Amálgama Fantasma - Cap 20 e 21

XX

- Eu juro que não era eu!

- Eu juro que vou te matar!

Ter lançado a Lâmina do Regresso foi um golpe de gênio eu tinha que admitir, Enzo às vezes tinha esses lampejos de genialidade, o diferencial que o tornava o melhor parapsicoinvestigador do mundo. Claro que a parte mais difícil havia sido feita por mim, identificar o plano, perceber que a entidade era Luciano e dessa forma o mesmo não resistiria em tirar uma vida feminina, além de fazê-lo se tornar consciente de Daniela, eram o meu diferencial, que me tornavam a melhor assistente de parapsicoinvestigador do mundo.

Foi uma mistura de sorte e genialidade que me fizeram voltar a assumir o controle do meu corpo, embora eu não pudesse me sentir muito feliz com o resultado.

- Você vem até o meu quarto armada com uma faca! E ainda por cima me beija! Ora eu sei muito bem quais são suas intenções sua pequena devassa!

Eu imaginava ainda não ter total controle do meu corpo, porque se tivesse tinha certeza que já teria mijado nas calças.

Daniela trajava um infantil pijama de ursinhos, na cabeça trazia uma touca com um pompom azul que esvoaçava a cada mínimo movimento. Sua infantilidade só contrastava com a ferocidade de seu olhar e com o abajur que trazia em mãos, que por duas vezes tentara ser quebrado na minha cabeça.

- Enzo e os outros estão presos no porão lá embaixo! A entidade que me possuiu os prendeu! Podemos libertá-los e você escuta a história da boca deles!

Daniela parou franzindo o rosto e eu só podia implorar que ela me ouvisse.

- Tudo bem. Mas deixe a faca aí no chão. E você vai na frente.

Fiz como ela mandou largando a Lâmina do Regresso e recuando lentamente conforme Daniela avançava até pegar o objeto. Com a Lâmina e um abajur em mãos ela fez um movimento para que eu a guiasse e caminhou atrás de mim.

Forcei-me a descer os degraus com calma apesar de minha alma estar gritando para que eu corresse. Se eu estava preocupada com Enzo e os demais presos naquele porão maldito com quaisquer outras entidades que pudessem existir? Claro que não! Eu estava preocupada com aquela lunática armada atrás de mim! Sua ferocidade era algo físico e eu podia sentir seu olhar em minhas costas me perfurando como a visão de calor do super homem.

Quando alcançamos a porta do porão fui rápida em destravar os trincos e empurrar a pesada madeira, dando liberdade aos prisioneiros.

- Ai!

Cai no chão com um baque levando a mão à cabeça. Havia levado um golpe e tanto.

- Quem é você? – Padre Sávio inquiriu segurando um pedaço de madeira da velha Yggdrasil.

- Eu sou a Talita seu velho maluco! – Respondi só com metade da raiva porque a dor nublava meu ódio.

- Não parece que eles estão do seu lado – Daniela comentou recuando alguns passos.

Enzo e Giovana saíram do porão e logo se encarregaram de desarmar o padre. Enzo estendeu uma mão para me ajudar.

- Acho que temos tudo sobre controle certo? – Enzo perguntou após ver o corte em meu dedo que parara de sangrar mas mantinha-se com uma ardência incômoda – Padre Sávio aparentemente deu um jeito em Adla durante seu sepultamento, então tínhamos cinquenta por cento de chance de ser Luciano a ter possuído você, nesse caso a Lâmina do Regresso tinha grandes chances de resolver esse problema de possessão...Velhos hábitos são impossíveis de serem mudados.

Grunhi qualquer coisa enquanto Giovana estendia uma mão para mim e fechava os olhos.

- Não parece ter mais nada em você. Eu estou oficialmente impressionada Velasquez. Sua faca além de fazer milagres se mostrou bem versátil.

Ainda foi necessário algum diálogo para fazer padre Sávio e Daniela entenderem que eu não era mais uma ameaça a vida de ninguém.

- Jamais pensei que viveria para ver uma coisa dessas – padre Sávio comentou depois de se desculpar talvez pela milésima vez pelo golpe que me dera – É uma afronta tão absurda as leis divinas que nem sei o que pensar...

E sem mais o homem cobriu o rosto com as mãos como se fosse começar a chorar.

