A namorada que sonhei

– Arranjei uma substituta – disse T. Francis à Bethânia enquanto ajeitava o travesseiro embaixo de seu crânio pelado. Ela pareceu sorrir e os olhos avermelhados pela dor cintilaram com mais intensidade. Depois balbuciou alguma coisa, ele tentou fazer uma leitura labial, mas nada conseguiu. Por isso encostou o ouvido em sua boca. “Traga a moça para eu conhecer”, ela disse. T. Francis prometeu que assim faria num futuro próximo. Abriu a janela e um vento suave entrou pelo quarto.
– Está vendo? – ele disse apontando o ipê roxo coberto de flores. – A floração chegou mais cedo este ano.
Foi por causa daquela árvore específica que resolveu colocar o leito de Bethânia no segundo andar do sobrado. A copa alta e florida ficava perfeitamente enquadrada em seu ângulo de visão. T. Francis beijou a fronte da Bethânia.
– Vou à cidade hoje. Quer alguma coisa do mercado?
Bethânia mexeu os lábios. T. Francis fez a leitura.
– Trazer a garota? Hoje?
Bethânia articulou uma longa frase, confusamente. T. Francis adivinhou que ela estava insistindo no pedido.
– Está certo. Vou tentar. Mas se você tem a ilusão de que a substituta pode te salvar, pode ir tirando o cavalinho da chuva, meu amor.
Arrastou a cadeira branca de plástico para junto do leito, sentou-se e fixou o olhar no corpo nu da garota. Aqueles pontinhos brancos se mexendo nas virilhas amareladas... Aqueles pontinhos... não seriam vermes? Sentiu um calafrio percorrer a espinha assim que a brutal realidade dos fatos mais uma vez (como vinha acontecendo várias vezes naquele dia) tomou conta do cérebro: Bethânia não iria sobreviver mais alguns dias. Teria talvez algumas horas de vida. Fazia exatamente cinco meses que a sequestrara – a princípio ela lutou muito para se livrar das cordas que a prendiam na cama de cativeiro, teimava em não se alimentar, gritava horas seguidas na esperança de que alguém a escutasse, o que seria impossível, já que T. Francis morava sozinho na chácara. Mas chegou uma hora que ele não teve alternativa senão silenciar a garota. Com um arco de pua fez um pequeno furo no cérebro de Bethânia e derramou no orifício algumas colheradas de água fervendo. Com o cérebro parcialmente cozido, a garota finalmente sossegou – e T. Francis pode desfrutar de sua companhia como bem quis, podia vesti-la como se ela fosse uma boneca, banhá-la com essência de rosas, podia penteá-la (até que o cabelo começou a cair e a deixou calva em menos de uma semana) e fazer sexo com o corpo inerte – podia desfrutar de todas as posições que sua imaginação frenética concebia sem ouvir lamentos ou gritos de dor ou gemidos de pânico. Para que o corpo de Bethânia não morresse, alimentava-o com sopas nutritivas, obrigando a moça a engolir pelo menos dois copos por dias. Mas tudo tem um fim – disse a si mesmo com um suspiro. Era o momento de substituir aquele corpo extremamente fragilizado por um outro mais saudável.
*
Deixou o quarto, desceu a escada, passou pela sala e saiu para o quintal ajardinado. Passeou pelos canteiros de plantas, observando atentamente suas luxuriantes espécies florais: véu de noiva, dinheiro em penca, barba de serpente, aspargo pendente, begônia, petúnia, ajuga, antúrio, diamont frost, lisimaquia, falsa vinha, iresine rasteira vermelha, piectranto, trapoeraba roxa, estrela cadente, maranta variegata, unha de gato, milindre, alocasia amazônica, cipó-uva, columéia peixinho – decidiu-se: iria enterrar o corpo de Bethânia junto aos pés de begônia. Mas se Bethânia agonizava, por que esperar mais tempo? inquiriu a si mesmo. Dirigiu-se ao celeiro, pegou uma picareta, um enxadão, uma enxada e uma pá e tratou de abrir uma cova no lugar previamente escolhido. Trabalhou com calma, sem muito esforço – a terra sob a begônia estava fofa, macia mesmo, nem precisou da enxada e da picareta, bastava enfiar a pá. Quando o buraco estava numa fundura razoável, buscou o corpo de Bethânia, colocou-o suavemente, com carinho, com sincera delicadeza dentro da cova e começou a cobri-lo com a terra. Bethânia estava imobilizada, porém viva. Os olhos abertos da garota brilhavam no mais absoluto terror, mas T. Francis não percebeu nenhuma anormalidade – não possuía sensibilidade para tais sentimentos.
