PARA HELENA, COM AMOR
Ás 7h46, do dia 8 de junho de 1972, entre as estações de Suzano e Jundiapéba, a composição ferroviária de prefixo UPE-2, conhecida como Trem dos Estudantes, que vinha da Estação Roosevelt (Estação do Brás) em direção à Mogi das Cruzes, chocou-se violentamente com outra composição, a locomotiva Diesel SP-2. Nesse acidente morreram no ato17 pessoas, entre as quais 14 estudantes e os condutores do Diesel SP-2, composta por dois maquinistas e um guarda de trem. Mais sete morreriam depois. Sessenta e seis pessoas ficaram feridas nesse acidente, considerado um dos mais graves já ocorridos na rede ferroviária do Brasil.
***
Quarenta anos, para algumas pessoas pode ser uma vida inteira. Afinal algumas nem chegavam a viver tanto. Era o que pensava o Dr. Carlos quando subiu naquele trem, na Estação dos Estudantes, em Mogi das Cruzes, para voltar para sua casa, em São Paulo. Depois de quarenta anos ele estava subindo de novo num trem, e ironicamente, fora para assistir ao funeral do filho de um de seus melhores amigos, um rapaz de trinta e seis anos, que morrera de enfarto na noite anterior.
Trinta e seis anos. Como pode alguém morrer com trinta e seis anos? Pensava o Dr. Carlos, enquanto olhava a desconfortável paisagem do trecho que o trem percorria entre as estações de Bráz Cubas e Jundiapéba. A impressão é que nada mudara. As mesmas casas antigas, á beira da linha, com suas paredes descascadas, os velhos barracões das fábricas desmobilizadas, o mesmo cheiro de coisa antiga e apodrecida, que sempre lhe batera nas narinas, quando atravessava aquele trecho.
O trem, esse sim, mudara um pouco. Não era mais aquela lata de sardinha fedorenta e desconjuntada, que saia rangendo pelos trilhos e levava quase duas horas para fazer o trajeto entre o bairro do Brás e Mogi das Cruzes, onde ficava a faculdade em que ele se matriculara para estudar Direito. Agora havia um trem mais arrumadinho. Nada de excepcional, mas pelo menos era limpo. E as portas não ficavam abertas como aquele velho trem que ele costumava pegar em 1972.
Aquilo era uma verdadeira loucura. O trem já saia cheio da Estação do Brás.E pelo caminho ia pegando mais gente. Era raro o dia em que encontrava um lugar para sentar. Todo dia, milhares de estudantes barulhentos e milhares de operários suados disputando encarniçadamente cada milímetro dentro do vagão. Gente que não conseguia lugar dentro dos carros e acabava se pendurando nas portas e nas janelas, fazendo com que o trem parecesse uma diabólica árvore de natal ambulante.
Coisa horrível aquela. Não era raro alguém cair nos trilhos e morrer. Presenciara pelo menos uns três casos assim. Esses acidentes eram tão banais que não davam mais que uma notinha nas páginas internas do “Notícias Populares”.
Agora a coisa estava melhor. Era mais fácil encontrar um assento para o trecho todo. O Trem dos Estudantes era quase um metrô. Ia até Guaianazes e de lá se fazia uma baldeação, pegando outro trem até Mogi, ou na volta, para a Estação da Luz, em São Paulo. Embora estivesse sempre lotado, não era mais aquela loucura de quarenta anos atrás, quando as pessoas, em cada estação, invadiam os vagões como se fosse uma boiada estourada.
Há quarenta anos atrás, ele se lembrava bem, era mais tranqüilo voltar para São Paulo naquele trem.Ele, que morava na Moóca, costumava pegá-lo as 6,h 45 da manhã, todos os dias na Estação do Brás, para vir à faculdade. Estudava Direito na Faculdade Brás Cubas, em Mogi. Usara aquele trem durante três anos, até o dia do acidente. Depois disso nunca mais subira em um.
