gente de sua vizinhança. As plantas ficavam em torno dos bancos - era muito comum o roubo de suas flores, principalmente das rosas, onde casais apaixonados trocavam ali, juras de amor eterno.

Ele estava vindo do conjunto Feira IX, onde visitara uma das irmãs, quando a viu sentada num dos bancos em frente ao cemitério. Bom conquistador que era, não perdeu a oportunidade, sentou-se ao seu lado, fingindo esperar por alguém. Ela não lhe deu atenção, olhou-o apenas uma vez, com cara de pouca amiga, em tom de reprovação.

-Oi, espera alguém, também? ( Ele disse)

- Oi. ( Ela falou, com voz baixa, tom de insatisfeita com a abordagem)

Ele se demorou alguns poucos segundos, sabia que precisava ser incisivo, tinha habilidade no trato com as mulheres, em ação de conquistador barato.

- Eu estava passando, e achei muito estranho ver uma mulher jovem, bonita como você sentada á porta do cemitério.

nada lhe respondeu. Tinha as pernas cruzadas em x, com o olhar no vazio. Insistiu, dizendo:

- Está aborrecida? Qual o seu nome?

- Aline.

- Tudo bem Aline? O meu nome é Armando da Silva Queiroz.

- Tudo.

- Você é sempre assim, meio calada, pouco sociável?

- Olha, não te conheço, você chega procurando frete, vai logo falando comigo assim, como se eu fosse qualquer uma - não gosto disso, não, moço. Eu tenho dezessete anos, olha a sua idade. Odeio essas coisas...

Ele lhe pediu desculpas, soltou um sorriso. Cortejou-a, atingindo o ponto fraco das mulheres, dizendo:

- Você é muito bonita, mesmo com essa faixa na cabeça, então, não resisti. Disse para mim , mesmo, ah, vou querer conhecê-la. Vou sentar ali, e falar com ela. Você caiu e se machucou?

- Foi, quebrei a cabeça e me machuquei nos braços e na perna esquerda.

- Mesmo assim, está bonita.

- Escute aqui, qual a sua idade?

Indagou a menina ja meio chateada com tantas perguntas na sua abordagem.

- Eu tenho quarenta e dois.

- É muito velho para mim, além do mais sou apaixonada por um menino de minha idade, não estou afim de papo - ainda mais, que mais uma vez ele passou por mim aqui, e nem me deu bola mais uma vez, como sempre.

Ela aguardava o seu amor secreto sair da escola. O garoto fazia aquele roteiro quase todas as noites.

- Desculpe-me, mas não vejo nada demais em um homem mais velho e uma...

- Não estou afim de ficar escutando essa sua cantada chata, se é que me entende, pôxa vida, xô, xô, cai fora, cara.

Disse, com irritação, os olhos faíscaram de fúria, gesticulava com um dos braços, sacudindo a mão. O tronco meio virado para ele.

- Não há nenhuma possibilidade desse amor entre você esse garoto, se é que quer saber...

- Nossa, tu é chato demais, agora fica se metendo onde não deve, quem é você para falar isso, pois, fique sabendo que ja tivemos uns pegas, na casa dele - uns apertos daqueles.

- Sei como são essas coisas, caso te quisesse, não teria te desprezado, esses garotos so tiram proveito - não querem nada sério. Foi so alguns apertos, nada além. Ele ja deve estar namorando alguém de sua classe social - naquele colégio ali, estuda a burguesia.

Falou apontando para a escola particular, uma das mais conceituadas da cidade.

Ficaram em silêncio.

A praça da Matriz estava deserta. Passava um carro com longo intervalo entre um e outro. Os mendigos ja repousavam debaixo das folhas de papelões. A visão da praça à noite era assustador. Árvores frondosas em meio á escuridão reinante. O vento no seu bailado único sacudia as suas copas. Os cães vadios ladravam, quando um mendigo entrava em confronto com o outro na disputa por um espaço para o repouso na calçada, ao lado da igreja. Um grupo de viciados em crack consumiam a última pedrinha. Podia se ver ao longe a chama do ísqueiro. Uma viatura da polícia passou sem lhes dar atenção.

-Escuta, eu...

Ele resolveu quebrar o intervalo:

- Moço, pelo amor de Deus, siga o seu caminho me deixa em paz, que caralho, poooorrraaaaaa.

- Desculpa, mas, eu...

