Em outro lugar

Hoje faz dois meses que ele se foi, e eu ainda estou desesperada por isso. Na verdade, não sei como isso foi acontecer, isso é muito injusto, e, apesar de sempre terem me dito que a vida era, de fato, injusta, eu não imaginei que esta arbitrariedade fosse machucar tanto... Realmente, não sei o que fazer, fico me perguntando por que isso foi acontecer, justo naquele momento.

– Olha pra ela, tá na cara que ela não conseguiu superar o acontecido ainda.

– Acontecido? Cê tá de brincadeira, o marido dela morre daquele jeito, cinco meses depois de ter casado com ela e você diz que foi um acontecido! Foi uma tragédia!

– Tá, entenda como quiser, mas ela, que falava com todo mundo, sempre contava piadas, era divertida, agora não esta tão diferente de um dos figurantes do Walking Dead.

_Chega de besteira vamos tentar falar com ela.

– O que, se tá louca, eu não sei o que falar.

–Vamos só puxar assunto, ela não pode ficar assim a vida toda, e nós aqui do escritório temos que ajudar a ressocializar essa mulher. Vamos!

Aproximaram-se dela e perguntaram:

– Então Joana, como está aquele processo do Givanildo?

Alguns segundos se passaram depois da indagação.

– Ah, está indo bem sim Silvia. Eu acredito que depois do provimento da sentença em nosso favor, não considerando os fatos típicos apontados na denúncia, eles talvez nem ingressem com recurso.

– Que bom então, sinal de que as coisas estão melhorando aqui no escritório não é mesmo? – disse Maura.

– Se precisar de alguma ajuda, estiver sobrecarregada com algum processo, enfim, fale com a gente.

– Tudo bem. Eu não preciso de ajuda – pensou Joana – eu preciso é de uma nova vida, uma nova chance, que eu sei, infelizmente não virá.

A noite foi chegando, o escritório foi ficando cada vez mais vazio. Afundar-se no trabalho era uma forma de não pensar na tragédia de sua vida. Seu grande amor tinha sido roubado, tirado de suas mãos violentamente, perdido sua existência da maneira mais sórdida possível, não, ela não conseguia parar de pensar nisso... Não tinha mais sonhos, pois nem dormia, mas dormir para quê? A única coisa que acontecia quando o sono vinha era o som dos tiros ecoando bem forte em sua cabeça. Como ela desejaria matar aquele bandido. Daria tudo para ter uma boa oportunidade de estar frente a frente com o amaldiçoador de sua existência.

Joana fechou o processo que estava analisando. Estava com fome, já eram oito horas da noite e o escritório estava vazio, todos tinham ido embora. Ela decidiu ir embora também, mesmo que deixar seu trabalho signifique trazer as lembranças de seu amante, que acreditou seria seu por muitos anos. E essas memórias ao mesmo tempo traziam saudade e raiva, o primeiro sentimento em virtude das grandes felicidades que passaram juntos, e o segundo por que recordava mais uma vez que seu grande amor fora ceifado de suas mãos como o milho que é cortado em uma colheita qualquer.

Fechou a porta ao sair. Pegou o elevador. Apertou o “T”. O elevador se fechou. Desceu. Ao sair do elevador dirigiu-se logo à saída do prédio. Mas antes, deparou-se com um homem que a observava. Fumava um cigarro que estava pela metade, vestia sapatos pretos um pouco sujos, calça social preta, camisa social lisa na cor preta e um belo terno; sua expressão era de tranquilidade, queria que ela percebesse que ele a estava observando, isso a deixou um pouco nervosa. Seus olhos negros eram penetrantes, ela nunca tinha visto o sujeito por ali.

Claro, apesar do grande trauma que passou, não ficou com síndrome do pânico como muitas pessoas que são assaltadas, e ela, além de ter passado por isso, teve seu marido baleado estupidamente.