Era um trem que levava praticamente só estudantes. Muita brincadeira, muita algazarra, muita alegria. Sempre aquela farra, da qual ele não participava muito. Afinal ele tinha Helena. Era muito mais gostoso ficar namorando com ela no trem do que fazendo bagunça com aqueles caras.
Aquela hora não era de pico. Ele estava viajando num trem quase vazio. Eram cerca de onze horas da noite. A maioria dos estudantes já havia descido nas estações anteriores. Muita coisa mudara. As faculdades de Mogi já não atraiam tanta gente da capital. A maioria morava nos bairros da Zona Leste. Carlos estava cansado e triste. Como alguém pode morrer aos trinta e seis anos? Não podia esquecer do semblante triste do amigo e do desespero da esposa dele. Não era uma coisa normal os pais enterrarem um filho. O contrário ainda podia ser suportável porque era lógico. É comum as crostas mais antigas da vida caírem para ceder lugar ás mais novas.
A vida é como casca de árvore, pensou o Dr. Carlos, enquanto o trem avançava pelos trilhos da velha Central do Brasil, que agora se chamava CPTM. Quanta mudança ele percebia agora! Novas avenidas, novos viadutos, praças, edifícios, fábricas. Passara muitas vezes, de carro, por aquelas bandas. Jamais imaginara o quanto aquela paisagem mudara nesses últimos quarenta anos. Antes sabia de cor o nome das estações. Jundiapéba, Suzano, Calmon Viana, Ferraz de Vasconcelos, Engenheiro Gualberto, Vila Matilde, Carlos de Campos...Agora havia vários nomes diferentes. Algumas estações mudaram de nome ou de lugar, ele não sabia precisar. Mas a sensação de feiúra e desconforto parecia não ter mudado. As casa continuavam feias e tristes. Veio-lhe à cabeça trechos da canção do Chico Buarque: “Igual a tudo, Quando eu passo no subúrbio, Eu muito bem, Vindo de trem de algum lugar, E aí me dá, Como uma inveja dessa gente, Que vai em frente, Sem nem ter com quem contar...”
Era isso mesmo, pensou o Dr. Carlos, enquanto bocejava. Quarenta anos se passara e essa gente continuava sem ter com quem contar. Nem com ele, que se formara com aquele ideal, aquele sentimento de que deveria usar seu diploma para tentar melhorar o mundo. Foi isso que dissera no seu discurso como orador da turma. Quanta bobagem. Idealismo de garoto sentimental. Fora aquela maldita ditadura militar que inspirara aquelas bobagens. Depois, a luta pela vida fizera dele outra coisa. Tornara-se um animal competitivo que aprendera a sobreviver naquela selva de pedra cujos subúrbios ele agora atravessava naquele trem sacolejante, com suas rodas batendo contra os trilhos, gerando uma percussão intermitente e monótona, que parecia um mantra, ou uma canção de ninar. Dava sono. Bocejou mais umas duas ou três vezes.
A paisagem, ao longo dos trilhos, sem dúvida, havia mudado muito. Era noite, estava escuro e lá fora a visão não era muito nítida. Mas ele se lembrava que há quarenta anos atrás ali, exatamente naquele trecho que o trem estava atravessando, só haviam algumas fábricas. Era talvez o trecho mais longo entre uma estação e outra. Pelas suas contas o trem deveria estar entre as estações de Jundiapéba e Suzano. O cheiro da fumaça que saia daquela fábrica de papel ainda era inconfundível. Riu inconscientemente. Lembrou-se que seus colegas diziam que aquele cheiro era de mil pessoas peidando ao mesmo tempo.
