Liberdade
- E aí? Quanto falta para chegarmos? - Rafael resmungou no banco traseiro.
- Ah para de ser chato. Aproveita a viagem. - Thiago retrucou.
- Não falta muito, segundo o GPS. - falei aborrecida. Queria chegar na fazenda tanto quanto eles.
- Lilian, acho que estamos perdidos. - Marina estava preocupada.
- Não, não estamos. - falei em um tom mais ríspido dando por encerrada aquela conversa. Aumentei o volume do rádio que tocava “Highway to hell” e ninguém falou mais nada. Pedro nem se manifestou.
Brian Johnson a plenos pulmões: "HIGHWAY TO HELL", como se pudesse prever nosso futuro, naquele, aparente, final de semana comum. Chegamos, meia hora depois, na fazenda que pertencia à minha família. O bisavô de meu pai a comprou, mas depois de sua morte, ninguém da família foi mais, meu pai nunca mencionou nada e fui saber de sua existência por um tio que deixou escapar em uma conversa na qual, todos o reprovaram com o olhar. Não entendi a reação, mas me calei no momento e quando encontrei meu tio sozinho, perguntei tudo a respeito. Ele não entrou em muitos detalhes, mas disse que o pai dele via esse bisavô perambulando pela fazenda de noite, os irmãos acharam que ele estava louco, pois todos estavam no velório e viram lá o corpo imóvel - detalhe importante. Eu não disse nada, mas achei loucura e balela, deixar de ir na fazenda por isso - fique claro que eu nunca acreditei no sobrenatural. Ele me deu o endereço depois de muita insistência.
Eu, finalmente estava diante daquela fazenda linda, o que firmou a minha opinião sobre a história contada por meu tio. Rafael abriu a cancela, entrei com o carro, ele fechou-a e voltou pra dentro do veiculo que guiei até a entrada da casa principal. Um sobrado que, logo após o hall de entrada tinha uma escadaria dupla com degraus vermelhos gastos pelo tempo. Na sala de estar, à direita, sofás dispostos em forma de u, tapete vermelho carcomido, uma mesinha de centro, na frente, uma lareira, janelas enormes com cortinas amareladas e o piso de madeira. A sala de jantar possuía uma mesa de madeira de lei para doze lugares, as cadeiras eram feitas do mesmo material, um lustre que devia datar do século anterior pendia acima do meio da mesa, quadros com fotos desse bisavô com sua esposa e na parede oposta da porta tinha uma flâmula vermelha - que ia do teto ao chão - com o brasão da família em dourado. As janelas eram igualmente imensas, as da sala. A cozinha era repleta de armários, tinha uma pia de duas cubas em frente a uma janela, mesa redonda no meio e o piso, em algum lugar do passado, costumava ser branco. Na parede oposta ao gabinete da pia tinha uma porta que levava a um porão que deixamos para explorá-lo a noite. Subimos para os quartos - eram sete no total - todos mobiliados, suites e basicamente com uma cama de casal, escrivaninha, um criado-mudo e guarda-roupas - um detalhe importante: tudo muito sujo e encardido.
Limpamos e nos acomodamos na sala. Depois fomos explorar a propriedade que contava com um celeiro, um sobrado menor, curral e estábulo. Obviamente estavam abandonados, sujos, velhos e rangendo. Tudo estava normal com exceção do celeiro que ouvimos nitidamente como se alguém se arrastasse no andar de cima. Subimos e, aparentemente não tinha ninguém, estava muito escuro - apesar de ser dia lá fora - pois a janela estava pregada, impedindo os raios solares de entrar. Olhamos ao redor e notamos que todas estavam pregadas. Voltamos para a casa principal já eram quase seis da tarde, estava esfriando e acendemos a lareira. Colocamos algumas batatas embrulhadas no alumínio pra assar.
O tempo passou rápido enquanto contávamos histórias de terror e quando nos demos conta eram dez horas. Terminamos as batatas e decidimos ir ver o porão, pegamos as lanternas e fomos.
