3:00 A hora Morta

-O senhor não se lembra, não é senhor Fábio?

O psiquiatra colocou o bloco de notas no joelho. Fábio vinha fazendo aquele tratamento há dias, depois do ocorrido, do acidente na madrugada, das constantes noites de insônia, sempre levantava as três da manhã, a hora morta, dizia a sua avó, ao seu lado um cadáver feminino de trinta anos. Do outro lado, um homem que não via o rosto, ele não conseguia suportar olhar para aquela figura demoníaca. Em uma noite Fábio foi pego pela polícia. Ficou preso, graças ao seu tio, que era deputado, conseguiu sair do presídio e começar esse tratamento na clínica. Não gostava do lugar, tudo que ele queria era se livrar daquela dor de cabeça e enterrar suas lembranças, a pior delas: de sua filha morta ao lado da mulher, depois que um carro cruzou o sinal vermelho.

-Não, como disse ao delegado, não me lembro de nada. Já contei inúmeras vezes. No acidente bati forte a cabeça, sofri uma concussão, depois não lembro mais de nada.

O psiquiatra era jovem, cabelos pretos partidos de lado, não usava óculos, porém mexia demais as pálpebras mais que uma pessoa que não necessitasse de correção visual, um tique nervoso, após cada palavra olhava para cima, talvez usasse lente de contato, era magro, cruzava as perna com elegância e destreza de um atleta, com um bloco de notas anotava tudo que Fábio dizia. Dr. Kleiton de Assis Roch, formado na USP, fez psiquiatria na França, terapeuta de orientação lacaniana, tinha uma voz firme, um ar simpático, de quem gostava e acreditava no que fazia rara exceção. Muito culto tinha um vasto conhecimento de filosofia, considerava-se hegeliano, apesar de tudo e de todos, era como Lacan, graduando-se na UFRJ em filosofia, batalha campal,feita para o ego. Depois, mesmo exausto, ainda naquele ano tornou-se chefe de um centro avançado em pesquisas, hoje uma das maiores autoridades em esquizofrenia do país.

Segundo as pessoas falavam pelo corredor da clínica, aquele Dr Kleiton era o maior psiquiatra do país.

Dr. Kleiton concertou a cadeira, não gostava especificamente daquela cadeira, talvez por isso ficasse tão inquieto nela, uma cadeira comum, não existia uma decoração especial, tudo simples demais, não havia um clima de hospital, cheiro de hospital, talvez por isso Fábio até gostasse de lá, entre a rua, onde viveu dois anos.

-Você estudou Fábio, já foi um indivíduo com uma vida plena, pela sua ficha, parece que era um aluno notável, porém, abandonou o curso de medicina, não culpo você, tantas vezes pensei em abandonar o meu, acho que foi no segundo ano. Personalidade forte, combativo marxista, você ainda é um marxista? Ou tudo não passou de uma brincadeira de adolescente, como eu acho que foi para mim?

Foi retirado da federal pela pobreza de sua família, seu pai um biólogo, ficou arruinado depois que sua empresa faliu, uma empresa de reciclagem, em sociedade com seu tio, esse que é deputado. Envergonhado com cobradores, um ano depois teve um severo AVC hemorrágico, isso tirou as suas chances de ser médico. Com a mãe de cama, uma doença degenerativa que a matou aos poucos, o pai doente, só restava o tio evangélico, que naquela época estava no primeiro mandato de deputado. O homem que havia desmoralizado o seu pai na sociedade, quem você no mínimo odiava. Depois da falência do seu pai, nenhum amigo mais apareceu, nem mesmo esse tio, ninguém, você estava só.

O tio evangélico ajudava apenas com pequenas doações e remédios. Que tragédia, mas já falamos sobre isso, você superou tudo, estudou o que queria? Se tivesse chance gostaria de voltar a estudar?Quem sabe ser médico?

Fábio olhou para o doutor, era a primeira vez que encarava o médico e disse:

-Larguei a medicina, foi a melhor coisa que fiz. Doutor, o senhor sabe, mesmo sendo psiquiatra ainda assim é médico; sabe muito bem como anda a medicina atualmente, eu nunca tive paciência para lidar com as pessoas, assim como o senhor. Virou tudo Mercado, se você é ligado a uma especialidade prática como a ortopedia, ou a cirurgia plástica, se não vai viver trabalhando com especulações, mentiras e remédios inúteis. Veja você quanto antibiótico às crianças tomam atoa, as mães tem amor ao antibiótico, pessoas vivem para cultuar o deus remédio, a relação médico paciente virou uma relação de dependência do médico. O paciente prescreve o remédio e você concorda, somente o homeopata ainda prescreve remédio, alopata concorda com o paciente, para cada consulta uma luta ou um debate, pronto socorro cheios. Poucos ganham dinheiro decentemente na medicina.