Olhou pela janela. Lá fora estava claro. Eram exatamente 7h46 da manhã. Helena estava dormindo no ombro dele. Olhou com ternura para os lábios dela. Parecia uma rosa com suas pétalas entreabertas, aguardando um beijo. Beijou-a com volúpia e sofreguidão. Ela acordou e correspondeu ao beijo. Deu-lhe um abraço apertado no qual ele sentiu por inteiro o corpo dela colado ao seu, como se quisesse soldá-los juntos para a eternidade. Sentiu o gosto do beijo, o calor do corpo dela, a textura macia dos cabelos negros que escorriam pelas suas mãos.
Helena. Bateu uma saudade incrível dela. Já se passara quarenta anos, mas era como se fosse agora. Tinha em sua mente uma imagem nítida dela. E de todos os seus colegas de faculdade naquela noite. Olhou em volta. O vagão já não parecia o mesmo em que entrara na Estação dos Estudantes. Muito estranho. Ouviu o som monótono das rodas batendo nos trilhos. Ouviu a algazarra dos estudantes. Gente que gritava, que contava piada, que jogava truco. Sentiu a golfada do vento frio que entrava pelas portas abertas e pelas janelas quebradas a pedradas. Viu as mesmas garatujas e obscenidades rabiscadas nas paredes. E lá estavam os seus colegas de faculdade e trem. O “Turcão” Muhamed, o Aderbal, o Zé Roberto, o Douglas, o Edson, a Leonor com sua inseparável revista de moda... Meu Deus! Murmurou Carlos! Parece até que estou fazendo uma viagem no tempo!
Mas como podia ser isso? No entanto, era verdade. Helena estava ali outra vez, nos seus braços, ele sentindo o gosto dos lábios dela, a textura macia dos seus cabelos, o calor do seu corpo. Em suas mãos ele viu, com prazer, o Neruda que ele lhe dera de presente naquele dia. Era o dia do aniversário dela. Eles haviam começado a ler juntos no trem aquela confissão de amor que o grande poeta fizera a sua musa Matilde Urrutia. Cem Sonetos de Amor. Lembrou-se instantâneamente de um deles. Era um soneto triste. Mas sempre fora o seu preferido.
“Trouxe o amor sua cauda de dores/ seu longo raio estático de espinhos/ e fechamos os olhos porque nada/para que nenhuma ferida nos separe. Não é culpa dos teus olhos esse pranto/ tuas mãos não cravaram esta espada;/não buscaram teus pés este caminho/ chegou ao teu coração o mel sombrio. Quando o amor, como uma imensa onda/nos estrelou contra a pedra dura/nos amassou como a uma só farinha/ caiu a dor sobre outro doce rosto/e assim na luz da estação aberta/ se consagrou a primavera ferida.
De repente um tranco violento, como se o vagão tivesse sido atingido por um míssil. Pedaços de ferro, madeira e plástico retorcidos desabaram em cima deles como se uma mão poderosa tivesse pego o vagão e esmagado como se ele fosse uma lata de cerveja vazia. Pessoas voaram para cima deles. Sentiu-se sufocado como se uma prensa tivesse descarregado o peso do seu estampo sobre o peito dele. Mal conseguia respirar. Sentiu o gosto do sangue na boca. Afastou de si, com grande dor e dificuldade, os pedaços de madeira e ferro que o cobriam. Empurrou um rapaz e uma moça que haviam caído em cima dele. A moça gemia e mal respirava, soltando golfadas de sangue pela boca. O rapaz não se movia.
Helena. Onde estava Helena? Tateou, em meios aos ferros retorcidos, os escombros mistos de sangue e carne dilacerada, sem se importar com os gemidos abafados que ouvia de todos os lados. Afastou, como pode, os corpos, os pedaços de madeira, as mochilas, os livros, cadernos e outros materiais de estudante que jaziam em meio a aquele inferno onde só a morte e a dor tinham consolo. Bem lá no canto do carro, prensada entre um banco todo arrebentado e uma das paredes do vagão estava Helena.
