O Beco dos Gatos (parte I)
O que são os becos? Espaços inutilizados, exprimidos entre prédios ou casas, muitas vezes sem saída. Não são ruas, mas também não são propriedade de ninguém, simplesmente hiatos dentro de um amplo espaço urbano. Lugar de esquecimento, onde crimes são cometidos, lixo é despejado, ratos e mendigos neles vivem, repudiados e completamente esquecidos. Muitas vezes os ruídos escutados em um beco são ignorados, mesmo se tratando de um pedido de ajuda. A escuridão nos incita a sensação de que, adentrar neles é atravessar uma porta para o desconhecido, logo optamos por prosseguir fora desses domínios de incerteza e abolir o que ouvimos de nossas mentes.
Mas esses lugares, algumas vezes, são mais do que parecem, pois o esquecido muitas vezes quer compartilhar a dor de seu infortúnio, ou simplesmente ser lembrado. Foi o caso do solitário Beco dos Gatos, um beco longo e sem saída, entre o decadente Edifício Norton e a velha Catedral de Santana, que na década de 1980 foi palco de inúmeros assassinatos, nunca solucionados. O mistério desse lugar me foi revelado por uma anciã, moradora do edifício Norton, viveu nele durante cinqüenta longos anos, e foi testemunha ocular dos acontecimentos que passo a narrar agora. Você leitor certamente não acreditará em uma linha sequer desse relato, eu também não teria acreditado caso não tivesse presenciado pessoalmente o horror que habita aquele rincão esquecido. Um horror que não é físico, apenas reminiscências do que não deveria ser deixado de lado.
Sou um colaborador semanal do jornal Século, assumi essa função após o desaparecimento do antigo cronista, que deixou uma lacuna a ser preenchida no Caderno Cidades do jornal. Ao invés das antigas crônicas, ricas em fofocas e escárnios do meu predecessor, resolvi abastecer o leitor de nosso jornal com algum conteúdo cultural. Motivado por essa ideia, apresentei a proposta para a criação de uma coluna intitulada “Crônicas de nossa Cidade”. Os editores aceitaram meu projeto, com alguma relutância, escrevi então uma reportagem inaugural sobre a importância da memória da cidade, ao final convidei meus leitores a contarem histórias de lugares esquecidos.
Recebi várias cartas e e-mails, porém uma carta em particular interessou-me bastante. Diferente dos outros contatos, que dissertavam, longa e enfadonhamente, sobre seus casos, a atrativa carta, com uma letra trêmula e quase sumindo no velho papel, dizia, em poucas palavras, que a remetente poderia me relatar uma história jamais contada. A senhora Marta Norton impôs uma única condição, eu deveria aceitar acompanha-la em um chá na sexta à noite. Todo esse clima criado pela velha senhora, não sabia se era proposital ou mero capricho da idade, fez-me esquecer dos outros contatos. Liguei na mesma hora e marquei uma entrevista com ela. Se esse ingênuo escritor fizesse a mínima ideia do que iria descobrir naquela profana paragem teria rasgado imediatamente a nefasta correspondência.
Cheguei pouco antes do anoitecer, sabia que aquele lugar, outrora um requintado bairro residencial, pululava com a criminalidade. Mesmo assim resolvi ir, não havia na cidade lugar mais esquecido do que o velho Bairro dos Imigrantes, e uma história sediada naquele lugar seria ideal para iniciar a participação dos leitores. Aventurei-me por aquelas ruas desertas e decadentes, cercadas por velhos casebres e pequenos prédios de apartamentos, vítimas da ação do tempo, algumas estruturas beiravam à ruína. Estacionei meu velho opala entre o prédio Norton, uma construção com forte influência do estilo Art déco, e a Catedral de Santana, uma espécie de Notre Dame barroca. Quando lancei um olhar despretensioso para o infame beco, senti um calafrio pungente, o ar que saía dele era mórbido e denso, como se carregado de mau agouro pelas pobres vítimas daquele local. Ajeitei o meu casaco e segui até a entrada do edifício com passos apressados, o sentimento de solidão me envolvia em um abraço desconfortante naquele lugar, não havia uma viva alma nas ruas, nem portas ou janelas abertas, estava morto.
Apertei o interfone, não havia porteiro no prédio, a senhora Marta atendeu:
– Suba.