Estávamos de volta a cozinha e Daniela se encarregara de preparar um café bem forte para todos. Apesar de sua boa vontade eu recusei minha xícara, primeiros porque estava com as mãos ocupadas segurando um saco de gelo para apaziguar o golpe em minha cabeça, depois porque a governanta ainda me olhava com suspeita e não queria nem imaginar o tipo de vingança que ela poderia ter colocado no meu café.

- Está tudo muito claro agora. Eu não pude invocar a alma de Luciano porque ela ficou presa no porão quando colocamos a histérica lá. – Giovana falou com o olhar sério e eu franzi os meus para ela.

- A idéia de lançar sua lâmina foi um golpe de mestre – Padre Sávio comentou com o rosto vermelho devido a fumaça do café. – Mas me intriga como você poderia saber que o espírito do finado Luciano havia possuído sua assistente?

Enzo coçou o queixo e enfiou outro bombom na boca, ele não era fã de cafés por isso o dispensara, optando por um chocolate quente.

- A princípio não sabia que era Luciano mas sabia que alguma coisa estava errada com a Talita, e dadas as circunstâncias sabia que nossa única chance seria Talita reaver o controle de seu corpo e a forma mais eficiente de fazê-lo seria com a Lâmina do Regresso.

Não deixei de corar e me encolher como uma garotinha. Enzo e eu havíamos passado por muita coisa desde que nos conhecemos e seria normal, mesmo para alguém tão sensitivo quanto uma pedra, identificar quando alguma coisa estivesse errada comigo.

- Talita jamais lhe contaria o porque do seu ritual ter falhado – Enzo explicava à Giovana – Ela iria deixar você se frustrar e rir de você. Arrisco dizer que guardaria o segredo para sempre nos levando a um beco sem saída nesse caso.

Foi uma sorte não estar com uma xícara de café em mãos ou teria virado-a integralmente na cabeça daquele retardado.

- Enfim, e agora Enzo? – Padre Sávio perguntou me olhando repentinamente de esguelha e se afastando alguns centímetros após ver minha expressão – A alma de Luciano se cortou com a sua lâmina, o que aconteceu com ela?

- A entidade foi lançada para algum plano longe deste, porém não podemos abaixar a guarda... Luciano se mostrou forte o bastante para assumir o controle de Talita por isso é incerto o tempo que permanecerá longe daqui.

- Vocês podem fazer o que quiserem – Daniela comentou – Eu ainda preciso do meu sono de beleza.

Embora achasse que a governanta precisaria hibernar antes desse sono fazer efeito, a sensação que me dominava era a de preocupação. Enzo tocara numa tecla importante, uma entidade forte o bastante para se ocultar como Luciano se ocultou e sobrepujar a minha vontade era algo que merecia atenção.

- Temos que aproveitar enquanto ele está fora – comentei com determinação sentindo os olhares serem dirigidos à mim – Quando retornar o fará com raiva renovada e pode ser que nem o nosso poder combinado faça frente a ele.

Giovana e padre Sávio responderam a minha preocupação. Era possível ver em seus olhos que eles tinham uma idéia parecida e estavam dispostos a qualquer coisa para aproveitarem a chance.

- Acho que deveríamos ao menos cochilar – Enzo comentou fazendo os remanescentes o encararem – Passamos por muita coisa desde ontem e acredito que vocês devam estar tão ou até mais cansados do que eu. Não conseguiremos muito progresso assim. Contudo, depois de um cochilo, teremos energias renovadas e poderemos lidar melhor com isso.

Não que me surpreendesse Enzo estar propondo que não trabalhássemos, mas ele não parecia fazê-lo apenas para descansar, ele estava mesmo se preocupando em acumular forças para o dia seguinte.

- Claro que vocês são livres para fazerem o que quiserem – Enzo disse e era incrível sua habilidade de não dar a mínima para a opinião alheia – Quanto a mim, vou passar no quarto do senhor Basílio e se ele estiver acordado o avisarei sobre o ocorrido. Então senhores, lhes desejo boa noite.

XXI

As palavras de Enzo acenderam pensamentos sobre camas quentes e colchões macios, sendo assim todos nós acabamos indo deitar.

Gostaria de pensar que com a entidade fora minha noite seria tranquila, que a confortável cama seria o reduto perfeito para que meu corpo debilitado se reabastece e estivesse pronto para o combate amanhã.

Não foi nem perto disso.

Tive pesadelos constantes que me faziam acordar de meia em meia hora com um suadouro asqueroso. Isso quando conseguia dormir, porque na maior parte do tempo eu me revirava sobre o colchão num estado semi-consciente que não me permitia descansar. Meu cérebro se mantinha ativo o bastante para imaginar coisas obscuras me rodeando, prontas para me pegar.

