À Noite, Os Mortos Rondam a tua Cama.

Era uma madrugada calma, silenciosa, mormacenta. Um cão uivava e Murilo deitado na cama pensava onde o animal estaria e que não havia nada mais triste e solitário do que um cão latindo na madrugada. De repente, sua atenção foi despertada por uma luz difusa. Olhou para o corredor que a porta aberta de seu quarto lhe permitia observar e horrorizado descobriu a figura de um homem recostada à parede branca. Devia ter entre quarenta e cinqüenta anos, estatura mediana, magro, muito magro. Calvo, tinha poucos fios compridos e brancos, presos a lateral do crânio e eram tão poucos que podiam ser contados e lembravam teias de aranha. A roupa era folgada, gasta e rasgada. Sua cabeça estava virada para o alto e para o lado esquerdo como se seu pescoço tivesse uma corda a puxá-lo. Seu rosto apresentava um branco intenso mesclado a um tom cinza. Os olhos completamente abertos eram pálidos, rodeados por uma coloração roxa. Sua boca estava aberta, como se ele gritasse, mas não emitia nenhum som e ele não se mexia.

Receoso, Murilo observou as mãos que pendiam ao lado de cada perna. Notou que nelas não havia mais carne, apenas ossos. Deu um grito, a luz do quarto dos pais acendeu e a triste figura desapareceu.

Seu pai e sua mãe tentaram acalmá-lo, dizendo-lhe que fora apenas um pesadelo. Dona Leninha abraçava o filho, acariciava seus cabelos, beijava sua cabeça e lembrava que desde criança, o jovem que agora tinha vinte e um anos sofria com os pesadelos. Apesar dos pedidos dos pais, Murilo não conseguiu mais dormir. A lembrança macabra o acompanhou durante todo o dia e a proximidade da noite e a obrigação de dormir lhe afligiam. Quem era aquele zumbi? Tinha certeza que nunca o tinha visto, apesar, de ser difícil fazer o reconhecimento daquelas feições moribundas. Dona Leninha lhe deu um de seus comprimidos para dormir.

De madrugada foi despertado novamente pela luz que envolvia o corpo em decomposição. Desta vez, ele estava no meio do quarto, na metade da distância entre a parede na qual se apoiara na noite anterior e a cama de Murilo. Horrorizado, o jovem pode observar melhor a coloração branca do cadáver com tons de cinza além de preto e marrom nas feridas e buracos, de onde saíam vermes. A pele caía ou ficava pendurada como uma casca velha prestes a despencar, devido à movimentação dos bichos. A calça corroída permitia ver os ossos das pernas que tinham alguns nacos de carne em decomposição, num tom marrom, por onde mais larvas deslizavam lentamente e vermes brancos brilhavam, mesmo com pouca luz. Murilo teve a impressão que aquelas roupas esfarrapadas não haviam sido vestidas, mas, colocadas sobre o ser apenas para encobrir sua nudez pútrida. Olhou para o rosto e viu que ele preservava todo o horror e a dor da sua morte. De sua boca aberta e imóvel não saía nenhum som, apenas, o odor de sua decomposição.

Ele não se mexia. Permanecia na mesma posição da noite anterior. O pescoço repuxado, como se uma corda o estrangulasse. Os braços pendiam ao lado das coxas e o jovem reparou novamente nãos mãos que não tinham mais carne. Respirou fundo tentando se controlar, mas, foi sufocado pelo odor fétido que impregnava o quarto. Aflito, buscou forças e gritou. A luz do quarto dos pais acendeu no mesmo instante em que a visão desaparecia.

A mãe o encontrou chorando. Abraçou-o perguntando o que havia e ele lhe relatou que tivera o mesmo sonho da noite anterior, mas, desta vez o cadáver estava mais próximo. Dona Leninha o afagava, enquanto que ele chorava e dizia que não queria ficar louco. O pai condenava os filmes de terror que filho gostava de assistir e lembrava que ele precisava dormir para poder trabalhar dali a algumas horas.

Murilo passou mais um dia atordoado tentando lembrar se conhecia aquele homem, apesar, de seu rosto decrépito. A recordação lhe gerava asco toda vez que lhe vinha à mente o rosto desfigurado e o corpo apodrecido em certos pontos descarnado numa coloração branca, roxa, marrom e preta.

Na terceira noite chovia forte. Um aguaceiro que começou logo que Murilo chegou em casa e que não deu trégua até a madrugada. Devido à tensão, deve dificuldade para dormir. Foi acordado por um raio. Um barulho intenso seguido de outros clarões e novos estrondos que iluminavam rapidamente o ser em decomposição que estava ao lado de sua cama, na mesma posição das noites anteriores. Tomado pelo susto, tentou gritar, mas o sujeito o agarrou pelo pescoço e começou a apertá-lo. Murilo remexia freneticamente os braços no ar. Tentava agarrar a criatura, impedi-la de obter êxito em seu intento. Agarrava os braços do cadáver e suas mãos deslizavam pela manga da camisa seca, carcomida e empoeirada que soltava fios que ficavam presos por entre seus dedos e o rapaz sentia sob o tecido os ossos trincados. Desesperado, tentava encontrar um ponto onde pudesse se apoiar e ganhar impulso para afastar seu algoz.

Aliado ao pavor de não saber com o que estava lidando e o medo da morte vinha a repugnância de sentir aquele ser asqueroso tocando-o e sendo tocado. O cheiro de sua decomposição o asfixiava. Do rosto caiam pedaços de pele seca e de um buraco despencou uma larva que trocou o corpo podre pelas carnes tenras do jovem. O toque do verme em sua pele como uma gota pesada aumentou o seu pavor. A aspereza dos ossos velhos que suas mãos sentiam se unia aos estalos dos dedos do morto quebrando-se contra seu pescoço, que era apertado e torcido com uma força descomunal.

Murilo tentava gritar, mas, há cada tentativa um novo raio encobria os suspiros que conseguia exalar. Era como se o morto-vivo comandasse as forças da natureza e as transformasse na mordaça de sua agonia. O rapaz se contorcia, era afundado no colchão. Parecia que o morto queria lhe arrancar a cabeça e colocá-la na recomposição de seu corpo que se desmanchava, perdendo pedaços que se espalhavam pelo chão.

Pela manhã, os pais encontraram o rapaz morto. O corpo frio, a pele extremamente branca, os olhos vidrados e a cabeça virada para o lado, um pouco para trás, como se uma corda a estivesse puxando.

O laudo da perícia apontou estrangulamento. Todos estranhavam que não havia sinais de arrombamento pela casa. A mãe não acreditava, não sabia o que dizer ou fazer e petrificada de pavor, tristeza e asco se indagava de onde havia surgido aquela larva que vagava pelo peito do filho.

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 16/09/2012
Código do texto: T3885215
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