O homem estava entre ela e a saída do prédio. Os olhares levaram algum tempo. Ela avançou, e ao se aproximar ele estendeu sua mão e lhe deu um cartão, dizendo:

– Eu posso te ajudar.

Ela pegou o cartão, não disse nada e encaminhou-se para a porta, saiu e o movimento dos carros a fez despertar de um estado de letargia em que pareceu ter entrado após esta demorada troca de olhares.

Foi até o estacionamento entrou no seu carro deu a partida e foi pra casa. Demoraria meia hora no trânsito, e, como de costume, ligou o rádio na CBN para ficar informada sobre as notícias do dia e do tráfego àquela hora.

Chegou ao seu prédio em Botafogo, buzinou para o porteiro, que, prontamente acionara o dispositivo do portão automático. Entrou e estacionou com facilidade o carro em sua vaga. Saiu do carro, dirigiu-se ao elevador, apertou o nove e subiu.Em alguns segundos, sua mente parecia estar vazia. Era quase um alívio, mas não, ao abrir a porta do elevador, a mesma sensação que tinha durante aqueles desgraçados dois meses acometeu-lhe de novo. Aquele aperto em seu coração, como se uma mão invisível estivesse apertando seu coração. Era insuportável, ela mal conseguia caminhar, lágrimas vieram aos seus olhos, ela não conseguiu chegar a sua porta, se escorou na parede, sentou, um minuto depois do que pareceu um longo tempo ela se levantou, foi até a sua porta, abriu-a, entrou, andou até a geladeira, abriu a porta, pegou a garrafa de água e bebeu nela mesma. Colocou a garrafa em cima da mesa da cozinha e caminhou até seu quarto, tirou o blazer e quando colocou a mão no bolso da calça, retirou o cartão, leu-o e não entendeu muito bem do que se tratava a princípio. Estava escrito em caixa alta “REALIZE O SEU MAIOR DESEJO”.

– Ah, boa, agora isso, realizar o meu maior desejo... Que besteira!

– O que você considera uma besteira, eu vejo como uma oportunidade única!

– Quem é você? Como entrou aqui? Eu vou chamar a polícia! – gritou.

Ela saiu do quarto passando do lado oposto da cama onde se encontrava aquele homem. Chegou à sala e, para sua surpresa, lá estava ele.

– Acalme-se, nada disso vai adiantar! – disse ele estranhamente calmo. – Pode acreditar, será bem pior pra você, além de ser colocada à margem pelas pessoas que te conhecem por causa do que você está passando, ainda sairá como... louca – riu.

– O que você quer? É dinheiro pode pegar a carteira.

– Ah é, deixe-me ver então... Não, com esses duzentos reais eu não consigo o que eu realmente quero.

– Você estava me seguindo, por que você não pegou o que quis na saída do prédio onde trabalho?

– Considerei que não era o lugar apropriado para o nosso diálogo. Estávamos em pé, na saída do seu trabalho, aqui é melhor, por favor, sente-se. Posso ver que já está mais calma, quer uma água? Esquece, você já bebeu quando chegou não!?

– Meu Deus!

O homem fez um esgar que demorou alguns segundos, se recuperou e disse – Não sábia que você usava esse vocabulário, pensei que você já tinha superado isso.

– Quem é você? O que você quer?

–Eu, bom, quem deveria perguntar primeiro sou eu, o que você deseja? Afinal, você tem uma grande oportunidade de mudar, digamos, a sua rotina, e, poucas pessoas, pouquíssimas mesmo, tiveram esta chance como você está tendo. A literatura tem relatos disto, lembre-se de Fausto, bom sujeito, que poderia ter aproveitado melhor a chance. Claro que ele não tinha esse nome e os fatos foram um tanto quanto modificados, mas... – ela o interrompeu.

– Você está me dizendo que é o Diabo?

– Este é um dos meus vários nomes, mas não é o meu preferido, o que o escritor escolheu vem melhor a calhar.

