Amálgama Fantasma - Cap 14 e 15

XIV

Não foi tão ruim desta vez porque padre Sávio voltou a se oferecer para o trabalho e Enzo não recusou novamente a oferta por mim, de modo que a única coisa que precisei fazer foi ficar de braços cruzados entre Giovana e Basílio enquanto Enzo e Sávio suavam ao profanar as sepulturas que existiam nos fundos da casa.

Dois buracos se aprofundavam lentamente, fazendo crescer dois consideráveis montes de terra na mesma proporção. Os supostos túmulos de Adla e seu filho estavam sendo abertos embora nós tivéssemos certeza de que ao menos uma das covas estaria vazia.

- Isso é cada vez mais intrigante... – Giovana começou pensando alto – Seria possível alguém ter enterrado o corpo errado? É o único motivo que consigo ver para o nome de Adla estar nessa cova.

- Talvez não tenham achado os corpos e deram uma espécie de enterro simbólico. – Senhor Basílio arriscou.

- Hmmm... O senhor saberia dizer quando aquela estufa foi construída?

Senhor Basílio enrugou a testa.

- A casa não tem nenhum registro do tipo – nosso anfitrião disse após puxar a informação da memória – Mas pelo tipo de construção deve ser algo recente...

- Talvez seja algum tipo de maldição. Colocaram o nome de Adla nessa lápide e enterraram seu corpo na estufa com algum rito profano, talvez com a idéia de que ela não pudesse descansar – teorizei e mesmo a contra gosto Giovana concordou.

Mas uma coisa me incomodava em tudo aquilo... E eu virei para vê-la...

O caixão com corpo mumificado de Adla permanecia próximo a nós e eu não conseguia entender porque diabos Enzo insistira em trazer aquele trambolho para ficar cozinhando sobre o Sol. Podíamos muito bem ter sido poupados daquela presença macabra mas seria demais esperar que Enzo compreendesse os sentimentos de pessoas normais.

Ficamos por mais meia hora observando o trabalho dos dois homens, até que finalmente padre Sávio largou a pá e se inclinou alongando as costas que estalaram perigosamente. O homem só tinha o pescoço acima do nível do solo o que o fizera chegar a uma conclusão.

- Acho que não é nem questão das covas estarem vazias, acho que nunca existiram covas... Devemos estar sendo as primeiras pessoas a cavarem a terra nessa região meu caro Enzo.

Enzo também largou o trabalho limpando uma testa marcada por suor.

- Terei que concordar com o senhor padre... E isso sem dúvida aumenta o mistério que devemos desvendar.

- Bom, então haverá muito o que discutirmos – Giovana começou – mas primeiro temos que decidir o que fazer com isso aqui.

Com um dedo em riste ela apontava os restos de Adla ali perto.

- Todas as almas merecem descanso... É nosso dever dar paz a essa pobre pecadora. – Padre Sávio disse absoluto.

E lá íamos nós de novo. Padre Sávio posicionou o defunto de modo que seus dedos secos ficassem entrelaçados, entre eles o homem colocou um terço que eu aposto ter sido vigorosamente abençoado. Com o cadáver em posição Enzo reuniu as lascas da tampa do caixão e com algumas marteladas selou Adla de volta em seu espaço. Depois, todos ajudamos a colocar o caixão na sua novíssima cova recém escavada, uma tarefa mais árdua do que se poderia imaginar pois sem ganchos a urna fúnebre era extremamente difícil de ser manuseada.

Quanto o corpo encontrou sua morada começou a longa e exaustiva tarefa de colocar aquele monte de terra de volta no lugar. Confesso que nesse ponto fiquei impressionada com a energia de padre Sávio, não era todo dia que se via um homem de cabelos brancos com tanta disposição para realizar uma tarefa como aquela. Enzo se juntou a ele em um ritmo contínuo mas dele eu já estava acostumada a essas súbitas explosões de energia, como se o nerd sedentário e chocólatra que eu conhecia vez ou outra fosse substituído por um atleta olímpico.

O corpo de Adla foi sepultado quinze minutos depois, num ponto onde o meio dia já havia passado, o calor era tão estúpido que não me impressionaria se os termômetros começassem a suar.

- Não sei como essas coisas funcionam padre, mas já lhe avisei que o espírito desta mulher está expandido. Devo alertar que seu sepultamento talvez não sirva para nada.

- Meu jovem incrédulo, todo corpo está ligado com a alma que um dia o preencheu, sua lâmina especial nos mostrou isso. Portanto eu posso atingir a alma dessa mulher em qualquer lugar pois seu corpo está aqui. Agora dê licença e deixe um Patrístico assumir.

Enzo sacudiu os ombros e deu um passo para trás enquanto padre Sávio assumia posição em frente ao túmulo.

