O Trote, ou La Merde (Trilogia: Um Estranho à Minha Porta)
Por Ramon Bacelar
Mal Jorge jogou o lixo fora, o telefone tocou novamente. Por uma semana a fio o inoportuno chamado ecoou em seus nervos como um demônio da insistência; e agora, no mesmo horário, mais uma vez, o mesmo silêncio do outro lado da linha.
-Alô... alô! Se não me responder agora faço uma denúncia.
Silêncio.
-Minha bina...
-Não é preciso meu caro – interrompeu uma voz pastosa. – Basta me ouvir... Uma única vez – pausou com um riso. - A morte...
-Não! – bateu o fone.
Mesmo se o identificador de chamadas funcionasse, Jorge não teria coragem. O medo – fiel amigo do Senhora Angústia, primo da solteirona e rabugenta Titia Ansiedade - o acompanhava desde a mais tenra idade.
Ponderou com cenhos franzidos e por fim tomou coragem, porém quando puxou o fone do gancho, a voz não saiu:
-Está com medo Jorge? – “Ele me conhece!”, pensou – Medo do quê se você não me deixou terminar. A morte não...
“De novo não!!”
Correu ao banheiro e se enfiou no box; o rugir do chuveiro não foi suficiente para abafar a insistência do fone: a persistência pulsava como um coração de angústia. Correu ao quarto e destampou os ouvidos. Agora, para sua surpresa, o silêncio da sala tocou-o como um bálsamo revigorante: “Uffaaa!!”
Revigorado pelo banho e repentina quietude, arrastou-se à sala e tirou o fone do gancho: Iria dormir em paz.
***
-Jorge... Jorge? Pô cara, não vai responder? Não? Não mesmo amigão?! Então ouça, ouça... Veja bem, na verdade o que eu queria dizer é que no fundo, lá no fundo... Está me ouvindo?
-Fala logo viado da porra do caralho, e me deixe em paz! Vou te pegar de jeito e arrebentar...
-Opa! Agora não tou mais te conhecendo camarada... É você mesmo, Jorgette Corajosão? – gargalhou. – Só queria te dizer que a morte...
-Não! - acordou suando em bicas: assustado e sonolento.
Sentou-se refletindo profundamente, sem notar que às suas costas, a sombra da conclusão de uma lógica sem remorsos - silenciosamente -, estendia suas garras como um Demônio da Verdade: O Jorge – aquele mucho-macho - só podia existir em sua imaginação: “La mierda? Não. La Merde? Não, claro que não: A merda da merda.”, concluiu melancolicamente de cabeça baixa.
Do outro lado da porta, um ruído estridente obrigou-o a levantar.
“Não pode ser...” – esfregou as pálpebras.
Rastejou para a sala e suspirou aliviado: “Como diria Não-Sei-Quem (Bergman?)... O Silêncio!!”. O sorriso consolidou quando ouviu o som de uma ambulância se perder na rótula do semáforo.
Triiimmm!
-Quê?! – incrédulo, verificou a tomada. - Meu Deus!
Triiimmm!
-Alguém entrou e colocou... – emudeceu.
Triiimmm!
Tentou, tentou, tentou...
Triiimmm!
-D-deus... – tentou. – A-alô?
-Jorge – silêncio. – Jorge? Você sabe, não?
-Sei o quê? – suspirou trêmulo.
-Sabe sim, claro que sabe... Sobre ela; ela... Ora bolas! – disse irritado.
-Ela quem desgraçado!
-Ora-ora – pausou. – Ela-ela – gargalhou. – Família é família, né? Ela... A morte não passa de um alívio!!
Tomado pelo pânico, arrebentou o fone no mármore; sentiu-se ameaçado, mas foi incapaz de reagir quando ouviu outro ruído emanando da porta.
-Q-quem está aí! –tapou a boca e aguardou o pior. – “Sou eu vovozinha, a Chapeuzinho Vermelho, idiota!” - concluiu para si mesmo.
Sua estupidez ainda reverberava quando, do lusco-fusco da janela, a silhueta de um vulto acorcundado manchou a cortina branca como uma sombra gelatinosa.
-O que, que... – tampou os ouvidos – Não, não... – a campainha insistia.
Andava pateticamente como uma galinha ciscando milho, enquanto o vulto - de celular na mão - arremedava-o como sua contraparte sombriática.