Ele nunca esquecera aquela visão de Helena, esmagada entre as ferragens, uma massa de carne dilacerada, seus negros e lindos cabelos transformados numa pasta sangrenta e sem brilho. Seu rosto destruído, seus olhos brilhantes desfocados e sem brilho. Entre seus braços, como se estivesse segurando um bebê para protegê-lo, o Neruda todo rasgado.
Depois disso desmaiara, mais pela dor da visão do que pelos ferimentos que sofrera. Acordara três dias depois num hospital, com seis costelas quebradas e um pulmão perfurado. Mas estava vivo. Quatorze colegas seus, no entanto, não tiveram a mesma sorte. Uma delas foi Helena. Tinha apenas vinte anos. Como alguém pode morrer aos vintes anos?
Fora um breve momento. A noite cansativa e o funeral do filho do amigo o deixara numa terrível prostração neurológica. Pensou que o vagão fantasmagórico, com aquelas sombras a dançar nas janelas, e as lembranças de uma experiência angustiante arrefecera todas suas defesas. Cochilara. Por escassos segundos, talvez. Não mais que isso, mas fora o suficiente para viver tudo outra vez. E assim foi o resto da viagem. Com a consciência oscilando entre momentos de sono e vigília, ele reviveu todos aqueles momentos de novo. Eram memórias enterradas no subconsciente. Nada mais que memórias, pensou, que retornavam na forma de sonhos, visões e sensibilidades que a mente guardava na mais funda das suas camadas. Quarenta anos haviam se passado.
O trem chegou a Guianazes e ele desceu. Seus olhos estavam úmidos e embaçados pelas lágrimas que não pode evitar. Talvez por isso ele não viu, no banco em que estava sentado, um livro velho e amarrotado, como se tivesse sido vítima de algum acidente. Era um exemplar dos Cem Sonetos de Amor, de Pablo Neruda. Rasgado, amarelado e coberto com manchas que pareciam ser de sangue, o livro tinha uma dedicatória na primeira folha: “ Para Helena, com amor, no dia do seu aniversário. Mogi das Cruzes, 8 de junho de 1972.”
Ás 7h46, do dia 8 de junho de 1972, entre as estações de Suzano e Jundiapéba, a composição ferroviária de prefixo UPE-2, conhecida como Trem dos Estudantes, que vinha da Estação Roosevelt (Estação do Brás) em direção à Mogi das Cruzes, chocou-se violentamente com outra composição, a locomotiva Diesel SP-2. Nesse acidente morreram no ato17 pessoas, entre as quais 14 estudantes e os condutores do Diesel SP-2, composta por dois maquinistas e um guarda de trem. Mais sete morreriam depois. Sessenta e seis pessoas ficaram feridas nesse acidente, considerado um dos mais graves já ocorridos na rede ferroviária do Brasil.
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Quarenta anos, para algumas pessoas pode ser uma vida inteira. Afinal algumas nem chegavam a viver tanto. Era o que pensava o Dr. Carlos quando subiu naquele trem, na Estação dos Estudantes, em Mogi das Cruzes, para voltar para sua casa, em São Paulo. Depois de quarenta anos ele estava subindo de novo num trem, e ironicamente, fora para assistir ao funeral do filho de um de seus melhores amigos, um rapaz de trinta e seis anos, que morrera de enfarto na noite anterior.
Trinta e seis anos. Como pode alguém morrer com trinta e seis anos? Pensava o Dr. Carlos, enquanto olhava a desconfortável paisagem do trecho que o trem percorria entre as estações de Bráz Cubas e Jundiapéba. A impressão é que nada mudara. As mesmas casas antigas, á beira da linha, com suas paredes descascadas, os velhos barracões das fábricas desmobilizadas, o mesmo cheiro de coisa antiga e apodrecida, que sempre lhe batera nas narinas, quando atravessava aquele trecho.
