Um conto de dois cemitérios: A margarida

Conto Inspirado na lenda urbana "A flor do cemitério".

O taxi ia veloz pela estrada que ligava a pequena cidade de Sant’Ana ao Vale dos Moinhos, Sandra observava pela janela a entediante paisagem plana dessa parte do estado. Uma vasta campina com árvores espaçadas e ao longe colinas azuladas. Era verão e as chuvas deixavam a vegetação como um incomensurável tapete verde. Ela trazia em seu colo um buquê de margaridas, suas flores favoritas, presente de despedida dos colegas de trabalho. A jovem mulher era veterinária e largara a clínica em que trabalhava na capital para ir trabalhar em uma importante fazenda no interior.

- Pare o carro senhor Alves! – disse a moça ao avistar um detalhe na estrada que despertou-lhe a atenção.

O taxista freou o carro rápido pensando se tratar de uma emergência. O carro derrapou na estrada solitária deixando a marco dos pneus no asfalto. Sandra desceu do taxi e contemplou uma vasta área na beira da estrada na qual não havia vegetação, apenas um solo arenoso e pedregoso. O senhor Alves veio logo atrás.

- O que houve senhora? – indagou o homem de meia idade coçando a cabeça por baixo do boné.

- Me intrigou a falta de vegetação nesse pedaço de terra. – respondeu Sandra com as mãos protegendo os olhos do sol poente.

- É um cemitério dona Sandra – disse ele retirando o boné e baixando a cabeça em sinal de respeito. – um cemitério de crianças.

- Pobres anjinhos! – exclamou ela se aproximando da entrada – um lugar horrível para se repousar.

O taxista deu dois passos vacilantes à frente, demonstrando grande relutância em se aproximar do local:

- Foi a gripe. Uma forte epidemia atingiu a região a muito tempo atrás e as principais vítimas foram crianças e velhos. Mas muitas crianças, de várias idades, não eram batizadas e a igreja não admitiu que elas fossem enterradas no cemitério da cidade. Então elas foram trazidas para esse cemitério improvisado para elas, foram enterradas sem velório ou oração pelas suas almas.

- Que horror! – disse Sandra se virando para seu interlocutor.

- Não foi só isso. Dizem que várias crianças indigentes foram enterradas aqui também ao longo dos anos. Natimortos indesejados, vítimas de aborto, filhos de padres e freiras que não encontraram nenhum amparo na vida. – as últimas palavras foram ditas em tom de confidencia, sussurrado como se alguém pudesse estar ouvindo.

- Mas alguém ainda tem o cuidado de manter o local limpo, e muito bem limpo não tem nenhuma planta.

- O lugar é amaldiçoado, os tocadores de gado dão uma volta enorme para não passarem por aqui. Muitos dizem já ter ouvido o choro de crianças, uma lamentação terrível. Sem serem batizados não podem ir para o céu. Um prefeito então mandou salgar toda a terra para que nada brotasse aqui, como se pudesse expantar aquilo que ja não vive.

- Não acredito muito nessas coisas, mas se ocorrem não é devido à falta de batismo, mas sim do abandono e descaso com essas pobres almas.

- Talvez senhora, mas vamos embora, logo não haverá mais nenhum vestígio de claridade por aqui. – disse o senhor Alves ajeitando o boné na cabeça e voltando para o carro.

- Um minuto. – disse Sandra

A moça correu até o taxi apanhou uma de suas margaridas e a fincou na terra em frente ao cemitério:

- Recebam essa margarida meus anjos e descansem em paz. Alguém lembrou de vocês - disse ela após beijar a flor.

Os últimos raios de sol já cediam lugar á noite deixando apenas uma tonalidade alaranjada no horizonte. Ela voltou para o carro com um imenso pesar, enquanto o taxista a esperava impaciente. Mal ela fechou a porta ele acelerou o carro.

Pouco mais das oito da noite o taxi encostava na cede da fazenda onde ela ocuparia o cargo de veterinária e era recepcionada pelo próprio fazendeiro. Um senhor alto, grisalho e barrigudo que com presteza apanhou as malas e depois correu para pagar o taxista.