Quando por fim desisti de permanecer naquele estado e decidi acordar, a escuridão ainda cobria a terra embora não tardasse para o Sol perder sua timidez e despontar sobre aquela parte do planeta. Dei uma espreguiçada mais dolorosa do que relaxante e me permiti desmontar sobre o colchão, sentindo uma onda de cansaço envolver-me a ponto de desejar ser início de noite de novo.

Foi quando uma coisa em especial chamou minha atenção...

Eram batidas constantes, como se alguém estivesse martelando um prego infinito sobre uma superfície. Não era um som alto mas no silêncio era algo incômodo o bastante para se juntar a meu estresse e me motivar a por fim tirar os pés dos lençóis.

Sabia não se tratar de um som sobrenatural porque meu sexto sentido não despertara, porém com os últimos acontecimentos estava inclinada a ser o mais cuidadosa possível, logo, caminhei pé ante pé até a porta, com o cuidado de recolher uma pequena caneta sobre minha escrivaninha e segurá-la como se fosse a espada mais bem forjada da história.

A porta rangeu quando eu a empurrei e logo estiquei o pescoço para fora, tentando forçar meus olhos a encontrarem a origem daquele ruído.

Nada de muito concreto pôde ser descoberto, a não ser o fato de que o barulho não parecia vir daquele andar. Molhei meus lábios com uma língua seca e finalmente arrisquei algumas palavras.

- Alguém aí?

Minha voz se tornou um eco rouco que soou algumas vezes antes de morrer nas paredes. Podia ser impressão minha mas eu senti as batidas darem um intervalo como se seu causador tivesse parado para ouvir o que eu dissera.

Uma parte de mim gritava para que eu fosse até Enzo chamá-lo, todavia a curiosidade era grande demais e eu fiz essa parte se calar, usando toda minha concentração para ficar atenta ao ambiente enquanto caminhava pé ante pé pelo corredor, sentindo a maciez do tapete se unir ao das minhas pantufas. Algumas marteladas me confirmaram que o barulho vinha dos andares inferiores. Com cautela reduzi o passo e apurei ainda mais os ouvidos, sentindo-os arder quando meus pés chegaram a escada e o primeiro dos degraus rangeu sob meu peso.

As marteladas subitamente cessaram e a atmosfera me envolveu como um saco plástico. Eu sabia que nenhuma entidade estava por perto mas o cérebro às vezes está inclinado a reconhecer um perigo quando nada existe, e quando isso acontece nada do que você pensa ou faz parece capaz de mandar a sensação embora.

Juro que tentei um último impulso de coragem para avançar mas no fim acabei me encolhendo e fungando algumas vezes quando percebi que havia uma luz acesa no andar inferior.

A luz vinha do porão.

O pavor se tornou aflição que não tardaria em se tornar o mais puro medo. A coisa foi tão intensa que fui obrigada a expandir, e mesmo não sentindo nada continuei acocorada e armada com meu medo e aquela caneta. Estava agora em um impasse... Não conseguiria voltar para o quarto e para cama, então me restava uma única alternativa, o problema era a coragem necessária para seguí-la...

Foi quando decidi que já havia passado por um trauma grande o bastante para ficar com medo de marteladas numa noite abafada e avancei determinada a pôr um fim naquela história.

Isso até o som de passadas substituírem as marteladas, revelando que alguém subia as escadas do porão.

A porta estava parcialmente encostada de modo que eu não podia ter uma visão do que acontecia. Percebia apenas que alguém se aproximava porque o som de passos estava cada vez mais alto. Com isso acelerei – algumas partidas de xadrez me ensinaram que o ataque é a melhor defesa – e parei diante da porta com minha caneta em punho, pronta para dar um golpe de misericórdia quando a figura ameaçadora despontasse pela passagem.

A porta foi aberta num solavanco e dei uma canetada bem dada no causador de ruídos.

- Ai!

Pisquei algumas vezes para a figura de Enzo massageando a barriga, bem em cima de uma marca azul que eu fizera em sua roupa.

- O que deu em você? Não podia ter avisado que estava vindo? – Ele ralhou comigo.

- Eu avisar? Porque você não avisou que ia tirar a noite para fazer barulhos esquisitos! Aliás, não foi você mesmo que nos mandou dormir?

Enzo me encarou mal-humorado e eu retribui com a mesma expressão. Isto até eu notar seu estado...