O trem, esse sim, mudara um pouco. Não era mais aquela lata de sardinha fedorenta e desconjuntada, que saia rangendo pelos trilhos e levava quase duas horas para fazer o trajeto entre o bairro do Brás e Mogi das Cruzes, onde ficava a faculdade em que ele se matriculara para estudar Direito. Agora havia um trem mais arrumadinho. Nada de excepcional, mas pelo menos era limpo. E as portas não ficavam abertas como aquele velho trem que ele costumava pegar em 1972.
Aquilo era uma verdadeira loucura. O trem já saia cheio da Estação do Brás.E pelo caminho ia pegando mais gente. Era raro o dia em que encontrava um lugar para sentar. Todo dia, milhares de estudantes barulhentos e milhares de operários suados disputando encarniçadamente cada milímetro dentro do vagão. Gente que não conseguia lugar dentro dos carros e acabava se pendurando nas portas e nas janelas, fazendo com que o trem parecesse uma diabólica árvore de natal ambulante.
Coisa horrível aquela. Não era raro alguém cair nos trilhos e morrer. Presenciara pelo menos uns três casos assim. Esses acidentes eram tão banais que não davam mais que uma notinha nas páginas internas do “Notícias Populares”.
Agora a coisa estava melhor. Era mais fácil encontrar um assento para o trecho todo. O Trem dos Estudantes era quase um metrô. Ia até Guaianazes e de lá se fazia uma baldeação, pegando outro trem até Mogi, ou na volta, para a Estação da Luz, em São Paulo. Embora estivesse sempre lotado, não era mais aquela loucura de quarenta anos atrás, quando as pessoas, em cada estação, invadiam os vagões como se fosse uma boiada estourada.
Há quarenta anos atrás, ele se lembrava bem, era mais tranqüilo voltar para São Paulo naquele trem.Ele, que morava na Moóca, costumava pegá-lo as 6,h 45 da manhã, todos os dias na Estação do Brás, para vir à faculdade. Estudava Direito na Faculdade Brás Cubas, em Mogi. Usara aquele trem durante três anos, até o dia do acidente. Depois disso nunca mais subira em um.
Era um trem que levava praticamente só estudantes. Muita brincadeira, muita algazarra, muita alegria. Sempre aquela farra, da qual ele não participava muito. Afinal ele tinha Helena. Era muito mais gostoso ficar namorando com ela no trem do que fazendo bagunça com aqueles caras.
Aquela hora não era de pico. Ele estava viajando num trem quase vazio. Eram cerca de onze horas da noite. A maioria dos estudantes já havia descido nas estações anteriores. Muita coisa mudara. As faculdades de Mogi já não atraiam tanta gente da capital. A maioria morava nos bairros da Zona Leste. Carlos estava cansado e triste. Como alguém pode morrer aos trinta e seis anos? Não podia esquecer do semblante triste do amigo e do desespero da esposa dele. Não era uma coisa normal os pais enterrarem um filho. O contrário ainda podia ser suportável porque era lógico. É comum as crostas mais antigas da vida caírem para ceder lugar ás mais novas.
A vida é como casca de árvore, pensou o Dr. Carlos, enquanto o trem avançava pelos trilhos da velha Central do Brasil, que agora se chamava CPTM. Quanta mudança ele percebia agora! Novas avenidas, novos viadutos, praças, edifícios, fábricas. Passara muitas vezes, de carro, por aquelas bandas. Jamais imaginara o quanto aquela paisagem mudara nesses últimos quarenta anos. Antes sabia de cor o nome das estações. Jundiapéba, Suzano, Calmon Viana, Ferraz de Vasconcelos, Engenheiro Gualberto, Vila Matilde, Carlos de Campos...Agora havia vários nomes diferentes. Algumas estações mudaram de nome ou de lugar, ele não sabia precisar. Mas a sensação de feiúra e desconforto parecia não ter mudado. As casa continuavam feias e tristes. Veio-lhe à cabeça trechos da canção do Chico Buarque: “Igual a tudo, Quando eu passo no subúrbio, Eu muito bem, Vindo de trem de algum lugar, E aí me dá, Como uma inveja dessa gente, Que vai em frente, Sem nem ter com quem contar...”
