Sono

1

Ao entreroçar-se nos lençóis limpos e de toque acetinado, veio-lhe a certeza, já programada de antevéspera de que era feriado, e que o raiar do dia não indicava que era necessário se levantar, mesmo que o dia já clareasse. Com o feriado iniciado na quinta, a maior parte dos outros moradores já haviam viaja, e a tranqüilidade reinava no prédio. Nenhum barulho. Respirou aliviada ainda dentro de um sono leve e já caminhava para um sono mais pesado novamente quando seu caminho rumo a um mundo de langor e de dissolução foi interrompido bruscamente pela voz fina e suave, que carregava uma carga emocional tão positiva veio se juntar à ela.

- Mãe, a mulher está falando que era para você acordar. – A mãe sem se acordar de pronto simplesmente puxou a origem daquele som para junto dela e a apertou e cherou ainda dentro do sono que já se esvaia como uma nuvem de fumaça ao vento. – Mãe, a mulher falou. Acorda mãe. – Ainda sem se dar conta direito do que ocorria a mãe acordou aos poucos e foi se situando do que ocorria enquanto olhava para a filha deitada agora ao seu lado.

- Que foi querida?

- A mulher falou que você precisava acordar.

- Que mulher meu amorzinho? – A mãe, ainda semi adormecida, ainda não despertara de todo e não sabia do que a criança dizia, e a pesar da pergunta, nem se interessava muito em saber.

- A mulher que está lá na cozinha.

- Quê? – À perspectiva de que tivesse uma pessoa estranha dentro de casa, Sabrina levantou-se rapidamente, ainda meio desorientada e foi para a cozinha de camisola e descalça. Ao chegar lá, observando o cômodo e não vendo ninguém, procurou a visitante pelo resto do apartamento. Ninguém também. Verificou as portas e janelas. Tudo estava trancado, como ela deixara no dia anterior antes de dormir. Voltou-se então para a filha que a acompanhara do quarto à cozinha, e agora a seguira até a sala, junto à porta de entrada do apartamento.

- Marina, quem que veio aqui?

- A moça... que vem com o neném.

- Que moça é essa minha filha, não tem ninguém aqui. Você abriu a porta para alguém? Já te falei que não pode fazer isso minha filha.

- Não abri não. Ela já estava aqui, lá na cozinha.

- Ai meu amor! – A mãe já percebera que não havia como a filha ter aberto a porta, pois não alcançava a fechadura, principalmente a da tetrachave, que ficava bem acima da sua altura. Mesmo que ela houvesse subido em uma cadeira, ficaria difícil para ela alcançar e rodar a chave. Passou então à conclusão mais lógica.

- Meu amor, você sonhou com isso não foi? Você viu essa moça enquanto estava dormindo? Lembra, aquele dia que você viu que o cachorrinho da vovó...

- O Flup!

- ... isso, o Flup estava roubando o seu biscoito e escondendo dentro da televisão? Então, isso é o que a gente chama de sonho. A gente dorme e vê essas coisas, mas elas na verdade, só existem dentro da cabeça da gente. Não existem fora não. Então minha querida; a moça que você viu, foi quando você estava dormindo?

A filha ficou meio em dúvida sobre se estivera dormindo ou não. – Não sei. – E depois continuou.

- Eu levantei para ir no piniquinho, ai depois a moça me chamou para vir aqui na cozinha, e ela estava com o neném. Ai ela falou que era para eu ir te chamar porque você precisava acordar.

- Vamos lá ver então. – A mãe pensou em um jeito fácil de avaliar a questão. Foi ver se sua filha havia feito xixi na cama. Não havia. Depois foi ao banheiro. O peniquinho estava cheio. Ela realmente havia levantado e da cama. Provavelmente ela teria voltado e dormido novamente e depois confundido as duas coisas.

2

- Mãe, a mulher falou que era para você não dormir.

- Ai minha filha, fica aqui comigo fica, deixa a mamãe dormir. Mamãe está cansada demais. Vem cá. Abraçou a filha forte e a impediu de continuar falando mais a apertando contra si. O sono veio novamente, e agora ainda mais forte, e ela mergulhou rapidamente em um sono sem sonhos, em uma simples cessação de ser. De dentro do sono pesado, sem saber por quanto tempo dormira, ela foi mais uma vez retirada pela filha, com a qual dormira abraçada e que estava deitada ao seu lado.

- Mãe! Mãe! Acorda mãe!

- Ai minha filha, deixa eu dormir!

- Mãe, a mulher está aqui no quarto.