Largar a medicina, acredito que ela me largou, não suportaria meu estilo de vida, tinha família doutor, vida, trabalhava, ganhava pouco, porém, tinha uma vida normal. Dormia em casa, saia com minha filha no final de semana.

-É uma visão pessimista! Mesmo assim respeito como sua opinião, você não acha que toda profissão tem seus defeitos?

-A gente não vem nessa vida para ter uma profissão, uma missão, ou construir coisas. Vem para viver, quando se é médico, além do tormento de ter que escutar tudo que o paciente despeja na mesa, a medicina boicota a sua vida, ela te suga, horas resolvendo problemas alheios, sem tempo para resolver os nossos próprios problemas.

Fábio levantou, olhou o diploma na parede-Formado na USP, claro que não precisamos dizer porque este diploma está na parede, a USP é a melhor, esse outro diploma é de honra ao mérito? – ele riu – isso tudo é um troféu, mas você mesmo ainda não enfrentou a sua sexualidade, teve dificuldade de aceitação no segundo grau. – Fábio, que estava com a barba crescida passou a mão na barba. – seu namorado é enfermeiro?

O psiquiatra sorniu.

-O senhor acha que sou gay? Isso faria diferença. A propósito, meu namorado é Advogado.

-Não que eu seja homofóbico, tive dois amigos gays, um deles é um tremendo sociólogo, o outro é policial militar, acho que o mundo é livre, quero dizer, o mundo dos outros, eu estou preso nessa vida por um erro, um único erro, que me tirou tudo que valia a pena.– ele foi até a janela, que apesar da grade, dava para ver o campo gramado a frente.

-Você não é livre?

-Eu? –Fábio olhava fixamente para o campo. – Como alguém que acorda todas as noites as três horas da manhã, em um ponto da cidade ao lado de uma mulher morta. Que liberdade é essa?

- O senhor pode ter sonambulismo, uma forma de autonomia de partes remotas do cérebro..

-Que anti simbolismo, sonambulismo nada, tem um demônio atrás de mim, um ser maligno, sempre fui ateu, agora com esse demônio de capa azul, que não consigo ver o maldito rosto e me persegue, sinto dor na sua presença, bem aqui. - apontou para a cabeça. Deus deve existir, se ele existir, não liga para ninguém, principalmente pra mim? – Fábio riu, era um riso amarelo, de quem estava doente da alma.

- Deus, não sei se acredito, gosto de pensar no transcendente. Você sabe, a razão é ontogeneticamente e filogeneticamente muito nova, parece ser apenas um verniz, uma película tênue, várias coisas são feitas por impulso, sem que nosso cérebro tome consciência. Exemplo, podemos tomar uma bebida, simplesmente por sugestão interna, nada relacionado com a razão, depois, pegar um carro, um volante assassino e matar uma criança, tudo irracional, primitivo.

Fábio escutou aquilo da boca do psiquiatra, mas ele sabia, quem estava falando era ele, o demônio que o acompanhava, o homem da capa azul e que não tinha rosto, que vinha direto do inferno toda vez que sentia aquela dor.

-Dr. Kleiton. -disse a enfermeira. - A polícia está ai, inspetor Dantas, esta querendo falar com nosso paciente.

-Negativo, nada de polícia, agora que ele está conseguindo falar, depois de dias de catatonia, por dias não falou uma só palavra comigo.

-Ele disse que tem um mandato...-antes que a enfermeira terminasse de falar, entrou na sala um homem baixo e careca de paletó e gravata, dois acompanhantes, um homem e uma mulher, ambos armados e com distintivo no pescoço.

-Dr Kleiton , médico psiquiatra, imenso prazer. - apontou a mulher - Nair, psiquiatra que tratam doido? Ou quem trata de doido é psicólogo? Pra falar a verdade gosto de psicologo, minha mãe bem que tentou me consertar, sempre fui um pouco doido, fui duas vezes a consulta com uma psicologa, não parava de olhar o decote dela, evangélica, recatada, desistiu de mim, você acredita nisso Nair?

-Sou Psiquiatra, não gosto da palavra doido, quem é o senhor? O senhor poderia sair, estou no meio de um tratamento.

-Dantas, trabalho para polícia, esses são os agentes José e Nair, nenhum dos dois tem jeito, um é doido e a outra é pirada, não adianta nem se animar, nem eletrochoque consegue dá jeito nesses dois, estamos aqui para prender o suspeito, como é mesmo o nome dele?

-Ele não está pronto, o trauma causou amnésia, ele não lembra de nada, o senhor só está me atrapalhando, meu paciente esteve por muito dias catatônico, sem responder uma só palavra.

Fábio olhou para a investigadora, ela estava na casa dos cinquenta, usava calça jeans e uma blusa fora de moda, o homem era mais novo, tinha um boné de propaganda de supermercado.

Enquanto isso, cansado, bufando, totalmente fora de peso, o charmoso inspetor Dantas, pediu um café e sentou no sofá.

