Amálgama Fantasma - Cap 16

XVI

- Isso não está um pouco além do que deveria estar?

Minha pergunta ficou no ar e permaneceu assim por quase um minuto antes de Enzo responder.

- É um método drástico mas é justamente o que precisamos.

- Claro, o método drástico vai ser usado em mim, não é?

- Ora pare de reclamar – Giovana resmungou a meu lado, trajava uma túnica branca que a deixava muito parecida com um membro da Ku Klux Klan – É só para garantirmos que nada venha a te possuir de algum modo e estrague novamente o ritual.

- Ah é? Se você não quer que nada entre então porque está colocando tanta coisa para que eu não saia?!

Estávamos diante do porão onde Enzo e Daniela trabalhavam em duas grossas travas metálicas que reforçariam a porta. Eu não reclamei tanto da idéia assim que soube da mesma, o porão era o único lugar em toda a casa livre de presenças, de modo que me prender dentro dele e encantar a porta de forma que nenhuma entidade pudesse passar não me deixou apenas feliz, mas sim próxima de realizar um sonho que encantava minhas noites desde a infância...

Pela primeira vez eu não ouviria e sentiria nada, e quem sabe conseguiria ter uma noite sem preocupações quanto ao fato de alguma entidade adentrar meus sonhos transformando-os e pesadelos.

Mas minha opinião mudou bruscamente quando Giovana falou sobre os reforços na estrutura, ainda mais quando ela disse que esses reforços só poderiam ser abertos por fora.

- Não sabemos se existe uma entidade forte o bastante para arrebentar um trinco comum – Enzo explicou – e mesmo que entidades não possam possuí-la aí dentro elas poderiam tentar convencê-la a sair.

- Exatamente – A médium concluiu – não quero nem a mínima chance de você sair e estragar tudo de novo.

Novamente bufei ao passo que Giovana se adiantava para reclamar alguma coisa sobre um parafuso que não estava devidamente encaixado, ao mesmo tempo Daniela recuou esfregando a testa com as costas da mão. Eu perdi um bom tempo olhando a mulher e não conseguia deixar de sentir um calafrio por estar em sua presença... Seu sorriso era largo demais, os dentes afiados demais e a íris muito pequena deixando uma quantidade exagerada de branco a mostra em seu olhar.

Como se não bastasse, quando eu menos esperava, a mulher virou para mim me encarando com aquele sorriso doentio. Ela então se inclinou perigosamente e eu tive certeza de que ela me morderia.

- Sabia que eu não tenho medo de fantasmas?

“Claro que não, são eles que têm medo de você”, pensei.

- Você é bem corajosa... – Foi o que saiu da minha boca.

- Eu não sei porque tanta preocupação, o máximo que fantasmas podem fazer é quebrar coisas e convenhamos que muitas coisas nessa casa merecem ser quebradas.

Eu dei um passo para o lado tentando me afastar daquela criatura. Sua voz era áspera como um carpete velho e me dava a mesma aflição que uma unha quebrada. Cheguei a dar o segundo passo quando senti a mão de Daniela segurar meu braço, a governanta colocou o rosto a centímetros do meu.

- Se você estiver com muito medo eu posso ficar lá no porão com você.

Momentaneamente as entidades passaram a ser muito mais graciosas.

- Muito obrigada mas eu consigo passar por isso sozinha...

Se você já encarou o rosto de um drogado vai ter alguma idéia da feição que eu tinha a minha frente e acho que vai entender porque eu comecei a puxar meu braço delicadamente. Também estampei um sorriso falso e tentei me desvencilhar com um puxão, se tivesse surtido efeito eu começaria a correr e se possível nunca mais pararia.

- Parece que está tudo certo. Venha até aqui Talita.

A voz de Enzo foi como mel escorrendo pela garganta de uma virgem e me deu o motivo certo para me livrar de Daniela.

- Já cheguei – disse ainda mantendo meu sorriso e não me atrevendo a olhar para trás, certa de que a criatura que cuidava daquela casa me encarava.

- Entre aí e veja se consegue abrir a porta pelo lado de dentro.

Segui o dedo que Enzo apontava até o sombrio porão e o impasse que senti quase despedaçou meu espírito.

- O que houve? – Giovana perguntou – Vamos, entre logo.

Ainda me mantive estática, pelo menos até uma mão tocar meu ombro me obrigando a virar.

- Se quiser posso entrar com você – Daniela disse bem atrás de mim.

- Estou indo! Podem trancar quando bem entenderem!

E sem mais me atirei escada abaixo tendo apenas o cuidado de ligar o interruptor antes que a porta fosse fechada.