O porão fedia a podridão como se algum animal tivesse morrido ali. A escada rangia e conforme descíamos o cheiro ficava mais forte. Tinham algumas caixas velhas com documentos que datavam de 1890, fotos, roupas, bonecas e até uma máquina de escrever. Quando iluminamos o outro canto do porão havia alguma coisa em decomposição, chegamos mais perto e constatamos ser uma pessoa, os ratos que deviam ter se aproveitado do banquete podre estavam mortos ao redor do corpo. Entramos em desespero, ao pensar no que poderia ter acontecido com aquela pessoa e quando pensamos em voltar, a porta fechou, corremos até ela e tentamos, em vão, abri-la. Um gelo percorreu minha espinha, imaginar que tinha mais alguém na casa era perturbador ainda mais que verificamos todos os cômodos e estes estavam vazios.
- Lilian, o que está acontecendo? - a voz de Marina tremia.
- Não sei, Marina, não sei.
- Shhhhh. - Pedro fez um gesto para ficarmos quietas. - escutem. - sussurrou.
Eram passos que iam de um lado a outro na cozinha.
- Dois são meus, dois são teus e o que sobrar a gente disputa no tapa. - uma voz feminina falou.
- Está ótimo pra mim, Cristine. - a voz masculina respondeu rindo.
- Que negócio é esse de dois pra mim, dois pra você e o que sobrar disputa no tapa? - Rafael quis saber.
- Eu não quero ficar pra descobrir, vamos tentar sair pela janela. - Thiago sussurrou.
Empilhamos as caixas para alcançarmos a janela que era relativamente grande, por ser de porão, e estava emperrada. Imprimimos um pouco mais de força e ela cedeu, não podíamos quebrá-la se não, os dois loucos lá em cima nos ouviriam. Marina e eu saímos primeiro, depois Pedro, Rafael e na vez do Thiago, ele escorregou, as caixas caíram fazendo uma barulheira e ele ficou pendurado no beiral da janela - parecia aqueles filmes de terror que alguém sempre cai. A porta do porão foi escancarada.
- Eles estão fugindo, Bartolomeu! - Cristine esbravejou.
Rafael, Pedro e Marina puxavam Thiago até que a mulher agarrou seu pé com uma força descomunal e estava quase levando os quatro juntos.
- Me soltem. - gritou Thiago. - se salvem. Vão.
- Não! - vociferaram juntos. - A gente não vai abandonar você.
Eu fui buscar o carro - para nossa tentativa de fuga - e praticamente me joguei dentro dele. Para meu alívio, ele pegou assim que eu bati a chave. Fui até os fundos e quando estacionei o carro, não havia sinal de nenhum deles e alguém acertou minha cabeça, fazendo-me desmaiar.
Não sei quanto tempo fiquei desacordada, mas quando recobrei os sentidos estava no celeiro, pendurada numa viga e meus amigos estavam ao meu lado, dispostos em fila.
A louca da mulher envolveu Pedro, grudando em seu pescoço e então entendi do que se tratava: se existissem, éramos um banquete de dois vampiros. Bartolomeu atacou Marina. Cristine com a boca suja de sangue, soltou o corpo de Pedro que agora estava sem vida e se atracou em Thiago. Rafael e eu nos entreolhamos assustados, sabíamos que a morte estava perto. Ele tentou se desvencilhar das cordas, que prendiam seus pulsos, balançando o corpo, mas Cristine o deteve com a mão livre.
- Calma, você é o próximo depois de sua amiga. - ela falou em tom diabólico, os olhos vermelhos. - Bartolomeu irá prová-lo. - completou.
Ele foi em direção a Rafael, uma lágrima rolou pelo meu rosto puxando todas as outras que se seguiram.
- Não chore, menina. Só dói no começo da mordida, depois sua vida se esvai junto com o sangue, devagar, saboroso e quente. - Bartolomeu falou sarcástico.
Testemunhei a morte dos meus amigos, nada pude fazer pra ajudá-los e eu seria a próxima. Lembrei de meu tio, de minha família reprovando-o, das coisas que ele me disse, das inúmeras tentativas, em vão, de me fazer desistir de vir nesse lugar. "Ah como queria ter escutado meu tio.", pensei.