Ele insistia, a fúria dela foi tamanha, que se ergueu do banco com os punhos cerrados, não conseguia ficar de pé com firmeza, parecia ter uma das coxas machucadas, ou um dos pés.

- Calma, não precisa ficar tão brava, so estou querendo ser simpático.

- Eu estou é irritada, não percebeu?

- Pensei que podia lhe fazer companhia, até te ajudar a ter uma noite mais agradável, te tirar da solidão.

- Não está ajudando se quer saber...Estou me sentindo bem com a minha solidão, se quer saber.

- Você mora perto, não?

Ela lhe apontou o sobrado, defronte ao cemitério, onde alugavam quartos. Um sobrado antigo, desbotado pelo tempo - estava com os dias contados-, a prefeitura tinha um projeto para ampliar a pista, e o sobrado mais algumas casas estavam no caminho. Decidido, queria, agora, com ela fazer uma vingança. sabia que aquela noite não seria uma das melhores - estava fadado ao fracasso àquela conquista.

- Você mora ali, onde se alugam quartos para estudantes?

Depois, de alguns segundos de silêncio, ela lhe respondeu mais uma vez.

- É, você não é louco, é?

- Claro, que não, acha loucura um homem abordar uma menina bonita?

- Quero a minha independência, não me dou muito bem com os meus pais.

Ele deu um sorriso, e queria aprontar uma com ela, daquelas: Vingança.

- Pois, eu moro ali.

Disse ele.

Falou, apontando para o cemitério, para a entrada do grande portão de ferro enferrujado.

A visão do cemitério era assustador. Os túmulos ficavam expostos, pois, o muro da frente era baixo. Árvores frondosas, de caule fino balançavam ao som do vento. O breu dominava, expondo á luz da lua às lápides, mausoléus, cruzes - ficam em destaques as estátuas de anjos, mulheres de longos vestidos, olhando para o céu, os braços voltados para o alto. Anjinhos com harpas nas mãos, de olho no céu, um dos braços na mesma direção.

- Louco, louco...escuta aqui, você é louco varrido, não é?

Falou, com fúria, desdenhando dele.

- BUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU.

Falou para ela abrindo bem a boca, com as mãos postas junto á sua face. Depois de lhe pular na frente, feito um maluco.

E, repetiu:

- Eu sou um fantasma, eu moro no cemitério, eu ja morri.

- Por favor, va, va, siga o seu caminho me deixa em paz.

Sacando um bloquinho de nota, uma caneta, ele a olhou, pela última vez nos olhos, e repetindo o que havia dito no começo da sua abordagem :

-À meia-noite entro no cemitério, ali faço de meu escritório, uso uma tumba de escrivania. Os mortos me sussurram as suas histórias, então, inspirado, escrevo - uso um pergaminho de pele humana, como papel e sangue humano como tinta, e um dedo esquelético, de pena.

Ela não lhe deu a devida atenção, mais uma vez. Desprezo total.

Ficou um tanto surpresa, ao vê-lo entrar no cemitério, na certa queria impressioná-la. Antes de seguir mais adiante, lhe falou de longe:

- Querendo me visitar, poderá procurar o meu túmulo.

-Louco...idiota, acha que pode me impressionar, conquistador barato. O que um louco desse poderá querer entrando no cemitério a uma hora dessa?

Já passava da meia-noite. Aline se levantou mais uma vez do banco e foi para casa. Entrou no bequinho, que dava para a escadaria do seu pequeno cômodo. Olhou mais uma vez para a entrada do cemitério, duvidava que ele ficaria ali, contudo, podia ver o seu vulto meio iluminado se distanciado por entre os túmulos, cemitério a dentro. Uma visão que fê-la ter um arrepio que se estendeu pela extensão de sua coluna até á nuca. Tremeu nas bases. Observou com os seus botões:

-Mas, meu Deus, será possível que....que...

Ficou na sua cabecinha o que ele lhe havia dito:” Querendo me visitar, poderá procurar o meu túmulo.”

Passados alguns dias, enfim, teve a coragem de entrar no cemitério. Passava um féretro, alguém estaria sendo enterrado. Decidida, acompanharia, pois, teria menos medo, com tantas pessoas dentro daquele local assustador – a visão dos túmulos a amedrontavam tanto, que mantinha uma cortina permanente na janela que dava visão para o cemitério.