Além da mancha azul que eu colocara em sua camiseta havia uma quantidade exorbitante de terra e sujeira a cobrindo, como se o estranho parapsicoinvestigador tivesse passado as últimas horas rolando sobre terra molhada. Seu cabelo, rosto e calças reforçavam essa impressão. O suor também era uma constante em seu corpo, empapando sua roupa de modo que esta permanecesse colada a pele e revelando a peculiar magreza que o dominava.

- O que você estava fazendo aí? – Perguntei após um tempo.

Enzo tirou um bombom sobrevivente do bolso e enfiou-o inteiro na boca antes de me chamar com um dedo para que eu descesse as escadas, ação que realizei com certa apreensão... Alguma coisa não me cheirava bem.

E eu tinha razão.

A organização que existia fora destruída, para dar lugar não apenas ao caos mas sim a destruição que somente o último parapsicoinvestigador do mundo era capaz de criar.

- Enzo... O que diabos você fez!?

O chão de concreto havia sido localmente destruído por uma picareta, dando lugar a um grande buraco cujo conteúdo fora espalhado por todos os cantos. Toda a mobília e instrumentos estavam cobertos com aquele cor de lama e o cheiro era tão característico que enchia o ambiente como um aromatizador.

- A barreira que Giovana colocou naquela porta não era uma coisa de amadores – Enzo começou afiando os olhos ao encarar a arte que fizera no porão – Nenhuma entidade teria poder de penetrar naquilo, nem mesmo uma como Luciano. Então isso levanta a grande questão do como a entidade conseguiu estar aqui dentro para te possuir.

Era uma questão intrigante porém uma para a qual eu já tinha uma resposta.

- A entidade não precisou entrar. – Respondi – Ela sempre esteve aqui. Isso explica porque nem eu nem Giovana pudemos sentí-la. A entidade tem uma ligação tão forte com esse lugar que acabou fazendo parte dele, por isso pôde se esconder perfeitamente.

Enzo aquiesceu calmamente embora sua expressão me deixasse com a dúvida de que eu estivesse esquecendo algo.

- Não lhe parece estranho uma entidade como Luciano ter uma ligação tão forte com esse lugar?

Fui obrigada a um minuto de introspecção. Pessoas às vezes criam ligações fortes com localidades especiais de suas vidas, quando isso acontece pode ser que, ao morrerem, elas mantenham essa ligação. Se a ligação for peculiarmente forte pode-se atingir um ponto onde a energia da entidade começa a ser absorvida pelo ambiente, criando um templo. Exemplos de lugares assim existem aos milhares pelo mundo mas em todos eles há uma coisa em comum... A entidade precisa ter tido um tempo longo e sensações intensas no local, em um ponto que nem a morte seja capaz de apagar a memória que ela têm com o lugar.

Entendi onde Enzo queria chegar.

- Talvez fosse aqui que Luciano fizesse a maior parte de suas insanidades, ou pelo menos as mais intensas. – Arrisquei.

- Pode ser Talita. Pode ser que alguma coisa tenha escapado a história e se perdido acabando por nos trazer a essa situação. Mas eu tenho uma máxima, você se lembra dela?

Como poderia esquecer.

- Se ninguém lembra é porque não existiu.

- Se ninguém lembra é porque não existiu... – Enzo repetiu deixando as palavras fazerem pressão no ambiente. – Então que outro motivo poderia haver para levar Luciano a ter um poder tão intenso nesse espaço? A ponto de confundir duas das mais poderosas sensitivas desse planeta?

Engoli seco lembrando algo que senhor Basílio dissera em nosso primeiro encontro.

- O corpo de Luciano nunca foi achado... Alguns acreditam que o próprio demônio apareceu para levá-lo... – Acabei dizendo em voz alta, mais para mim do que para qualquer outro.

- Talvez o demônio não tenha de fato levado Luciano. Talvez tenha apenas o escondido em um local seguro o bastante para que pudesse continuar agindo sem ser encontrado. Faz muito mais sentido, não faz?

Voltei a engolir seco. É, fazia muito sentido.

- Você acha que...

Enzo apontou um canto com muito mais limpo do que o resto.

- Encontrei alguns documentos enquanto fiquei com meus dois colegas de investigação aqui e encontrei algumas coisas interessantes.

Dei um tapa em minha testa, eram os mesmos documentos que eu havia encontrado. Registros da compra da casa e de escravos. Com tudo que acontecera não consegui avisar Enzo sobre eles.