– Claro, Mefistóteles. Olha, quando esta brincadeira vai acabar, pegue o que você quer e me deixe em paz por favor.

– Bem, como eu gostaria que as coisas se desenvolvessem assim, mas não é. Tudo tem um... digamos, procedimento. Deve ser assim que você aprendeu na sua faculdade de Direito não é?

– Olha, você é só um louco, que entrou na minha casa sem permissão e que se eu denunciar às autoridades, ou alguém do prédio o ouvir aqui, terá sérios problemas.

– Ai, ai, ai, o verso “não tentarás o Senhor teu Deus” deveria se encaixar aqui também. Tudo bem, que comece o show!

O homem tinha se aproximado de um modo quase imperceptível e tocou o seu ombro.

Em uma fração de segundos uma visão, uma coisa que ela nunca poderia ter imaginado. Estava de novo vendo seu belo marido. Ele estava vestido com a mesma roupa que saíra de casa no dia de sua morte. Estava em sua mesa de trabalho falando com alguém no telefone. Não havia ninguém àquela hora na empresa, ou não deveria ter, o relógio de parede marcava oito e trinta.

Isso era incrível, esta visão, era como se ela pudesse caminhar por aquela situação só que em um plano distinto... Ah, e era fantástico poder ver de novo, talvez pela última vez, o seu marido, aqueles olhos castanhos claros, seu sorriso sempre cativante, muito branco e perfeito, seus cabelos um pouco despenteados, devido ao avançar de tantas horas de trabalho, mas ela adorava isso, daria tudo para que ele a notasse. Ela o chamou pelo nome uma vez, e outra vez, e mais outra, porém o quadro que se apresentava não se alterou, e ela entendeu que só poderia observar os acontecimentos.

A conversa no telefone cessou, ele anotou algumas coisas em sua folha de papel junto à mesa, sentiu um movimento estranho no ambiente, era outra pessoa, ela conseguiu sentir essa aproximação, era tudo muito real. Uma mulher, muito bem vestida, ela logo soube de quem se tratava. Carmem, amiga de João, seu falecido marido, com quem trabalhava há mais ou menos uns dois anos pelo que julgava saber. Entretanto, não entendeu muito bem o desenrolar dos fatos, achou a atitude dos dois personagens um pouco estranha.

Carmem se dirigiu até João e perguntou quando ele viajaria – Joana percebeu que ela podia escutar o diálogo dos dois perfeitamente – ele respondeu que neste fim de semana não, que iria passar em casa, não tinha nenhuma viagem a trabalho agendada. Ela respondeu: “Nossa, isso é uma pena, estava louca pra passar outro fim de semana ao seu lado.”

Aquela resposta intrigou Joana, não podia ser, a cena continuou e, por um instante, os dois pararam se olhando de um modo que ela conhecia bem. Ele se levantou, deu a volta em sua mesa, aproximou-se de Carmem e a beijou. Um beijo demorado e voluptuoso ia se desenrolando bem à sua frente.

Ela quase não acreditava, seu amado e fiel marido fazendo aquilo, mas por que, no que ela teria faltado com ele, sempre fora amorosa, e, fazia questão de demonstrar isso. Não era verdade, não podia ser, ela começou a sentir raiva daquela cena, daquele teatro, daquela mentira!

Num instante, ela estava de volta ao seu quarto, com aquele sujeito esquisito a observá-la. Sua revolta e seu desespero eram patentes, não conseguiria esconder seus sentimentos ali, diante daquele homem.

– Isso é uma grande mentira, você é um mentiroso. Por que você esta fazendo isso comigo? Ele nunca faria isso!

– Bom, isto é um estigma que a sociedade coloca em mim, mas, neste caso, é pura verdade.

– Impossível!

– Vá até o seu quarto.

Ela se levantou, foi até o quarto, com aquele sujeito a acompanhar-lhe a certa distância.

– Abra a terceira gaveta da escrivaninha.

Ela foi até ela e abriu.

– Pegue esta agenda e abra no dia sete de agosto.