Depois de terminado o serviço fúnebre, T. Francis colheu flores e as depositou sobre o túmulo. Na hora pensou em recitar um poema de amor de algum dos seus muitos poetas preferidos, infelizmente tinha muito ainda o que fazer e não podia se render ao sentimentalismo. Sem mais perda de tempo voltou para o interior da casa, foi ao banheiro, lavou-se, trocou de roupa no quarto, pegou sobre a mesa da cozinha as chaves da camioneta, encaminhou-se para a garagem apegada à residência, entrou na Land Rover Freelander cor de abóbora e deu partida. Eram cinco e meia da tarde. O percurso da chácara até a cidade de Londrina poderia ser feito em dez minutos se pisasse um pouco mais fundo no acelerador. Mas T. Francis precisava pensar, reformular planos, coordenar investidas – por isso resolveu guiar o veículo lenta e cuidadosamente.
Quando deixou a Land Rover no estacionamento próximo ao calçadão, na Avenida Professor João Cândido, T. Francis já tinha alguns novos planos de ação rudimentarmente arquitetados. Olhou o relógio de pulso, eram seis e trinta. Caminhou pela rua fechada aos veículos, entrou numa lanchonete, pediu um copo de leite batido com morangos. Enquanto se alimentava, ficou olhando para o salão de beleza à frente, no lado oposto. No dia anterior havia entrado ali para cortar o cabelo e foi atendido pela garota que disse chamar-se Violeta. A primeira coisa que atraiu a atenção de T. Francis foi o sorriso. Era um sorriso especial.
O salão de beleza encerrou o expediente, fechou as portas e Violeta caminhou diretamente para a lanchonete. O coração de T. Francis bateu forte, ficou olhando-a como que hipnotizado, adorando seu corpo pequeno e franzino coberto pelo uniforme branco semelhante ao de uma enfermeira. Ela tinha o cabelo castanho claro, curto e encaracolado e pezinhos minúsculos enfiados num par de tênis branco. Violeta entrou na lanchonete e passou por T. Francis sem lhe dirigir nem mesmo um olhar de viés, foi sentar-se na banqueta do balcão a uns dois metros de distância, aos fundos. T. Francis não entendeu aquela surpreendente atitude. Por que ela estava fingindo que não o conhecia? No dia anterior haviam conversado muito, sobre tantas coisas, por que agora essa indiferença? O salão de beleza estava sempre lotado de clientes de ambos os sexos, é verdade. Os profissionais cortavam cabelo ou faziam manicure e pedicure em dezenas de pessoas diariamente, Violeta poderia atender alguém, terminar o trabalho, receber o pagamento e de pronto esquecer o freguês. Mas essa fórmula não se aplicava no caso de ambos. No momento em que trocaram olhares uma luz intensa, quente, maravilhosa, havia se instaurado em seus corações. O cérebro de T. Francis começou a trabalhar freneticamente para encontrar lógica no comportamento de Violeta. Formulou e refutou várias hipóteses e, por fim, chegou à conclusão – aceitável – de que ela estava usando de espertíssima tática de sedução.
Violeta solicitou um hambúrguer e uma coca cola ao atendente. T. Francis ficou contrariado com o pedido da moça. Não aprovava aquele tipo de comida e nem era adepto de refrigerantes. Consolou-o a ideia de que teriam muito tempo para se conhecerem melhor. Com paciência, carinho e determinação T. Francis iria alertá-la que a melhor coisa do mundo era seguir uma dieta de alimentação saudável. Sucos naturais, verduras, legumes e carne branca eram as melhores opções – tinha plena convicção de que Violeta acabaria lhe agradecendo pelos conselhos, além de expressar-lhe admiração pelo discernimento, prudência e sapiência no que dizia respeito às normas do bem viver.