Um prédio de dez andares, sem elevador, quase não acreditei naquilo, e minha anfitriã morava no nono. Confesso que os anos que passei sentado atrás de uma mesa não me tornou o mais apto dos homens para aquela empreitada, mas mesmo assim me aventurei escada acima. Cheguei, enfim, ao apartamento 909, último do corredor, parecia não haver mais moradores no prédio, mesmo assim ele estava bem conservado, destoando do resto da vizinhança. A porta estava entreaberta, a velha senhora me esperava sentada em uma poltrona com uma mesinha com chá e biscoitos a sua frente.
– Sente-se – disse ela.
Sentei-me sem cerimônias, estava exausto pela subida. Ela colocou chá em uma xícara e me serviu, eu preferiria uma água, mas aceitei prontamente o chá, que se revelou insosso, me levando a uma careta involuntária. Mantive distância dos biscoitos, graças a sua aparência pouco atrativa.
– Então, o senhor quer saber sobre a memória de nossa cidade? Pois bem, tenho algo para contar que acabou sendo esquecido. Rememorar é sempre bom não? Mas o senhor sabe que nós não vivemos somente de memórias, não é? – Invertendo a ordem natural de uma entrevista, minha entrevistada bombardeou esse entrevistador de indagações.
Fiquei pensativo um momento enquanto ela me encarava, e logo respondi:
– Não entendi.
Ela sorriu, com um semblante vitorioso.
– Existem fatos em nossa vida que preferimos ou precisamos esquecer, logo fazemos um esforço contrário ao da memória, pois lembrar muitas vezes é doloroso e acaba por desenterrar fantasmas que deveriam permanecer no esquecimento.
Lancei-lhe o mesmo sorriso, e respondi o que julguei um xeque:
– Eu sou da opinião que não devemos nos esquecer das coisas, pois aquele que opta por esquecer não é confiável. O esquecimento é uma maneira de esconder as verdades e mais dia ou menos dia esse esconderijo acaba sendo desvelado. É isso que eu pretendo fazer com minha coluna no jornal, encontrar os esconderijos espalhados pela nossa cidade, é isso que minha profissão exige.
A velha senhora levantou-se e pegou sua bengala, com uma expressão de satisfação após ouvir minhas palavras, caminhou até a janela. Pude ver, de meu desconfortável assento, que o céu estava coberto por nuvens, um relâmpago cruzou o céu iluminando tudo. Dona Marta fechou a grande janela guilhotina e virou-se para mim:
– Noite propícia para a história que vou lhe contar. Resta agora saber se vai levar adiante a verdade que revelarei – sentou-se logo em seguida.
- Por acaso o prédio não foi construído em cima de um cemitério indígena foi? – perguntei em tom jocoso, pois aquele joguinho já estava me irritando.
Ela pareceu não ouvir, ou não deu atenção ao meu sarcasmo, curvou para servir-se de chá. O silêncio que se seguiu foi um tanto constrangedor e cheguei a me envergonhar um pouco por minha atitude pouco profissional.
- Seria sobre os assassinatos no beco? – perguntei retomando a conversa, e a posição de entrevistador.
- Sim. – ela respondeu, enquanto levava a xícara à boca.
- Acredito que não seja nenhum segredo senhora Marta, o criminoso foi encontrado.
- Aquele pobre homem era inocente meu jovem. – disse ela pousando a xícara sobre suas pernas. – descobriram isso algumas semanas depois e ele foi inocentado.
- Isso não consta nos registros dos jornais. – respondi coçando a cabeça e tentando lembrar alguma coisa sobre esse fato.
- Os jornalismo é muito bom em acusar meu nobre jornalista. – começou ela, e eu já sabia que voltaria ao seu jogo discursivo sobre a memória. – mas quando a verdade inconveniente vem à tona preferem reservar o direito de silêncio, assim ninguém se lembra do circo que armaram sobre um fato ainda não bem esclarecido. O que o senhor disse mesmo sobre memória e sua profissão?
Esse foi o xeque mate colocando fim ao jogo, me limitei a continuar a entrevista sem dar atenção ao semblante de vitória estampado na face de minha interlocutora. Tomei mais um gole de chá, evitando dessa vez contorcer o rosto, e continuei:
- Por acaso irá revelar o verdadeiro criminoso senhora?
- Sim, pois eu e meu querido marido fomos testemunhas oculares de vários dos crimes no beco. – ela deu uma pausa para um suspiro de lamento - e durante todos esses anos mantivemos a cumplicidade do silêncio. Após a partida de meu amado creio que sou a única testemunha.