- Eu havia achado esses mesmos documentos mas não tive a chance de te contar.

- E pelo visto também não teve a chance de analisá-los o que teria me poupado muito trabalho.

Fiz um bico antes de Enzo continuar.

- Toda essa casa foi reformada por Luciano, os recibos ainda estão ali.

Enzo havia se calado e eu tentava entender onde ele queria chegar.

- E...

- E por isso eu estou cavando. Uma reforma foi feita por Luciano e seu corpo nunca foi encontrado. Para completar esse lugar tem uma forte ligação com a entidade que ele se tornou. Faça a soma Talita.

Eu fiz por isso precisava fazer uma pergunta.

- Você pediu permissão ao senhor Basílio para isso, não pediu? Porque se ele vier até aqui e ver o estado do porão dele vai querer matá-lo!

Enzo estalou o pescoço com um movimento brusco antes de responder.

- Nosso anfitrião disse para usarmos de todos os meios para nos livrarmos das entidades dessa casa. Estou apenas cumprindo suas ordens.

- Mas isso não incluia destruir a casa!

Enzo deu de ombros.

- O que está feito, está feito – Ele respondeu limpando o suor da testa e se preparando para voltar ao trabalho – E já que você está acordada podia me ajudar. Eu estou realmente curioso para achar o que tem para ser achado aqui porque isso vai significar caso encerrado.

Franzi os olhos num momento de pensamento profundo. Eu tinha uma cama quentinha, um quarto gigantesco, uma banheira digna de uma rainha e a melhor comida que um ser humano poderia desejar bem ali. Não me incomodaria se continuássemos por um bom tempo com o caso aberto se pudéssemos continuar usufruindo de tudo aquilo.

- O que você está esperando?

A insistência de Enzo fez com que me movesse mesmo contra minha vontade. A mania de sempre tentar achar uma solução para o caso fez meu cérebro começar a funcionar pedindo informações básicas.

- Você usou o radar para ver se há alguma coisa aqui? – Perguntei conforme descíamos as escadas.

- Ele indicou alguma coisa a cinco metros, bem nesse lugar.

Meu desânimo foi tão intenso que por pouco não tombei dentro do espaço cavado.

- Cinco metros?! Nós vamos levar a vida inteira para cavar cinco metros! Isso sem falar que essa porcaria não é precisa, pode ser que não tenha nada embaixo de nós.

- Com certeza há algo embaixo de nós, é o único motivo para acontecer o que aconteceu. Por isso vamos logo, quanto mais rápido começarmos mais rápido sua vida inteira pode passar.

Fiz um bico considerável recolhendo uma das pás.

- Não há nada mais moderno que podemos usar? Temos tanta porcaria para documentar entidades que podíamos ter algo melhor do que pás.

- Infelizmente é com isso que vamos ter que nos virar, agora se não se importar, comece a cavar.

Ciente de que teria um dia repleto de dores nas costas desci ao nível de Enzo e me juntei a ele na árdua tarefa que teríamos antes de solucionar aquele caso.

Claro que as coisas não foram nem remotamente fáceis. Enzo havia vencido uma camada de cimento considerável e alcançado uma terra argilosa que comecei a remover com dificuldade. A densidade era ridicularmente alta fazendo cada lançamento de terra ser como um arremesso de peso. Foi impossível me manter limpa e meu cérebro ainda embriagado pelo sono tentava entender como o corpo que o sustentava estava tão suado, dolorido e imundo se cinco minutos atrás a situação era ridiculamente diferente. Meu cérebro pensou muito mas não chegou a uma conclusão e eu também não.

As coisas estavam ruins até se tornarem péssimas quando minha pá bateu em uma coisa mais dura me fazendo perceber que havia uma camada de concreto por baixo de toda aquela terra.

- Porque existiria concreto embaixo de concreto? – Perguntei bufando e deixando uma marca de terra na testa ao limpá-la com as costas das mãos.

- Porque aqui está o que procuramos.

Enzo largou a pá e agarrou uma picareta próxima, sugerindo que eu fizesse o mesmo.

- Cavar já é um absurdo mas com isso aqui você quer realmente me irritar, não é?

Enzo não ouviu começando a dolorosa e lenta tarefa de tentar destruir a camada de cimento com aquele artefato arcaico. Eu tentei me juntar a ele mas logo na primeira batida senti uma onda de choque percorrer meu corpo e me fazer bater os dentes com uma força que por pouco não os quebrou. Mal tive tempo de me frustrar, o cansaço, o calor daquele porão e o pó que começava a subir a cada batida de Enzo foram suficientes para me fazer desistir. Eu sai do buraco e me coloquei a uma distância considerável, disposta a apenas apreciar o trabalho.