Era isso mesmo, pensou o Dr. Carlos, enquanto bocejava. Quarenta anos se passara e essa gente continuava sem ter com quem contar. Nem com ele, que se formara com aquele ideal, aquele sentimento de que deveria usar seu diploma para tentar melhorar o mundo. Foi isso que dissera no seu discurso como orador da turma. Quanta bobagem. Idealismo de garoto sentimental. Fora aquela maldita ditadura militar que inspirara aquelas bobagens. Depois, a luta pela vida fizera dele outra coisa. Tornara-se um animal competitivo que aprendera a sobreviver naquela selva de pedra cujos subúrbios ele agora atravessava naquele trem sacolejante, com suas rodas batendo contra os trilhos, gerando uma percussão intermitente e monótona, que parecia um mantra, ou uma canção de ninar. Dava sono. Bocejou mais umas duas ou três vezes.
A paisagem, ao longo dos trilhos, sem dúvida, havia mudado muito. Era noite, estava escuro e lá fora a visão não era muito nítida. Mas ele se lembrava que há quarenta anos atrás ali, exatamente naquele trecho que o trem estava atravessando, só haviam algumas fábricas. Era talvez o trecho mais longo entre uma estação e outra. Pelas suas contas o trem deveria estar entre as estações de Jundiapéba e Suzano. O cheiro da fumaça que saia daquela fábrica de papel ainda era inconfundível. Riu inconscientemente. Lembrou-se que seus colegas diziam que aquele cheiro era de mil pessoas peidando ao mesmo tempo.
Olhou pela janela. Lá fora estava claro. Eram exatamente 7h46 da manhã. Helena estava dormindo no ombro dele. Olhou com ternura para os lábios dela. Parecia uma rosa com suas pétalas entreabertas, aguardando um beijo. Beijou-a com volúpia e sofreguidão. Ela acordou e correspondeu ao beijo. Deu-lhe um abraço apertado no qual ele sentiu por inteiro o corpo dela colado ao seu, como se quisesse soldá-los juntos para a eternidade. Sentiu o gosto do beijo, o calor do corpo dela, a textura macia dos cabelos negros que escorriam pelas suas mãos.
Helena. Bateu uma saudade incrível dela. Já se passara quarenta anos, mas era como se fosse agora. Tinha em sua mente uma imagem nítida dela. E de todos os seus colegas de faculdade naquela noite. Olhou em volta. O vagão já não parecia o mesmo em que entrara na Estação dos Estudantes. Muito estranho. Ouviu o som monótono das rodas batendo nos trilhos. Ouviu a algazarra dos estudantes. Gente que gritava, que contava piada, que jogava truco. Sentiu a golfada do vento frio que entrava pelas portas abertas e pelas janelas quebradas a pedradas. Viu as mesmas garatujas e obscenidades rabiscadas nas paredes. E lá estavam os seus colegas de faculdade e trem. O “Turcão” Muhamed, o Aderbal, o Zé Roberto, o Douglas, o Edson, a Leonor com sua inseparável revista de moda... Meu Deus! Murmurou Carlos! Parece até que estou fazendo uma viagem no tempo!
Mas como podia ser isso? No entanto, era verdade. Helena estava ali outra vez, nos seus braços, ele sentindo o gosto dos lábios dela, a textura macia dos seus cabelos, o calor do seu corpo. Em suas mãos ele viu, com prazer, o Neruda que ele lhe dera de presente naquele dia. Era o dia do aniversário dela. Eles haviam começado a ler juntos no trem aquela confissão de amor que o grande poeta fizera a sua musa Matilde Urrutia. Cem Sonetos de Amor. Lembrou-se instantâneamente de um deles. Era um soneto triste. Mas sempre fora o seu preferido.