Ela abriu, e, para seu espanto, tinha um pedaço de papel. Ela leu o que estava escrito e ficou em total silêncio. Dizia “encontre-me em minha casa na quarta, às nove.”

– Não, não é possível, a empresa dele passou por auditoria externa este mês e durante a semana do dia sete e a outra ele chegou tarde por que estava trabalhando.

– Isso é o que ele lhe disse.

– Não! – Ela pegou a lista de telefone, procurou a letra “M”, e começou a ligar para um número. – Mário, olá sou eu a Joana... Tudo bem eu só queria uma informação, você que trabalhou com o João durante estes últimos anos na empresa, sabe me dizer se ele conseguiu concluir o trabalho dele com a auditoria da empresa no mês de agosto, eu estava ajudando com algumas coisas e gostaria de saber como ficou... A auditoria foi em maio... Não, problema nenhum, era só que... olha, eu preciso desligar agora, tchau.

Perplexidade, essa era a melhor palavra para explicar o que sentia Joana. O assombro diante de toda situação viria depois. Silêncio.

– Por que você me mostrou isso?

– Bom... para que você saiba toda a verdade.

– Era melhor eu não ter sabido.

– E passar a vida inteira no engano, besteira! Todos vivem querendo saber a verdade. Eu sou o ser mais injustiçado do mundo por isso! Aí, quando eu, o rotulado pai da mentira, conto a verdade, a pessoa que a recebe prefere a mentira! Isto é um absurdo!

– O que eu vou fazer agora... Estou mais arruinada do que antes...

– Bem... Agora, é uma boa oportunidade de você seguir em frente, e, realizar o seu maior desejo neste momento. Lembre-se do cartão.

– Sim, mas... o que eu poderia desejar agora? Neste momento em que sei que tudo que eu idealizava, tudo que eu acreditava... Que era tudo um circo! Uma palhaçada! E eu, a personagem principal! Eu desejaria sumir...

– Bom, não fique assim, olhe que bela garrafa de vinho eu tenho aqui – como por mágica, aquele ser, que estava com as mãos viradas para trás, mostra-as segurando em uma delas a garrafa, e na outra duas taças. – É vinho do porto, safra belíssima! Vamos beber um pouco – encheu a taça dela, primeiramente, e entregou-lhe, depois encheu a própria.

– A que beberemos, eu e um diabo qualquer?

– Vamos beber à verdade! O que acha, é um bom motivo, em todo caso, ninguém acreditaria que eu estivesse bebendo a isso – um sorriso malicioso surgiu em seus lábios.

Eles beberam... ela tomou a garrafa daquele belo vinho, encheu novamente sua taça e sorveu mais uma vez o saboroso líquido.

– Bom, agora você deve descansar um pouco, venha, vamos ao seu quarto, uma cama grande e confortável a aguarda, e depois desta noite de revelações você deve estar muito cansada.

Ela se deitou com a roupa que estava. Revirou-se de um lado para outro e parou como se observasse a escrivaninha com a gaveta aberta, algumas lágrimas escorreram de seu rosto, fechou os olhos e adormeceu.

Aquele ser ficou olhando aquela bela mulher ali deitada e disse consigo mesmo:

– O ser humano não consegue perdoar, por que Você ainda acredita neles!? – E desapareceu.

Dois dias depois, a polícia, vizinhos e amigos não entendiam por que a vida de um casal tão perfeito havia se esvaído em apenas dois meses. O marido fora assassinado estupidamente em um assalto no caminho de volta do trabalho para casa. E, aquela mulher, não aguentando a solidão, se envenenou ao ingerir vinho misturado com uma dose letal de cianureto. Restou às autoridades, como evidências para concluir as investigações, apenas um corpo, uma garrafa de bom vinho e duas taças que ainda continham o resíduo da bebida letal.

Lucas Sabino
Enviado por Lucas Sabino em 25/09/2012
Código do texto: T3901370
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