O homem colocou uma das mãos no peito enquanto erguia a outra por sobre a cabeça, seus olhos se fecharam com força suficiente para fazer grandes rugas se formarem em sua testa e ao redor dos olhos. Padre Sávio então tomou fôlego e começou.

- Ó meu Deus! Ó Tu que perdoas os pecados! Tu que concedes dádivas e afastas aflições! Suplico-Te, verdadeiramente, que perdoes os pecados dos que abandonaram as vestes físicas e ascenderam ao mundo espiritual!

Foi uma transformação. Podia ser coisa da minha cabeça mas eu tinha certeza que alguma coisa estava acontecendo, alguma coisa que fazia minha espinha se mexer como uma grande serpente. Uma sensação me envolveu e por algum motivo, mesmo após todo aquele inferno, eu senti paz.

- Ó meu Senhor! Purifica-os das transgressões; as tristezas, desvanesce-lhes e transforma sua escuridão em luz. Permite que entrem no jardim da felicidade, purifiquem-se com a água mais límpida e, no mais sublime monte, contemplem Teus esplendores.

Agora era oficial, a serpente em minha espinha estava agitada como quando eu tinha uma premonição, mas diferente dessas ocasiões eu não sentia nenhuma aura maligna ao meu redor, aquela coisa ruim e cheia de ódio. Uma sensação cálida me envolveu e eu só não fechei os olhos porque a visão de padre Sávio era imponente demais para que eu o fizesse.

- Ó Pai advogado, juiz e promotor! Ó Pai que salva os justos e condena os pecadores! Eu lhe imploro que leve essa alma para seu julgamento! Que a faça sentar no trono dos réus e procure seu nome no Livro da Eternidade! Pai... Julgue-a!

Algo aconteceu e novamente eu não saberia explicar o que era, e tenho certeza que não poderia explicar mesmo que passasse pelo evento centenas de vezes. Giovana e o senhor Basílio pareciam ter sentido o mesmo porque tiveram o mesmo tremelique que eu tive, como se suas espinhas tivessem se tornado serpentes ariscas. A atmosfera mudou por um instante, se tornando carregada como se um aparelho eletromagnético estivesse ligado ao nosso lado. Eu em especial senti um cheiro leve de ozônio mas que rapidamente desapareceu. Aliás, rapidamente tudo desapareceu, e tão surreal quanto fora ver o mundo ganhar aquele tom de energia foi vê-lo perdê-la.

Padre Sávio se calou, voltando a seu porte franzino de homem religoso. Ao mesmo tempo eu me sentia estranhamente vazia e com uma rápida olhada ao redor percebi que meus companheiros naquele funeral sentiam a mesma coisa.

- Aí está uma coisa que não se vê todo dia – Giovana acabou comentando mas o tom de sua voz a traía quanto a deferência que mostrava ao sacerdote.

- O que o senhor fez?

A pergunta de senhor Basílio ficou no ar por um instante, o tempo necessário para que percebêssemos que ele fora o mais impressionado com todo o ocorrido, não que pudesse ser diferente no fim das contas.

- Fiz com que sua pobre visitante encontrasse o caminho do senhor. Se seu destino final será de paz ou de sofrimento depende de suas atitudes em vida. Eu tenho minha opinião sobre o caminho que ela seguirá mas vou deixar o julgamento nas mãos do Criador.

Fazendo um sinal da cruz padre Sávio terminou.

E assim a primeira entidade estava exterminada.

Eu ainda me surpreendia com as mudanças rápidas de personalidade que envolviam padre Sávio e para ser sincera ainda não sabia se gostava ou não daquele cara. Tinha uma ligeira suspeita de que a minha dúvida era a mesma que rondava a cabeça dos demais mas me resguardei de qualquer comentário. Uma coisa muito mais urgente passou a preocupar-me.

- Seja lá o que você tenha feita parece que terminamos por aqui... – Giovana acabou comentando – O que significa que podemos cuidar dos preparativos para a sessão de hoje a noite.

Sessão de hoje a noite... Alguém chame a múmia de volta...

XV

Não foi um dia de todo ruim. Daniela era uma figura medonha mas sem dúvida desempenhava bem suas funções de cozinheira-faxineira-jardineira-governanta do lar de senhor Basílio. Nosso almoço teve frango com batatas, um arroz branco realmente saboroso e mais legumes do que eu poderia desejar – mesmo sem ter comido nenhum deles a visão decorativa era de encher os olhos.