O sono voltava a me incomodar e minhas mãos e roupas sujas não me permitiam sequer massagear a dor que pulsava atrás dos meus olhos. Enzo demoraria uma eternidade ali e por mais mal humorada que eu estivesse jamais conseguiria deixá-lo sozinho enquanto me entregava a uma cama confortável, por mais tentador que fosse.

Já pronta para uma espera longa eu tentava não me importar com as batidas ritmadas da picareta contra o concreto, que após um tempo pareciam como um pulsão sendo enfiado na espinha, causando um calafrio que agitavam ainda mais a poeira levantada na atmosfera. Quando pensei que o tédio e a letargia somados ao meu desconforto me levariam finalmente a loucura, percebi ouvir sons vindos do andar superior. Dessa vez nem cogitei se tratar de uma entidade ou de uma presença suspeita, aquelas batidas com certeza não eram insuportáveis apenas para mim.

- Ora, ora, ora, mas o que temos aqui? – A voz morosa de padre Sávio chegou aos meus ouvidos, seguida de uma tosse rouca quando o homem entrou em contato com toda a poeira.

- Velasquez, pelo amor de Deus, você pode dar um significado para isso? – Giovana perguntou também cobrindo o nariz e olhando indignada ao redor.

Enzo bufou longamente antes de olhar os recém chegados, mas uma baforada cansada e ele olhou para mim com intensidade suficiente para que eu soubesse o que ele estava querendo.

- Resumidamente Enzo acredita que é impossível uma entidade ter passado a barreira que você criou e me possuído – Comecei num tom lacônico e sem nunca desgrudar os olhos de Enzo – De modo que ele chegou a conclusão de que o corpo de Luciano está enterrado nesse porão, e pelo radar parece que o encontramos.

Giovana e padre Sávio olharam visivelmente surpresos.

- Isso pode ser possível... – Giovana começou levando uma mão ao queixo, vestia uma camisola branca que muito se assemelhava a túnica que usara durante seus rituais – Na verdade acredito que seja o mais provável!

- Você poderia ter nos chamado jovem Enzo, não me parece correto que faça todo esse trabalho sozinho.

Novamente tive de admirar a jovialidade de padre Sávio, mesmo com todo o ocorrido e com o sono pela metade o homem agarrava uma pá e se enfiava no buraco junto com Enzo, pronto para retirar o excesso de cimento destruído com a picareta.

- Você tomou alguma precaução? – Giovana perguntou olhando ao redor como se esperasse encontrar algum símbolo de poder pintado nas paredes – Luciano é forte, não sabemos o que esperar ao abrirmos sua cova.

- Luciano foi afetado pela Lâmina do Regresso, ele ainda deve levar um tempo para voltar. Por isso não quis esperar o amanhecer para começar essa escavação, cada minuto que passa as chances de Luciano encontrar o caminho de volta aumentam.

- Não foi esse o discurso que você fazia algumas horas atrás meu jovem. – Padre Sávio comentou.

- Os planos mudaram mais rápido que o humor da Talita padre. Não tive escolha a não ser agir.

E assim eu e Giovana esperamos conforme Enzo e padre Sávio se encarregavam de abrir um novo buraco. Foi uma espera longa, contudo muitas e muitas picaretadas depois, muito e muito cimento depois, ouvimos o primeiro barulho seco daquela escavação e quando afiei o olhar pude ver a poeira ao redor do buraco se mover quando ar começou a sair de um pequeno buraco feito por Enzo.

O cheio que subiu foi rançoso, uma mistura de mofo e limo, algo podre e antigo. Imediatamente cobri o nariz e vi Giovana fazer o mesmo. Aquele ar de decomposição era doentio e me foi preciso muita concentração para manter minha última refeição firme no estômago.

Quer dizer, não foi tão difícil assim, porque logo quando o cheiro apertou me forçando a fechar os olhos e imaginar alguma coisa neutra, algo formigou meu sexto sentido a um ponto que me deixou alerta. Bastou uma olhada para Giovana para perceber que ela sentira o mesmo...

Uma mortalha nos envolveu e ambas sabíamos que terminar de abrir aquele túmulo não seria nada fácil.

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História em reta final pessoal! Continua quarta 05/09

Gantz
Enviado por Gantz em 03/09/2012
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