Não era tão ruim quanto parecia. A única lâmpada presente não era muito forte o que me obrigou a um período de adaptação que me deixou com uma certa dor de cabeça. Mas passado esse tempo ouvi batidas na porta e a voz de Enzo chegou abafada aos meus ouvidos.

- E aí? Acha que consegue abrir por dentro?

- Vou tentar, espera!

Puxei e empurrei algumas vezes a passagem e por mais força que aplicasse ela não se movera um único centímetro.

- Impossível! – Gritei depois de uma ombrada mais forte que me deixou parcialmente dolorida – Estou presa aqui dentro!

Ouvi o movimento do outro lado, provavelmente Enzo comunicando o que falei aos demais. Eu esperei por uma resposta enquanto obviamente uma conversa começou, algo ligeiramente acalorado embora as vozes fossem contidas como se não quisessem que eu ouvisse. Senti uma péssima sensação e odeio quando tenho péssimas sensações.

- Ei, já acabaram? – Disse dando três batidas na porta – Se já acabaram podiam me tirar daqui.

A conversa subitamente cessou e por um instante tudo ficou silencioso.

- Ei vocês me ouviram? Qual é, eu sei que me ouviram! Abram a porta!

- Tivemos uma mudança no plano principal Talita – a voz de Enzo chegou abafada até mim.

- Mudança no plano principal? Que besteira você está falando Enzo!? Me tire daqui agora!

- Eu não sei até que ponto os espíritos dessa casa são poderosas mas não podemos arriscar – dessa vez era Giovana quem dizia com a mesma voz muda de Enzo – Por isso é melhor você permanecer aí dentro desde já. Se estivermos lidando com espíritos muito poderosos corremos o risco deles se esconderem aí junto com você antes do ritual começar. Não posso arriscar as coisas dessa forma.

Era uma sorte ninguém estar por perto porque meu queixo caído devia estar verdadeiramente hilário.

Claro que hilário era apenas o meu rosto, por dentro eu poderia comer um ovo cru e fritá-lo antes dele chegar ao estômago.

- Parem com essa palhaçada e me tire daqui agora! – Gritei dando um chute na porta que fez meus dedos doerem por dentro do calçado – Enzo, você sabe que isso é uma estupidez! Se evitar que as entidades entrassem aqui fosse um plano esse plano já falhou, todas as entidades poderiam ter entrado enquanto você fazia os preparativos!

- Aí é que você se engana – a voz de Giovana respondeu – Eu já me encarreguei de um ritual básico enquanto as trincas eram postas, por isso pode ter certeza que o que pertence a esse cômodo ficará aí dentro e o que não pertence ficará aqui fora pelo tempo que essa porta permanecer fechada.

Eu ainda tentava acreditar no que estava acontecendo.

- Vocês estão me dizendo que eu estou proibida de sair?!

- Pedi para Daniela colocar uma refeição aí dentro, está numa embalagem térmica então deve conservar o calor até de noite – Enzo comunicou.

Abri e fechei a boca diversas vezes sentindo o sangue não apenas ferver mas sim se desintegrar em minhas veias.

- Enzo Velasquez! – Comecei com os punhos fechados ao lado do corpo – É bom você abrir essa porta agora! Se não abrir é bom estar preparado para me deixar aqui para sempre ou quando eu sair vou matar você e essa branquela pseudo-médium!

Esperei o trinco se abrir ou pelo alguém me mandar uma resposta mal-educada, entretanto o silêncio foi a única coisa que se seguiu, me enlouquecendo a ponto de fazer eu esmurrar a porta com tanta intensidade que se não fossem os novos adereços ela teria ido ao chão.

- O que está esperando?!

Houve um sussurro mas eu não entendi.

- O que você disse?

- Ele disse que está pensando – Giovana respondeu com um tom divertido.

Não sabia se era ela ou Enzo que eu tinha mais vontade de esganar.

- Enzo!

- Vai ser só por algumas horas – A voz de Enzo voltou a dizer e eu senti o nervosismo vindo dela, acusando que Giovana não havia mentido em seu comentário – Prometo que assim que terminarmos o ritual eu abro para você.

- Não me venha com esse papo furado! Eu não um animal para ficar preso aqui!

- Lamento Talita mas é a melhor chance que temos. Não se preocupe, vai passar rápido, senhor Basílio me disse que não mexem nesse porão há um bom tempo, porque não dá uma olhada nele? De repente você acha alguma coisa interessante.

Eu dei uma rápida olhada para trás notando um ancinho que seria muito interessante para enfiar pela goela daquele mala, mas então me dei conta que um porão abandonado a muito tempo poderia conter, além de objetos velhos, coisas como ratos, aranhas, baratas e qualquer outra sorte de criaturas que apesar de menos perigosas que entidades eram muito mais assustadoras.

