Amálgama Fantasma - Cap 17

XVII

Não foi apenas um documento de posse, toda a história daquela casa estava guardada de alguma forma naquelas pastas empoeiradas, desde relatórios de inspeção até registros de venda das sacas de café. Descobri uma grande reforma ocorrida no início do século 19 que deixou por dois anos a fazenda improdutiva e através de um caderno de contabilidade vi o quando isso afetou as finanças de Luciano. Também encontrei uma pasta com registros e mais registros de escravos comprados e se cada folha que passava por minha mão fosse referente a um ser vivo eu entendo porque Luciano quase falira. Tentei encontrar o nome de Adla nos registros mas não o achei, o que não foi uma surpresa já que apenas com conhecimento de uma língua africana seria difícil para ela responder um questionário como aquele.

Haviam muitos mais papéis para serem vistos mas logo meus dedos começaram a ficar secos devido ao mofo e meu nariz coçou o suficiente para que desse três espirros. Aquele tipo de papel precisava ser visto em um local arejado, não naquele mausoléu em que eu estava, sendo assim coloquei todos os papéis de volta nas pastas e guardei-as de volta no armário, fazendo uma marcação em minha agenda mental para avisar Enzo na primeira oportunidade.

Continuei minhas buscas mas nada mais chamou minha atenção, também não encontrei nada confortável para sentar e quando o cansaço deu os primeiros sinais busquei um canto e me sentei. Permaneci ali pelo que pareceram cinco eternidades, rodeada por minha própria miséria e com o traseiro assumindo uma forma reta. Não fazia idéia de quanto tempo tinha passado mas foi o suficiente para fazer a pouca iluminação que passava pelas grossas cortinas minguar, o dia estava indo embora e minha sanidade ia com ele. Poucas coisas conseguem levar a pessoa a loucura tão rapidamente quanto o tédio...

O ritual começaria em algumas horas, ou talvez já tivesse começado, sendo assim não demoraria muito para alguém me tirar dali. Vez ou outra eu expandia, apenas para ter certeza que por mais estranho que parecesse, aquele lugar não tinha sequer um átomo de entidades. Eu sei que deveria estar feliz por aquilo mas simplesmente não conseguia... Entidades existiam em todo lugar, eram um fenômeno da natureza tão comum quanto a conversão de gás carbônico em oxigênio pelas plantas. Encontrar um lugar sem entidades era tão natural quanto encontrar um alienígena dentro de casa.

- Porque se preocupar com isso? Em pouco tempo você vai estar longe daqui.

Exatamente! Aquele era um bom pensamento. Pouco importava se haviam ou não entidades por perto, em pouco tempo eu estaria longe daquele lugar e de volta a uma cama king size que me daria todo o conforto que eu merecia. E mais, Enzo já poderia ter dado um jeito em tudo quando o ritual acabasse, Enzo era bom em se livrar de entidades então não seria demais sonhar que eu poderia estar saindo daquele porão de volta à minha casa.

- Mas a cama king size é ótima... Talvez eu pudesse ficar mais um tempo.

Não seria uma má idéia, sem entidades nem qualquer coisa que pudesse colocar minha vida em risco tenho certeza que aquele lugar seria muito agradável, perfeito para as merecidas férias que eu sempre cobrava Enzo e que ele nunca me levava. Enzo estava ficando muito mão de vaca nesses tempo, ele só sabia gastar com aquelas porcarias de jogos e chocolates! Algumas vezes pensava que eu é quem deveria cuidar das finanças, sem dúvida não estaríamos passando pelas dificuldades que passamos e eu não precisaria ter de encarar as tentativas de empregos constrangedoras que aquele maluco vivia tentando me dar.

- E se Enzo sumisse? Se ele sumisse você não teria mais problemas. Há várias formas de se fazer isso, ninguém precisa saber...

É... Podia ser aqui mesmo. Eu poderia sem querer empurrá-lo do segundo andar, ou talvez trancá-lo aqui nesse porão por algumas semanas, ou até usar uma das muitas ferramentas desse lugar para dar um fim rápido e com o mínimo de dor. Mas não precisa ser algo violento, poderia usar o veneno de ratos para fazer a coisa parecer natural. Também poderia usá-lo para dar um fim naquela médium estúpida, no padre maldito, na empregada infernal, no desgraçado anfitrião que me trouxe até...

Engoli seco balançando a cabeça. O que diabos eu estava pensando?

- Você está pensando que já é hora de fazer alguma coisa. Que chega de ficar recebendo ordens de alguém que só se preocupa com o próprio umbigo. Chega de ser um peão, hora de se tornar rainha.

Alguma coisa me envolveu e eu finalmente percebi meu erro...

A entidade ficara tanto tempo ali que havia se mimetizado com o ambiente, se tornando um camaleão tão habilidoso que conseguira se esconder até mesmo de mim e de Giovana. Eu precisava avisá-los! O perigo estava mais próximo do que qualquer um deles poderia imaginar!

Levantei num salto sentindo o mundo ao meu redor se torcer. A entidade era o porão e o porão era ela de modo que eu estava, literalmente, no estômago do inimigo.

O ar ficara rançoso, o chão escorregadio, e quando cheguei aos degraus eles pareciam menores e muito mais difíceis de serem vencidos. Tropecei uma vez caindo de joelhos e sentindo uma pontada que se tornaria um horroroso hematoma. Aquela coisa que me envolvia fazia minha pele pinicar e uma onda de repulsa subiu por minha garganta. Ela era ruim, ruim a ponto de se tornar obscena. Eu tentei repelí-la com uma mão mas acabei só encontrando ar e o gesto brusco fez com que me desequilibrasse e caísse sentada. As luzes piscaram e passaram a piscar, de modo que a intermitência me enjoou. Eu precisa chegar até a porta, precisava sair daquele lugar. Não era mais uma questão de atrapalhar o ritual de Giovana, era uma questão de salvar a minha vida!

Foram cinco tentativas antes de ficar em pé, cinco tentativas que fizeram a coisa me envolver ainda mais. Eu estava entrando num saco plástico e sufocando... Seria uma questão de tempo.

Tempo.

Eu precisava de mais tempo.

Eu precisava bater naquela porta e avisar o Enzo.

Enzo.

Eu precisava chegar ao Enzo...

Eu...

Eu precisava matar o Enzo.

Quando meu corpo chegou até a porta já não era mais eu que estava no controle.

*************

Agradeço novmaente aos que leem, acompanham e comentam (e aos que não comentam também), foi curtinho então posto o próximo capítulo amanhã 31/08!

Gantz
Enviado por Gantz em 30/08/2012
Código do texto: T3856396
Classificação de conteúdo: seguro