O FAMALIÁ

 
Um dia ensolarado; pássaros cantando, aos bandos, nos galhos das árvores. Borboletas, céu azul, enfim, um belíssimo cenário de primavera. A rua de casas simples, caiadas de branco. Quem por ali passasse, jamais poderia dizer o que se acontecia por trás das paredes de uma daquelas casinhas simples e ingênuas, caiadas de luz. Naquele cenário quase paradisíaco (podemos ouvir o barulho das marolas quebrando ali perto, e o perfume salgado do mar), alguém se agita. Um espírito amofinado e vingativo.

Entramos pelo portãozinho torto de madeira meio-apodrecida, e cruzamos o caminho de cascalhos em meio ao quintal mal cuidado. Restos de um carro jazem em meio ao matagal. Um pé de ameixas insiste em dar seus frutos no meio daquele ambiente feioso e cheio de lixo.

Na cozinha, uma mulher pobre – a mãe – termina de preparar o parco almoço: um peixe, pescado há pouco por ela mesma (o pai tinha saído um dia para o mar e nunca mais voltou), um pouco de farinha e arroz. Enquanto põe a mesa, ela cantarola uma velha canção de marinheiros. Os braços gordos e suados, mas ágeis, sacodem a toalha um pouco manchada à janela, depois, deita os pratos e garfos sobre ela, pondo bem no meio, a jarra d’água.

Marco, o filho, está trancado no escuro de seu quarto, pois ultimamente, não suportava a luz do sol. Sua triste figura preferia esconder-se das demais pessoas, cansado que estava de tanto sofrer injúrias e zombarias devido à sua aparência medonha. 

Tudo começara há quatro anos, quando ele tinha ainda dezesseis. Um dia, houve um incêndio na antiga casinha onde moravam. Marco quase morrera. Fora salvo, mas teve que carregar as marcas daquele dia fatídico. Seu rosto era totalmente deformado; um dos olhos, sempre fechado, parecia derreter-se sobre a maçã do rosto. A pele grossa cobria mais de setenta por cento de seu corpo, e ele andava com dificuldades.

Passara um longo tempo de sofrimento no hospital. Quando finalmente saiu, e tentou voltar à sua antiga vida, viu que não mais havia lugar para ele no mundo. Os professores da escolinha pediam-lhe que se sentasse nos últimos lugares, a fim de não escandalizar o espírito delicado das meninas. Na rua, todos o apontavam, alguns troçando de seu andar manco.

Os outros meninos o evitavam, nunca o convidando para as festinhas. As meninas torciam o rosto com asco, ao olhar para ele.

Marco trancou-se em sua casa. Um ódio crescia dentro dele, cada vez mais, sendo cuidadosamente cultivado. A mãe tentava de tudo para animar um pouco o filho, mas acabou desistindo quando, um dia, ele a colocou para fora do quarto aos empurrões. Naquele momento, ela sentiu que alguma coisa a mais, além da pele, havia se queimado naquele incêndio: a alma de seu filho.

A única coisa que lhe restara, era a leitura. Apesar do corpo irremediavelmente deformado, Marco , que cultivara o hábito da leitura, tornou-se mais culto do que as pessoas de sua vila naqueles quatro anos de isolamento. Fazia uma pequena lista com os livros que desejava, e a mãe, usando parte do dinheiro da pensão que o pai deixara, comprava-os para ele em um sebo ali perto. Ele ficava sabendo dos livros mais importantes através de um catálogo de livraria que achara na rua. Depois, ao final dos livros, sempre havia novas indicações de leitura, e assim, Marco sempre tinha algum livro para ler.

Um dia, ao final de um dos livros, achou um título interessante: “O Livro Negro de São Cipriano.” Leu o resumo, e ficou ainda mais curioso ao constatar que tratava-se de um livro de magia. Logo, pediu à mãe que o comprasse para ele. Aguardou ansiosamente até que a aposentadoria do pai chegasse, e assim que a mãe recebeu o dinheiro, Marco fez com que ela comprasse o livro para ele.

Foram vários dias trancado em seu quarto, lendo página por página do curioso livro. A parte que mais gostou, foi a que ensinava como fazer um famaliá – espécie de diabinho que, segundo o livro, satisfazia todas as vontades de quem o possuísse.

De acordo com as instruções do livro, durante o período da quaresma, aquele que desejasse possuir um famaliá deveria adquirir um ovo de galo; na primeira sexta-feira após a aquisição, ir até uma encruzilhada à meia-noite, tendo o ovo debaixo do braço esquerdo; ao voltar para casa, mantendo sempre o ovo sob o braço esquerdo, e com muito cuidado para não quebrá-lo, deitar-se na cama durante quarenta dias, ao final dos quais, o ovo teria sido chocado e o diabinho nasceria. Depois, era só colocá-lo em uma garrafa tampada.

Marco teve um sobressalto; talvez, aquela fosse a solução para todo o seu sofrimento! Pediria para ser belo como antes... não; pediria para ser ainda mais belo! Teria muito dinheiro, uma linda casa – uma? Não; várias! Carros, mulheres, roupas caríssimas... vingar-se-ia de todos os que riam dele.