Ciente de que a fúria não me tiraria dali respirei fundo apelando para outra tática.

- Eeeeenzoooo... Não me deixe aqui... Esse lugar me dá arrepios...

- Não há nada aí além do seu próprio medo – ele respondeu insensível – Você mesmo disse que esse lugar estava limpo.

Podia ser, mas quem disse que eu era valente a ponto de lidar com meus próprios medos?

- Isso não importa Eeeeenzooooo... Me tire daqui por favor...

- Vou falar com Giovana e acelerar essa cerimônia para que você possa sair logo. Enquanto isso tente aproveitar. Nos vemos de noite.

E sem mais ouvi os três pares de passos se afastando e definitivamente me abandonando naquela condição.

Por um momento fiquei sem saber o que fazer. Eu havia sido enganada e trancada e nem me enfurecer nem me fazer de coitada foram suficientes para me libertar. Bufei desconsolada dando um último chute na porta antes de descer as escadas rumo ao porão.

Encontrei a marmita mencionada em cima de um balcão, uma pequena caixa de isopor que ocultava uma versão menor do glorioso almoço que tive ainda há pouco. O cheiro fez meu estômago roncar de novo apesar de satisfeito e eu decidi fechar aquela embalagem ou a gula me deixaria com sérios problemas. Encontrei duas garrafas de água nas proximidades e somente por vê-las a sede queimou minha garganta obrigando-me a algumas goladas.

Outra coisa que me chamou a atenção foram as pequenas porém grossas cortinas que haviam sido fechadas de modo a impedir qualquer iluminação exterior vinda das janelinhas. Imaginando que um pouco de luz exterior seria bom para afugentar meu medo, subi com certo cuidado em uma das bancadas e empurrei parte da cortina para o lado.

Não foi a minha melhor idéia.

- Olá! Pensei que poderia estar sozinha e que iria querer conversar.

O rosto de Daniela estava colado ao vidro ressaltando seu olhos escuros em sua face de leite, era como se ela tivesse esperado a vida inteira ali até que eu abrisse a cortina.

- Desculpe mas preciso ficar incomunicável. – Respondi com um sorriso falso e sem a menor delicadeza fechei a cortina voltando ao chão.

Sem me arriscar a voltar a ver a luz do dia e indisposta a morrer de tédio ali, comecei a vasculhar o local em busca de algo para ocupar minha mente. Comecei com uma lista das minhas possíveis necessidades e logo achar água corrente e alguma coisa macia para repousar encabeçaram o topo dela.

A primeira foi fácil, numa passagem estreita escondida por algumas madeiras que poderiam ter pertencido a Yggdrasil, encontrei os restos de um lavabo simples, sem janelas e com uma lâmpada empoeirada. Piso e azulejos eram de um azul desbotado e com manchas de bolor nada saudáveis, um contraste a riqueza dos andares superiores. Pia e sanitário também estavam manchados mas ainda tinham água corrente em seus encanamentos. Mesmo que não com a melhor coloração do mundo, o líquido me deixou muito mais aliviada.

Faltava agora um lugar para repousar e mal comecei as buscas quando tive o pressentimento que não encontraria nada. Ali era uma típica oficina de subúrbio, com gabinetes, armários, ferramentas e lixo, lugares assim pareciam ter uma regra de proibir que qualquer coisa macia entrasse em seus domínios.

Ainda assim me esforcei nas buscas, passando a remexer o local com a idéia de que não precisaria de nada macio para descansar se conseguisse me manter ocupada. Encontrei latas de óleo, de graxa e de veneno para pragas, muitas teias de aranha que felizmente haviam sido abandonadas e uma quantidade exorbitante de ferrugem que envolvia todo e qualquer objeto metálico. Abri um outro armário e encontrei uma pilha de pastas que se mostraram documentos antigos. Enzo sempre latiu sobre a importância de coisas como aquela, em como alguns dos seus grandes mistérios só puderam ser desvendados porque ele dedicara tempo ao estudo de documentos. Eu era uma boa assistente e com o tempo de sobra fiz a coisa mais sensata que poderia ter feito.

Abri a primeira das pastas encontrando uma folha de papel tão amarelada quanto o Sol desenhado por uma criança. As letras tinham mais curvas do que deveriam tornando a compreensão do texto difícil. Após algumas tentativas percebi estar lidando com um documento de posse da casa e o nome de seu dono não poderia ter feito meus cabelos se arrepiarem mais...

Luciano Brião Lacerda.

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Agradeço a todos que estejam acompanhado (já ficou repetitivo falar isso, vou pensar em uma coisa diferente no próximo conto, prometo...), continua quinta 30/08

Gantz
Enviado por Gantz em 28/08/2012
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