<Jorge, Jorge amigão... Você sabe o que é o inferno?> - gritou a sombra do lado de fora.
“Quem é você?!”, engasgou-as em seco.
<O inferno, corajosão...>
-Quê? Quem?!!
<O inferno são os outros Jorge, os outros !!!> – a gargalhada ecoou no recinto como uma procissão de insanidades aladas.
-Não!
Flap, flap, flap : Os risos revoavam-lhe nos nervos como corvos ominosos.
<Sim! Aí, bem Aí!!> - batiam asas furiosamente. - <Onde mais?!> - ria, ria, ria...
Correu ao quarto e agarrou o fone descarregado: a campainha ressoava.
-Merda! – espatifou-o
<E no fim, lá no fim... O alívio, meu caro Jorgette. O inferno do alívio: o alívio do inferno!>
Tampou os ouvidos, mas o estridente bater das asas parecia emanar de dentro pra fora; tentou não gritar: berrou.
-Chega!!
<O Alívio do Alívio!> - flap-flap, flap-flap, flap-flap...
Revoava sobre a cabeça enegrecendo sua paz, sombreando seus sentidos.
-Quem é você!! – a risada gargalhava.
<O inferno é aí!> - ecoava.
-Não, chega!!
Ressoava como uma estridente tempestade de corvos.
< Bem... Aí!> - gralhava, gralhava, gralhava...
-Não, não! Aqui não...aqui... - desmaiou.
***
Jorge despertou do vazio silencioso para o silêncio do vazio: o escuro do seu quarto não confortava, mas por alguma razão sentiu a quietude da noite como um protetor abraço materno. Acendeu as luzes, massageou as têmporas e examinou o corredor antes de ir à sala. Verificou o fone, porta e janelas coçando a cabeça: “Não pode ser.” – bocejou, rindo aos quatro ventos.
“O silêncio!” - saudou o forro carcomido de cupins como se contemplasse um glorioso firmamento estrelado – “Agora...”
Blim-Blom!
“O quê?”, pensou.
– Merda! - gritou.
Blim-Blom!
-Duas vezes merda!!– olhou a porta.
Blim-Blom!
-Três vezes m... De novo não! – suplicou ao teto esburacado. – Não, não, não...
<Sim!! Os outros Jorge; sempre eles, não?>
-Chega!
<Ela, sempre ela: a morte do alívio, e no fim... Surpresa! O alívio da morte; adeus Jorge... Adeus!>
O eco de um baque surdo emanou do umbral, afogando uma última revoada de risos; na janela, só o ranger das dobradiças perturbava a quietude doméstica: Jorge duvidou. Refletiu impulsivamente fingindo não querer, tentando esquecer, mas o silêncio repentino – mais uma vez – consolou-lhe como gotas pacificadoras: plic, ploc, plic, ploc, plic... - suspirou sorridente.
“Ela, ela... ela.”
Verificou a janela e não viu nada; foi à porta.
-Ela, sempre ela Jorge, a outra... O inferno é a outra, outra... Você sabe – apontava o indicador ao próprio peito. - Eu quero lhe ajudar Jorgette Corajosão! – esmurrava-o violentamente. - Eu também sei, sei sim senhor... Pois sou como você e você... Surpresa! - viu-se falando mecanicamente como um boneco sem ventríloquo, fantoche solitário: Não mais sabia se os sons emanavam de dentro pra fora ou de fora pra dentro, mas sabia que no vazio silencioso do seu inconsciente, os risos ainda gralhavam como sentinelas aladas.
“Está acontecendo algo... “– examinou a janela –“... Comigo?”
Empunhou a maçaneta: “Será?”
Aproximou:
“Aquele baque oco no umbral...”
Suspirou:
“O silêncio do silêncio... Claro.”
Suou:
“O alívio do alívio!”
Temeu:
“Ela, ele, eu...”
Tremeu:
-Ela, ela, surpresa: Não!! – gargalhou e tremeu: temeu, suou, suou, suou...
Girou a chave e empurrou a porta, mas antes de descer o umbral, para sua surpresa e profundo alívio, no fundo escuro de uma caixa de sapatos, a rígida e arroxeada língua de sua sogra – Ela! – dava-lhe búúúúúú (!) do abismo da cabeça ensanguentada.
FIM
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