Mas apesar dos magnifícos pratos não posso dizer que foi um almoço casual... Um parapsicoinvestigador, uma médium e um padre eram capazes de manter o mesmo diálogo que um alien manteria com uma vaca. O cenário se completava com uma diabólica Daniela que permanecera o tempo todo na sala fitando os convidados com olhos miúdos e demoníacos, como se estivesse escolhendo qual a próxima alma que levaria ao submundo. Talvez se senhor Basílio estivesse presente as coisas seriam um pouco diferentes, porém nosso anfitrião se recolheu a seu quarto pouco depois de voltarmos do funeral alegando uma dor de cabeça insuportável. Eu quase o acompanhei mas antes que o fizesse lembrei o tipo de companhia que poderia ter sozinha no meu quarto, e repentinamente sofrer com aquele clima constrangedor era uma ótima maneira de passar a minha tarde.

- Então a senhorita pretende mesmo fazer outras das suas sessões nesta noite?

A pergunta de padre Sávio ocorreu após uma longa sequência de garfadas e mesmo os diminutos olhos de Daniela o miraram para acompanhar a resposta.

- Acredito que podemos ter resultados significativos.

- Eu já não penso assim – Enzo interrompeu recebendo um olhar tão áspero de Giovana que por pouco a batata não caiu de seu garfo – Pelo que compreendi do rito que tivemos, Adla já não está mais nessa casa, e pelo jeito nem mais nesse plano, de que adiantaria uma invocação agora se a entidade se foi.

Obviamente fui eu quem comunicou ao Enzo que a entidade havia desaparecido para sempre, num instante singular em que ele me puxara para uma troca de impressões sobre o funeral de Adla, afinal a sensação de paz envolvera a todos menos ele.

- Eu não estou duvidando dos métodos do padre, até porque sei que ele fez algo, devo admitir, além da minha compreensão e expectativa. Mas mesmo que o espiríto da xamã não esteja mais conosco ainda temos outras duas presenças nessa casa e elas estão mais próximas do que podemos imaginar.

Eu engoli seco, era assustador admitir que Giovana tinha razão.

- Então você deseja novamente ir contra todas as regras do Senhor e se comunicar com os mortos – padre Sávio disse com uma indignação que poderia fazer uma pedra se arrepender de sua inanição – Eu espero que o bom Deus te perdoe algum dia, embora suspeite que ele nunca o fará.

- Posso ter uma discussão com o seu senhor depois que eu morrer – A médium respondeu ácida – Não existe forma mais eficaz de obter respostas de um espírito do que fazendo as perguntas diretamente à ele.

Percebi Giovana encarar Enzo numa tentativa de obter confirmação de seu pensamento, porém para nossa surpresa encontramos o único parapsicoinvestigador do mundo mergulhado em pensamentos tão profundos que poderiam afogar uma criança.

- Eu estive pensando a respeito do ritual de invocação da noite passada... – Ele disse após ser questionado – Veja bem, pelas nossas contas temos mais duas entidades na casa, um bebê morto com requintes de crueldade e um homem que mergulhou na mais profunda loucura antes de desaparecer de forma misteriosa... Nos dois casos dá-se origem a formação de entidades realmente poderosas.

- E onde o senhor quer chegar? – Padre Sávio perguntou esticando o pescoço para ouvir.

- Ontem o ritual fugiu do controle. Foi apenas um pouco, uma incorporação pela pessoa errada – e nessa parte todos me encararam e eu me encolhi como uma uva seca –, Adla foi a responsável por ela e mesmo tendo sido uma xamã em vida tenho a forte suspeita de que Adla era a entidade menos poderosa desta casa.

- Você está insinuando que eu não dê conta quando um dos outros dois espíritos se manifestarem? – A médium perguntou lançando-lhe um olhar ácido, que teria feito uma cebola chorar.

- É exatamente o que quero dizer Giovana. Você não deu conta de Adla e acho que não dará conta dos próximos.

Aquele foi um momento em que eu achei que perderia Enzo para sempre. A raiva fez Giovana afiar o olhar de tal forma que seus olhos praticamente se fecharam. Ela então levantou um dedo em riste e eu tive certeza de que ela invocaria alguma maldição e um raio sairia de seu dedo matando a todos nós.

- Só porque eu não estava preparada para o fato dessa pequena cortesã ser uma antena Slot, não quer dizer que eu não vá me preparar para uma segunda vez. Eu sei exatamente o que fazer com essa pequena enquanto o ritual estiver acontecendo.

Eu não sabia se ficava indignada pela cortesã, intrigada pela comparação ou em pânico pelo tipo de solução que a doentia mente daquela mulher teria imaginado.

- Eu já pedi alguns cadeados para o nosso anfitrião. Em umas duas horas já devo estar com tudo pronto. – Ela completou voltando a refeição.

Tudo pronto. Mas tudo pronto para que?

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Agradeço a todos que estão lendo e acompanhando, fico feliz que o rabugento parapsicoinvestigador esteja agradando! Continua terça 28/08

Gantz
Enviado por Gantz em 26/08/2012
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