- Quê?!!! – Sabrina tentou se levantar rapidamente e bateu com a cabeça na cabeceira da cama. Quase jogou a filha no chão com o susto. Olhou ao redor ainda meio zonza mais do sono que ainda não partira de todo do que da batida. Voltou ao estado de vigília mais rápido agora e olhou ao redor no quarto. A filha olhava para ela com um ar preocupado. Não entendia direito ainda que a mãe poderia ter se machucado com a batida, mas uma sensação difusa de que havia algo errado lhe começara a lhe afligir.

- Marina, para de falar essas coisas. Minha filha, eu estou cansada. A mamãe precisa dormir. Eu trabalho muito minha filha. Eu preciso descansar porque senão a mamãe vai ficar doente.

Marina, sentindo que sua mãe estava brava com ela começou a fazer cara de choro. Fez só um beicinho de que ia chorar e depois deu duas fungadinhas. Foi o suficiente para a mãe amolecer e abraça-la.

- A mamãe não está brava com você não querida. Só precisa dormir.

- Mas a mulher me falou que era para não deixar você dormir.

- Que mulher querida. Não tem mulher nenhuma não. Você só cochilou junto com a mamãe e sonhou de novo. Não era uma mulher com um neném. Então. A gente não viu outro dia a mulher daquele homem aqui do lado. Que brigou com o homem e foi embora com o neném. Então. Foi isso querida. Você viu e ficou impressionada porque o homem estava gritando. Mas já se resolveu. A mulher foi embora, e o homem vai mudar também. Não vai vir polícia nem nada aqui mais não. Está bom meu amor. Não precisa ficar preocupada.

Marina tinha deixado escapulir uma lágrima que deixando o olho havia estacionado em sua bochecha rosada. Ainda fungando baixinho olhou para a mãe com um ar de dúvida.

- Mas a mulher que veio aqui era aquela mulher mesmo. Ela estava parada aqui olhando a gente. Aqui, do lado da cama. Ai ela foi para o corredor me chamando para ir junto com ela.

- Não minha filha, é só sonho. Viu, não tem nada não. É só que você ficou impressionada com a cena. Vamos dormir com a mamãe mais um pouquinho. Só mais um pouquinho, ai a mamãe vai fazer suco de laranja para você. Pode ser querida.

Marina ficou mais feliz com a possibilidade de ganhar suco de laranja. Ela adorava.

- Mãe?

- Oi amor.

- Eu posso ganhar suco de laranja agora.

- Ai fofinha, você não vai me deixar dormir mesmo né.

Marina sorriu ao perceber que a mãe ia levantar. – Eu quero suco de laranja e biscoito com pedacinho de chocolate.

- A não fofinha. A gente já falou sobre o biscoite não é?

- Só um pedacinho – Marina mostrou com os dedos o tamanho do pedacinho que ela queria. Se Sabrina deixasse ela comeria o pacote inteiro e depois passaria mal. Mas já sabia como manipular a mãe.

- Está bom. Vai ganhar o biscoito também, mas só depois do suco. E vão ser só dois.

- Três.

- Está bem. Três.

Sabrina agora resolvida a não voltar a dormir se levantou, calçou os chinelos e foi para a cozinha.

3

- Está gostoso fofinha?

- Hunrum – Marina respondia sem parar de comer um cookie de chocolate maior que sua mão.

- Que cheiro estranho. Parece que está vazando gás. Perai amorzinho. Fica ai tá. – Marina saiu e foi conferir o fogão. As trempes estavam todas fechadas. Mas o cheiro persistia. Foi para a área de serviço e viu que o cheiro estava mais forte lá. Mas ainda era um cheiro difuso. Foi em direção à porta da sala, e percebeu que o cheiro estava ainda mais forte lá. Abriu a porta e ai percebeu um forte cheiro de gás no corredor do prédio. Alguém havia deixado o gás ligado. Andou rapidamente pelo corredor para ver se identificava a origem do cheiro. Chegando ao fim do corredor, do lado oposto ao do seu, percebeu que o cheiro estava mais forte no apartamento 1112. Pensou em tocar a campainha, mas ficou receosa que o acionamento elétrico da campainha produzisse uma fagulha elétrica que gerasse a explosão. Voltou e chamou pelos outros vizinhos. Tocou em cinco apartamentos, principalmente nos mais próximos ao 1112. Nada. Ninguém parecia estar presente no andar no momento. Abriu a janela do corredor e olhou para fora. Na rua não passava viva alma. Todos viajando. Voltou rápido para casa e ligou para o corpo de bombeiros, que atendeu rápido, e após a explicação de Sabrina, pediram para que ela saísse do prédio e esperasse.