Bartolomeu e Cristine morderam meu pescoço, um de cada lado. Uma dor aguda me consumiu de início e depois ondas de prazer percorreram meu corpo. Senti que estava ficando fraca, minha visão ficou turva e desmaiei. Não lembro de ter sonhado e mesmo que o tivesse feito não me lembro do que sonhei. Será que a morte era isso? Essa impressão de ter sonhado e não saber o que sonhou, sem saber onde está, se está pisando no chão ou sentindo seu corpo?
Fui puxada de onde quer que eu estivesse. Abri os olhos, estava no chão do celeiro, vislumbrando o teto. Experimentei mexer os dedos da mão, pra minha felicidade ou não, de fato eles se mexeram. E então tudo o que tinha acontecido anteriormente veio a minha mente e senti medo, pois se os vampiros não me mataram deviam ter um motivo - a essa altura eu já tinha mudado minha opinião sobre o sobrenatural.
- Que bom, você acordou. - Bartolomeu sorriu pra mim.
- O que aconteceu comigo? - minha voz saiu tão fraca que era quase um sussurro.
- Beba. Precisa completar a transformação. - ele ignorara minha pergunta.
Eu me sentei com alguma dificuldade e ele me estendeu um copo com um conteúdo vermelho e denso. Sentia fome - o cheiro do que quer que fosse aquilo estava aumentando-a, minha cabeça doía e pensar estava sendo uma tarefa árdua. Encarei o copo por alguns instantes e olhei pro lado, seja lá o que fosse, eu não beberia.
- Se não beber, vai morrer.
- Que assim seja então. - retruquei.
Cristine, num gesto rápido, me forçou a abrir a boca. Ele despejou o conteúdo do copo e para meu temor, era sangue. Tentei desvencilhar, mas a mão que mantinha minha boca aberta era mais forte. Fui forçada a beber até a ultima gota e então, ela me largou.
Apesar do gosto ruim, aquilo saciou a minha fome e minha cabeça parou de doer.
- Viu como se sente melhor? Agora você é uma de nós e precisa de sangue pra se manter viva. - ele explicava. - você é mais forte e mais rápida que qualquer ser humano. Pode ouvir coisas a metros de distância, dependendo pode voar e ler pensamentos, só o tempo dirá. Não pode nem pensar em andar no sol ou virará cinzas.
Eles me ensinaram algumas coisas, me alimentei junto deles porque me obrigaram, pois quando me deixavam sozinha não queria comer. Fui forçada a cometer atrocidades, pois eles se aproveitavam da minha falta de controle. Descobri que o bisavô de meu pai estava vivo, como nunca, ele mandou que me transformassem, sem se importar com o efeito colateral. Nunca tive a oportunidade de encontrá-lo e tirar satisfações. Já tentei me matar antes, o que fez com que eles ficassem sempre no meu encalço, a mando do bisavô de meu pai, retirando minha liberdade, por anos.
Hoje, eu consegui fugir dos dois, pensei muito a respeito do que estou prestes a fazer - pois até poderia viver fugindo deles, mas eu não teria a verdadeira liberdade, porque teria sempre que olhar por cima do ombro e dormir com um olho aberto - e cheguei a conclusão de que só assim conseguiria tê-la, não em carne mas em espírito, pelo menos meu espírito seria livre e poderia reencontrar meus amigos e a paz.
Assinei meu nome, escrevi para que fosse entregue no endereço da casa dos meus pais e joguei o caderno na frente da residência, a qual, eu estava sentada no telhado, para que o dono recolhesse, lesse essas memória, levasse ao destino que anseio e assim dar um fechamento pro caso "Cinco jovens vão passar final de semana em uma fazenda do interior de São Paulo, quatro morreram e uma está desaparecida.", ocorrido há sete anos.
O sol vem vindo no horizonte, posso sentir cada célula do meu corpo querendo se esconder e conforme avança sobre as casas o medo e a ansiedade me dominam. Uma lágrima, de sangue involuntária, escorre pelo meu rosto, sou atingida por seus raios que queimam, ardem, feridas imensas se abrem, minha carne rasga toda, a dor é insuportável, mas é a dor da liberdade, em segundos, não sinto nada, meu corpo virou cinzas e meu espírito está livre.