Era um enterro de gente humilde. As pessoas seguiam caladas, em pequeno número, parece incrível, mas, assim como deu um chuvisco fino no enterro de meu pai,há tanto tempo atrás – cerca de trinta anos, depois-, no enterro de minha mãe, numa tarde de domingo, também, caíra um chuvisco fino – alguns, dizem que retratar uma cena assim, é clichê desgastado – nada -, sempre chove, um chuvisco fino quando alguém vai ser enterrado, e, ali naquele momento, estava acontecendo.

Aline, nervosa, procurava pela cova do fantasma que a abordara na porta do cemitério. Olhava para as pessoas que acompanhavam o enterro, com ares de fiscal, não queria ficar ali sozinha, então, precisava ser rápida, e precisaria ter sorte – tinha que encontrar o túmulo dele, antes que o caixão descesse á cova, e todos se dispersassem, voltassem para o seu cotidiano.

Estava nervosa, um tanto amedrontada – temia pela sua reação emocional ao poder ver uma cova, onde estivesse a sua foto, pois, gente enterrada ali, com o seu nome tinha algumas. Seria algum daqueles que vira? Então, aconteceu:

- Oi, veio me visitar?

Disse ele às suas costas. Ela se virou de forma rápida, tinha o coração em batimentos fortes. Ali estava ele, em carne e osso, em cores. Tão palpável, tão vivo à sua frente. Estava vestido com a mesma roupa – exibia o belo sorriso de sempre. Ela tinha, ainda o mister de dúvida a respeito de sua condição de existência. “ Não pode ser um fantasma, posso ver o quanto está vivo.” – Pensou assim, mas continuava nervosa, sentindo o coração batendo forte.

- BUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU.

Disse, ele, com um sorriso na face.

Ela se assutou um pouco, falando:

- Palhaço... Não gosto de homem palhaço, ainda mais na sua idade.

- Eu moro ali, disse apontado uma cova. La tinha o seu nome: Armando da Silva Queiroz.

Aline não sabia distinguir, quais emoções estava naquele momento sentindo: medo, euforia, ou arrependimento por ter entrando no cemitério, por culpa da sua curiosidade.

- Não duvide, ali está enterrada a minha carcaça.

- Olha, moço, é melhor parar, estou nervosa e ficando com medo.

Falava, enquanto estalava os dedos de uma das mãos, apertando com força, um sinal claro de desequilíbrio. As pernas balançavam, de nervosa que estava.

- Eu estou morto, sério, acredite.

As pessoas já estavam indo embora, o caixão descera para a cova. O coveiro fez rápido o seu serviço. Aline olhou, virando-se para trás para as pessoas que se distanciavam , divididas em grupos pequenos em direção á saída do cemitério.

- Eu já vou...

Falou, com insegurança.

- Não vai, não, vai ficar aqui comigo. Veja como é o toque de minha mãos.

Ele a pegou em um dos seus braços, ela sentiu uma mão gelada, desprovida de calor a segurá-la. O seu coração disparou, quase soltou um grito de horror.

- Largue-me por favor.

Disse, agitando o seu braço, desprendendo a sua mão gélida do seu corpo. Ele riu, uma risada de deboche.

- Quero que fique comigo, aqui.

- Deus é mais, você é um louco, so está querendo me amedrontar, eu vou embora.

Mais uma vez ele a segurou por um dos seus braços, ela mais uma vez sentiu a mão gélida a tocá-la, fazendo com que tivesse a mesma sensação que havia experimentado quando o viu entrando por entre as lápides e túmulos cemitério a dentro. Um arrepio se manifestou logo abaixo de sua coluna, indo até á sua nuca, arrepiando-a.

- Venha cá, estou cansado de suas birras, preciso te mostrar algo, e acabar logo com essa palhaçada, estou cansado de você. Gosta de tirar onde de mulher difícil, mas eu sabia que viria, eu sabia que viria me visitar, então, agora vai ser como eu quero.

Falou assim, enquanto a arrastava por um dos braços, segurando firme. Seguiam para os fundos do cemitério, ali, onde a vegetação era farta, com poucos túmulos, ficariam escondidos, pois, haviam túmulos altos, volumosos.