“Trouxe o amor sua cauda de dores/ seu longo raio estático de espinhos/ e fechamos os olhos porque nada/para que nenhuma ferida nos separe. Não é culpa dos teus olhos esse pranto/ tuas mãos não cravaram esta espada;/não buscaram teus pés este caminho/ chegou ao teu coração o mel sombrio. Quando o amor, como uma imensa onda/nos estrelou contra a pedra dura/nos amassou como a uma só farinha/ caiu a dor sobre outro doce rosto/e assim na luz da estação aberta/ se consagrou a primavera ferida.
De repente um tranco violento, como se o vagão tivesse sido atingido por um míssil. Pedaços de ferro, madeira e plástico retorcidos desabaram em cima deles como se uma mão poderosa tivesse pego o vagão e esmagado como se ele fosse uma lata de cerveja vazia. Pessoas voaram para cima deles. Sentiu-se sufocado como se uma prensa tivesse descarregado o peso do seu estampo sobre o peito dele. Mal conseguia respirar. Sentiu o gosto do sangue na boca. Afastou de si, com grande dor e dificuldade, os pedaços de madeira e ferro que o cobriam. Empurrou um rapaz e uma moça que haviam caído em cima dele. A moça gemia e mal respirava, soltando golfadas de sangue pela boca. O rapaz não se movia.
Helena. Onde estava Helena? Tateou, em meios aos ferros retorcidos, os escombros mistos de sangue e carne dilacerada, sem se importar com os gemidos abafados que ouvia de todos os lados. Afastou, como pode, os corpos, os pedaços de madeira, as mochilas, os livros, cadernos e outros materiais de estudante que jaziam em meio a aquele inferno onde só a morte e a dor tinham consolo. Bem lá no canto do carro, prensada entre um banco todo arrebentado e uma das paredes do vagão estava Helena.
Ele nunca esquecera aquela visão de Helena, esmagada entre as ferragens, uma massa de carne dilacerada, seus negros e lindos cabelos transformados numa pasta sangrenta e sem brilho. Seu rosto destruído, seus olhos brilhantes desfocados e sem brilho. Entre seus braços, como se estivesse segurando um bebê para protegê-lo, o Neruda todo rasgado.
Depois disso desmaiara, mais pela dor da visão do que pelos ferimentos que sofrera. Acordara três dias depois num hospital, com seis costelas quebradas e um pulmão perfurado. Mas estava vivo. Quatorze colegas seus, no entanto, não tiveram a mesma sorte. Uma delas foi Helena. Tinha apenas vinte anos. Como alguém pode morrer aos vintes anos?
Fora um breve momento. A noite cansativa e o funeral do filho do amigo o deixara numa terrível prostração neurológica. Pensou que o vagão fantasmagórico, com aquelas sombras a dançar nas janelas, e as lembranças de uma experiência angustiante arrefecera todas suas defesas. Cochilara. Por escassos segundos, talvez. Não mais que isso, mas fora o suficiente para viver tudo outra vez. E assim foi o resto da viagem. Com a consciência oscilando entre momentos de sono e vigília, ele reviveu todos aqueles momentos de novo. Eram memórias enterradas no subconsciente. Nada mais que memórias, pensou, que retornavam na forma de sonhos, visões e sensibilidades que a mente guardava na mais funda das suas camadas. Quarenta anos haviam se passado.
O trem chegou a Guianazes e ele desceu. Seus olhos estavam úmidos e embaçados pelas lágrimas que não pode evitar. Talvez por isso ele não viu, no banco em que estava sentado, um livro velho e amarrotado, como se tivesse sido vítima de algum acidente. Era um exemplar dos Cem Sonetos de Amor, de Pablo Neruda. Rasgado, amarelado e coberto com manchas que pareciam ser de sangue, o livro tinha uma dedicatória na primeira folha: “ Para Helena, com amor, no dia do seu aniversário. Mogi das Cruzes, 8 de junho de 1972.”