Violeta terminou de comer, bebeu o resto de refrigerante da latinha, pediu a conta e tentou conversar com alguém pelo celular. O aparelho estava sem bateria, por isso ela soltou um palavrão T. Francis não gostou daquilo, odiava mulheres de boca suja. Mas nada estava perdido. Educaria a garota, ela aprenderia bons modos nem que fosse a poder de algumas porradas. Chamou o atendente, pagou o leite batido com morangos e também a conta de Violeta. Ficou observando o sujeito dizendo que ela não devia nada e depois o apontando. Violeta fez um arzinho de surpresa, encarou T. Francis e sorriu, formando nos lábios a palavra “obrigada”. E Violeta estava realmente encantada, o rapaz era um partidão. Filho único de um dos maiores fazendeiros do Brasil, seria herdeiro de uma fortuna que iria garantir todos os sonhos possíveis a várias gerações de descendentes – será que a boa sorte estava finalmente florindo em seu destino? disse Violeta a si mesma, lembrando-se de como havia fantasiado uma relação amorosa entre eles na hora em que o viu entrar no salão de beleza com a intenção de cortar o cabelo. Lançando olhares sedutores para T. Francis, Violeta saiu da lanchonete torcendo para que ele a seguisse calçadão afora.
*
T. Francis demorou um pouquinho mais sentado na banqueta, esperando que ela se distanciasse uns cinquenta metros e só depois começou a segui-la. Quando pressentiu que Violeta entraria no Shopping Royal Plaza, diminuiu a distância entre ambos.
No shopping, àquela hora da noite, havia muita gente olhando as lojas, fazendo compras, lanchando ou jantando nas praças de alimentação. T. Francis se sentiu melhor no meio da multidão concentrada. Podia ficar perto de Violeta sem que ela desse por sua presença. Ela caminhou em direção à sala do Cine Lumière, comprou bilhete de entrada. T. Francis fez o mesmo, surpreso com o título do filme: Violeta Foi Para o Céu. Como diziam alguns místicos, e T. Francis acreditava nisso piamente, coincidências não existem. T. Francis sentou-se numa poltrona a três fileiras atrás da moça. Violeta observava, sem dar à vista, os movimentos dele e soltou uma praga baixinho, ou aquele carinha era um tímido digno de pena ou um babaca de marca maior. Será que o bobão não conseguia captar todas as mensagens que seu corpo e seus olhares dissimulados estavam enviando? Resolveu tomar rédeas da situação, levantou-se e caminhou para a fileira de poltronas em que T. Francis estava sentado. T. Francis, que a tudo observava, riu por dentro: ela estava fazendo exatamente o que ele tinha planejado.
*
Não viram o filme, por quase duas horas se entregaram às carícias. Quando a película chegou ao fim, estavam tão excitados que saíram às pressas da sala, deixaram o shopping e rumaram para o estacionamento público. Entraram na camionete Land Rover, Violeta particularmente encantada com o carrão magnífico.
– Você é a namorada que sonhei – disse T. Francis.
– Nossa! Parece até frase de música brega...
– Então vou refazê-la. Você está condenada a viver para sempre ao meu lado.
Violeta riu alto, deliciada.
– Você jura?
– Juro. Você vai se transformar em flor e perfumar meu jardim por toda a eternidade...
– Nossa! Você é um poeta, meu querido!
- Sou mesmo, não é?
T. Francis deu partida na Land Rover e saíram à rua. Passavam-se das dez e meia da noite. A cidade estava silenciosa, pouquíssimos veículos pelas ruas.
– Vamos para um motel? – ela perguntou.
– Eu estava pensando em irmos à minha chácara, fica aqui pertinho, chegaremos em dez minutos se eu pisar no acelerador.
– Eu divido um apartamento com uma amiga, preciso ligar pra ela, sabe como é, se eu me demoro ela pode ficar preocupada... Você me empresta o seu celular?
– Que pena, esqueci de trazê-lo. Você telefona lá de casa, tá bom?
– Tá bom.
Riram um para o outro. Logo chegaram à rodovia e o veículo mergulhou nas entranhas da noite tenebrosa.