Sabrina voltou rápido para a cozinha onde Marina já devorara mais de metade do pacote de biscoitos e a levou para o quarto e colocou a primeira roupa que viu e desceram pelas escadas até a portaria. Lá, falou para o porteiro do vazamento de gás. Explicou que já havia chamado os bombeiros. O porteiro começou a interfonar para os outros apartamentos para pedir que descessem para a portaria até tudo estar resolvido.

A grande maioria dos condôminos estavam viajando. Dos noventa e seis apartamentos, somente oito estavam com alguém. No andar de Sabrina somente ela. O porteiro que começara a menos que duas horas antes, naquela manhã, começou a ficar um pouco preocupado. Ligou para a casa do porteiro que estava de turno antes dele e insistiu para que sua esposa o acordasse. Explicou a situação para que um revoltado falante do outro lado da linha entende-se a gravidade da situação e lhe desse atenção. Após conversarem, o fez menção de ligar para o corpo de bombeiros, mas este já estava chegando. O porteiro então se dirigiu para um tenente que parecia coordenar a equipe e conversou com ele em particular. Depois voltou-se para o grupo que esperava na portaria com o tenente que em um tom de voz firme, apesar de calma, se dirigiu ao grupo.

Pessoal, há risco de explosão. Então, vamos fazer o seguinte. Vou pedir para que vocês saiam do prédio, e fiquem no quarteirão de baixo esperando. É para a segurança de vocês. Provavelmente não vai acontecer nada. Mas só por precaução vou pedir para vocês se retirarem. Desçam a rua e virem a direita e esperem no final do outro quarteirão. Vocês sabem se alguém mais ficou lá em cima, em algum dos apartamentos.

- A moça com o neném estava na escada – Marina falou para a mãe em tom de voz baixo, que não foi escutado pelo tenente.

- Agora não Marina. Vamos andando lá para fora como o moço falou. – As duas seguiram junto com o grupo para a rua, que já estava isolada pelo corpo de bombeiros. Ao passarem por um dos soldados percebeu que ele estava solicitando que mandassem não uma, mas duas ambulâncias. Continuaram caminhando até o local indicado por outro dos soldados, que ficou pediu que os esperassem naquele ponto e foi para o local onde a faixa que impedia o trânsito fora colocada para controlar um trânsito que não existia. Depois de um tempo, duas ambulâncias chegaram. Dois estudantes que moravam no apartamento 606 foram para mais perto da esquina visualizar o que acontecia. O soldado que também olhava para a portaria do prédio não percebeu que estavam ali até eles avisarem ao resto do grupo de que alguém estava sendo retirado. O grupo chegou a tempo de ver o terceiro corpo que era retirado em uma pequena maca, com equipamentos de respiração. Era um bebê.

A explosão esperada não veio.

4

- Pessoal, agora parece que o gás já se dissipou e vocês podem voltar para seus apartamentos. Eu vou ficar aqui em baixo por mais um tempo, e qualquer um de vocês que sentir que ainda existe gás dentro da casa, desça e me avise que eu subo para averiguar se há algum perigo. Agora, é normal que fique um cheirinho por algum tempo. O ideal é que vocês abram bem todas as janelas do apartamento e evitem ligar chamas ou equipamentos elétricos nas próximas duas horas. Alguma dúvida?

Algumas pessoas do grupo colocaram as suas dúvidas para o soldado e voltaram para suas casas. Sabrina e Marina subiram pelo elevador, depois de ser certificados a elas que era seguro. Ao chegar em casa, abriram todas as janelas como solicitado pelo bombeiro, e esperaram o restinho do cheiro passar. Marina parecia se contorcer um pouco.

- Que foi meu amor.

- To com vontade de fazer cocô.

- Eu não te falei que não podia comer muito biscoito querida. É por isso. Se você come muito fica com dor de barriga. A mamãe fala não é para se chata não. Pode comer, mas é só comer um pouquinho de cada vez que não tem esse problema. – Levou Marina para o banheiro e a sentou no seu piniquinho especial. Ela ficou olhando para a mãe enquanto se aliviava, e depois alardeou que estava pronto. A mãe a limpou. E jogou fora o conteúdo do piniquinho.

- Mãe?

- Que foi querida?

- A mulher que veio aqui ficou dodói. – A mãe inicialmente não entendeu, mas logo ligou os fatos.

- Não sei minha filha. Pode ser que sim.

- E o neném?

- Também não sei querida.

Marina ficou pensativa por um tempo.

- Mãe?

- O que Marina?

- Sabe a mulher com o neném que veio aqui aquele dia.

- Aquele dia é hoje de manhã? Hummm.

- Ela falou...

- O que ela falou meu amor?

- Ela falou que eu podia comer mais biscoito.

Sanyo
Enviado por Sanyo em 20/09/2012
Código do texto: T3892052
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