Durante o restante do ano, até a época da quaresma, no ano seguinte, Marco arquitetou seu plano nos mínimos detalhes. Procurou saber como poderia conseguir um ovo de galo, e para isso, numa noite enluarada, procurou o terreiro da aldeia. Caminhando pelos cantos da rua, rosto escondido sob um capuz negro, encaminhou-se para o terreiro de quimbanda.
Lá chegando, ficou em um canto mais escuro durante todo o ritual, onde galos e pequenos animais eram sacrificados aos orixás, e fascinado, assistiu boquiaberto às cenas de encorporação de santos pelos chamados ‘cavalos.’ 

Esperou que quase todas as pessoas fizessem a sua consulta espiritual, tentando não chamar a atenção para sua figura, e quando finalmente chegou sua vez, dirigiu-se com seus passos claudicantes até o orixá. Sentou-se diante dele – uma bizarra figura que usava um cocar de índio, pele pintada de tinta vermelha, olhos injetados, fumando um enorme charuto.

“O que suncê deseja?” , disse o índio, olhando-o friamente.
“Quero saber como conseguir um ovo de galo.”
O orixá soltou uma gargalhada tenebrosa, que ecoou por todo o local.
“E pra quê suncê quer um ovo de galo?”
“Quero fazer um famaliá para mim!”

O orixá sugou seu charuto profundamente, retendo a fumaça por alguns instantes. Antes de responder, tomou uma boa golada de cachaça, e chegando o rosto bem próximo ao rosto de Marco, murmurou, olhando-o bem dentro dos olhos:

“E suncê sabe qual é o preço que vai pagá?”
Marco lembrou-se do livro: O possuidor de um famaliá, ao final da vida, pagaria com sua própria alma. Suspirou fundo, respondendo:
“Sei, sim.”
“E suncê ta disposto?”

Sem hesitar, olhando nos olhos do orixá, Marco balançou assentiu com a cabeça.

A criatura fantástica deu uma outra gargalhada, desta vez, causando arrepios a Marco. Daí, colocou uma das mãos nas costas, e ao mostrá-la a Marco, segurava um ovo vermelho. Entregou-o a ele, dizendo:

“Pelo jeito, suncê já sabe o que fazê. Mas toma cuidado, não deixa quebrá, purque é difícil cunsegui um desses.”

Marco saiu dali com o ovo no bolso do casaco. Tinha a impressão de estar sendo seguido, e as sombras da noite agitavam-se em volta dele. Escutava gargalhadas que pareciam vir de dentro de sua cabeça, mas achou que poderiam ser apenas os ecos da gargalhada do orixá.

Naquela sexta-feira, colocou o ovo sob o braço esquerdo e cumpriu todo o ritual do livro, com todos os detalhes.
Mentiu à mãe, dizendo estar doente, e sem que ela percebesse, conseguiu ficar na cama durante os quarenta dias necessários para chocar seu diabinho. Só saía da cama para fazer suas necessidades. Durante aquele período, teve várias alucinações; algumas, terríveis. Teve febres altas, intercaladas por muito frio. A mãe dizia que ele delirava, e durante seus delírios, dizia frases em línguas estranhas.

Ao final do quadragésimo dia, Marco despertou com uma sensação de cócegas sob o braço esquerdo.
Seu diabinho nascera. 

Colocou-o depressa dentro da garrafa, e ficou olhando a bizarra criatura durante horas seguidas, e sendo olhado de volta por ela. Até que o diabinho, franzindo o cenho, lhe falou:
“Não vai pedir nada?”

E foi assim que Marco tornou-se o homem mais belo,rico e poderoso daquela cidade. Casou-se com a mais bela das mulheres, e teve muitos filhos, mas teve que entregar um por um ao Famaliá, toda vez que este cobrava sua dívida. Assim, viu sua linda mulher definhar e morrer de tristeza. Mas ele continuava sempre belo e rico, temido por todos e admirado por muitos.

Viu também a mãe consumir-se de uma terrível doença e morrer entre muitas dores e sofrimentos terríveis. Enquanto sua própria vida prosperava, tudo à sua volta definhava. Sua casa era a mais bela e imponente da cidade, enquanto que as outras, tornavam-se logo velhas e caíam em ruínas. Seu lindo jardim florido ficava bem no centro de uma vila onde as plantas eram secas e feias. 
Todos os seus amigos e parentes morreram de estranhas e prolongadas doenças.

Marco percebeu que ficava cada vez mais só. Logo, todas as pessoas mudaram-se da vila, que tornou-se uma cidade-fantasma. Marco estava mergulhado na infelicidade e na solidão.
Um dia, teve uma idéia: pegou a garrafinha com o famaliá e disse-lhe: “Não quero mais ser rico e bonito. Devolva-me todos os entes queridos que você levou, e eu devolvo-lhe todas as riquezas que você me deu.”

O diabinho olhou para ele, e apertando os olhinhos, respondeu: “Impossível...você sabia que negócio estava fazendo quando assinou o acordo. Não há como quebrar o contrato!”

Ao ouvir aquela resposta, Marco pegou a garrafa e correu até um alto penhasco, jogando-a no mar,  em um local bem profundo. Mas no dia seguinte, ela reapareceu sobre a sua mesa. Todas as vezes que tentava livrar-se dela, o diabinho voltava. Tentou quebrá-la, esmagando o diabinho com uma enorme pedra, mas foi em vão: ela era totalmente inquebrável!

E assim foi, até o dia de sua morte, após uma longa e solitária vida, quando Marco entregou ao Famaliá a sua própria alma, em resgate de todas as outras que havia sacrificado a seu favor.


 
                                                           
 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 30/08/2012
Reeditado em 31/07/2015
Código do texto: T3856615
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