Aline era arrastada, gritava, resistia - ele tentava calar a sua boca pondo uma das mãos, ela a mordia, com força -, porém, ele era forte o bastante para dominá-la. Deu uma gravata e conseguiu, por fim, arrastá-la com certa facilidade por entre as covas. Aline chorava, grande era o seu desespero, sabia o que se sucederia, estava numa enrascada-” seria vítima de um maníaco?” – indagava-se.

- Chega de cultivar essa paixão sem sentido pelo menino, ouviu? Não tem nenhuma chance com ele. Eu não admito ser desprezado, ser recusado, ouviu?

- Por favor, me deixe em paz, quero ir embora.

-Não vai embora, nada, vai ficar aqui comigo.

Impulsionada por uma força descomunal, ergueu-se e bradou com ele:

- Deixe-me, não me toque, eu quero ir embora, você é um louco, ouviu, um louco, não me toque...não me toque.

Ele a segurou com força, lhe deu um abraço, os rostos ficaram juntos, a boca dele perto da boca dela- pressentiu que a vontade dele era lhe beijar na boca, porém, não foi concluído o seu intento. Abraçou-a, forte, por trás, colando o seu corpo no dela – sentiu o corpo gelado dele – sentiu asco – ele parecia não estar vivo, mesmo, era tão gelado. Virou-a para frente, segurou forte nas suas bochechas, virando o seu rosto para um túmulo, e lhe mostrou, dizendo:

- Veja Aline, tenha coragem. Este túmulo não é como o meu.

Ela viu o túmulo da família. Ali tinha a sua fotografia. O rosto jovem, bonito, exibindo um sorriso singelo. Na lápide estava escrito:

Maria Aline dos Santos

12-10-1995 - 22-08-2012

“ Eternas saudades . aqui jaz o nosso anjo querido , repouse em paz”

Aline soltou um grito de pavor, saiu correndo, em desespero pelas ruas do cemitério, corria e gritava. Estava apavorada, desequilibrada.

- Eu so queria ajudà-la, e ela não deixava, é sempre assim, quase todas têm a mesma reação.

Uma semana depois.

O cemitério Piedade realiza muitos enterros, por ser dentro da cidade, e por ter feito uma ampliação recente. Apesar de estar hoje, numa localização inadequada, localiza-se no bairro da Matriz, e próximo do bairro Mochila. À sua frente um majestoso jardim, onde as famílias sentam, as crianças brincam e casais namoram.

Era tarde da noite, passava da meia-noite. Ali, num dos bancos de cimento cru estava sentada um linda mulher. Vestia-se de branco, e exalava em seu corpo um perfume com cheiro de flores.

Ele chegou de forma sorrateira, sentou-se próximo a ela, olhou, admirando a sua beleza. E perguntou:

- Olá, boa-noite, desculpe-me se incomodo, como vai? Posso saber o seu nome?

- Olá, Rosângela.

Disse ela, com um olhar amigável e exibiu um belo sorriso na sua bonita face de mulher.

- Prazer, me chamo Armando.

Não se importou quando, ele sem se levantar do banco se dirigiu para mais perto dela.Então, falou:

- Sou um escritor de contos de terror, sempre peço inspiração aos mortos, teria algo para me dizer, que pudesse me inspirar?

- Quem eu? Estou viva, como poderei dizer algo( com um belo sorriso).

Ele riu e disse:

-À meia-noite entro no cemitério, ali faço de meu escritório, uso uma tumba de escrivania. Os mortos me sussurram as suas histórias, então, inspirado, escrevo - uso um pergaminho de pele humana, como papel e sangue humano como tinta, e um dedo esquelético, de pena.

Ela riu, não se importou com a sua atitude de conquistador barato. A noite seria longa, sentiu que naquela noite, enfim, teria uma conquista pela frente, sem mais delongas, e, quem sabe, assim, estivesse colaborando para que mais uma pudesse, sem muitos dissabores, ter o despertar para uma realidade que não se percebe com facilidade, como se imagina no mundo dos vivos, de carne e ossos.

FIM

Nota do autor:

O cemitério existe - O Piedade- fica na praça da Matriz. Visitando a cidade de Feira de Santana, se por acaso, à noite avistar um casal sentado no banco circular de cimento, envolto por flores, talvez, não seja um simples casal de namorados, mas, sim, Armando, o conquistador barato, investindo em mais uma conquista das suas, do além, do mundo dos mortos.

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Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 28/09/2012
Reeditado em 28/09/2012
Código do texto: T3905793
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