-Precisamos entrar num acordo aqui. – disse Dantas cruzando as pernas e passando a mão na careca. – o garoto tinha sangue da vitima na mão, a arma na outra mão, não tinha mais ninguém na universidade para testemunhar nem a favor nem contra ele, para mim o caso está encerrado, é culpado e pronto, tem mais de mil crimes acontecendo ai na rua, não posso perder meu tempo com crime solucionado.

O psiquiatra levantou, ele parecia mais alto que todos ali, foi até a poltrona onde estava o inspetor e falou baixinho, muito de perto, Fábio olhou com curiosidade, enquanto o psiquiatra pegava um papel e entregava para o inspetor.

-O senhor sabe ler inspetor Dantas? -Dessa vez Fábio quase riu. - Essa é uma ordem judicial, o senhor Fábio está aos meus cuidados.

Nair, a investigadora puxou o braço do psiquiatra.

-Deixa ele Nair, a hora dele vai chegar.

-É só o senhor mandar , chefe e a nós damos um corretivo nele.

-Não me chama de chefe.

-O homem tá pedindo um corretivo. – disse José, ainda segurando o braço do psiquiatra.

-Não, nós estamos de saída, bater em padre e médico dá azar. – Pegou o papel e jogou na cara do psiquiatra. – Isso aqui doutor é política, o tio desse pilantra é deputado, por isso ele não está preso.

Fábio sonhava com Ana Lucia no momento do acidente, quando acordou suando frio e trêmulo, eram três da manhã, ainda estava na clínica. Nesta clínica, estava internado alguns dias, todas as pessoas dormindo, ele sabia, o homem com a roupa azul apareceria para conversar, quando olhou para o lado lá estava ele. Tudo fica frio quando ele aparece.

-Você sabe que seu sono acaba aqui, temos trabalho a fazer.

-Quem é você?

-Mesma pergunta, eu sou a sua parte que morreu naquele acidente com a sua filha e sua mulher, a dor consome a gente, ela tem que sair, ela vai sair não se preocupe ,estou aqui para fazer essa dor chegar a outras pessoas, aquela mulher, você ainda não achou, ainda não foi ela que sangrou pelas suas mãos, ela avançou o sinal matou tudo que você amava. Quando ela morrer eu sossegarei.

Fábio não conseguia ver o semblante do homem, apenas a sua longa capa azul e uma cabeleira negra, a face não era reconhecida, no seu lugar um imenso branco leitoso, o tremor, a sua cabeça começou a doer, seu nariz sangrava.

Fábio apareceu em uma rua escura, do seu lado uma jovem, seu rosto estava desfigurado pela violência, seu vestido rasgado. As mãos de Fábio estavam com sangue, a mesma faca ou uma faca igual, estava na sua mão direita. Matou novamente, por que? Precisava sair dali, voltar para a clínica, mas estava completamente nu, como atravessaria a cidade, retirou os trapos que ainda vestiam a jovem e envolveu na cintura, foi correndo até uma esquina onde havia um carro parado, atirou um tijolo no vidro, não ouviu nenhum alarme disparar, tinha aprendido a fazer ligação direta uma vez que perdeu as chaves do seu carro, um amigo ensinou, voltou para a clínica, entrou pelos fundos, tomou banho para limpar o sangue e deitou, seus olhos estavam pesados, agora ele sabia que era ele que cometia os crimes, ou esqueceria pela manhã.

-O que houve ontem à noite? – Perguntou o psiquiatra.

Não se lembrava? Ou já sabia?

-Você dormiu bem?

-Dormi.

-As três horas aconteceram alguma coisa?

Fábio estava preocupado, mas o psiquiatra mostrava uma tranquilidade na voz, parecia estar brincando com Fábio.

-Dormi até pela manhã.

-O inspetor Dantas ligou, disse que quer os nossos vídeos de vigilância, mas desde dezembro que as nossas câmeras de segurança não funcionam, aqui eu não faço questão disso, os administradores me obrigam a tirar a privacidade.

O ar do médico era de cinismo, será que ele era o homem da capa azul e cabelo longo, ele estava ali para se divertir as custas de Fábio.

-Sua família morreu num acidente na madrugada?

-AH!

Fábio não estava prestando atenção, a sua dor de cabeça estava começando a voltar.

-Sua família, o senhor perdeu a sua família quando dirigia bêbado depois de uma festa?

-Não era eu quem dirigia era minha mulher, disse para ela que eram três horas, não gosto desse horário, a cidade parece morta – Fábio tinha muita dor de cabeça, podia ouvir a respiração de sua filha de sete anos, a mulher conversando, sobre coisas da festa, a escuridão das três horas, dor, dor...

Quando o Inspetor Dantas entrou e atirou em Fábio.

-Ele está aqui? - Perguntou quando agonizava Fábio.

-Não querido, só eu, você e o psiquiatra que você cortou a garganta.

Dantas ligou para a emergência, não tinha mais ninguém,tinha?