Sandra ficou sem ação diante da atitude do velho fazendeiro que após cuidar de tudo estendeu-lhe a mão:

- Muito prazer doutora.

- Muito prazer coronel.

- Por Favor me chame de Carlos, detesto que me chamem de coronel. – disse ele com grande simpatia.

- Perdoe Carlos. – disse ela sem graça – e você pode me chamar de Sandra, dispenso a “doutora”.

Apresentações feitas ela entrou eles entraram na casa com Carlos carregando as malas da veterinária. Era um velho, porém conservado, casarão colonial. O homem colocou as malas no chão correu até o armário de mogno e vidro apanhou uma garrafa e dois pequenos copos.

- Não bebo cachaça senhor. – disse ela quando ele lhe ofereceu o copo.

- Perdoe, não recebemos muitas mulheres aqui, é força do habito. Bebe vinho?

- Sim. – respondeu a moça.

- Tudo bem vou buscar na adega, não tenho aqui em cima, e pedirei para prepararem algo para você comer.

O velho saiu da sala, logo Sandra sentiu seu celular vibrando no bolso da calça, “deve ser o pessoal ligando para saber das novidades”, pensou enquanto tentava livrar o aparelho do bolso apertado.

- Alô?

- Quero uma flor. – disse uma voz infantil e suplicante do outro lado.

Ela se assustou e olhou no visor, não acusava a existência de nenhum número. Ela ficou perturbada e voltou com o aparelho no ouvido.

- Quem está falando? Alô? Quem é?

Não houve resposta.

- Algum problema? – a pergunta foi como uma estaca cravada na nuca de Sandra. – desculpe se assustei a senhora, meu nome é Dolores.

A veterinária se virou deparando-se com uma bela jovem enxugando as mãos em seu avental.

- Não nenhum problema, só algum engraçadinho me ligando. – respondeu se recompondo.

- Deve estar com fome, o jantar já foi servido, mas sabíamos que viria e separamos o seu, se não se importar está na copa. – disse a cozinheira saindo da sala.

Sandra a seguiu até a copa onde encontrou a mesa posta.

- Estarei na cozinha, se precisar de alguma coisa doutora é só chamar.

Sandra pensou em pedir para não a chamar de doutora, mas ateve-se ao seu jantar, pois estava faminta. Mau a primeira garfada foi à boca o telefone tocou novamente.

- Alô

- Quero uma flor. – disse novamente uma voz infante suplicante.

Sandra desligou o telefone com a comida entalada na garganta. Carlos se aproximou da moça venda seu visível transtorno. Colocou a garrafa sobre a mesa:

- O que houve, parece nervosa, alguma das meninas da cozinha fez alguma coisa doutora?

- Não senhor Carlos, só alguém me passando trota. – respondeu Sandra batendo com o celular na testa assumindo um semblante pensativo.

- Tome seu vinho e relaxe um pouco.

Sandra relaxou naquela noite, mas nos dias que se seguiram as ligações tornavam a lhe atormentar. Inicialmente desconfiou do senhor Alves, o taxista era o único que sabia da flor no cemitério e ele tinha ficado com o cartão da veterinária. Após muita pressão, com a ajuda do influente coronel, Alves quase perdeu o emprego, mas nada ficou provado contra ele.

O serviço não rendia nada, passava noites sem dormir, e perdeu alguns animais por descuido, deixando o fazendeiro cada vez mais desgostoso de seu trabalho, mas o velho entendia a situação dela. E após ela quebrar o celular em um ato de desespero o telefone da casa começou a receber as misteriosas ligações, sempre pedindo uma flor para quem atendesse. A polícia tentou rastrear as ligações em vão. A veterinária chegou a um estado de não poder mais trabalhar. Carlos contratou outro profissional para substituí-la, mas não a dispensou, sentia-se responsável por ela.

Sandra foi levada para uma casa nos fundos da propriedade onde não havia telefone e deixada aos cuidados de Dolores. Mas o telefone da casa grande continuava tocando todas as noites. A moça apresentou uma recuperação e certa noite conversando com a empregada deitada em seu leito se desesperou.

- Porque estão fazendo isso Dolores, porque?

- De quem está falando doutora?

- Das crianças, eu só queria ser gentil não fiz nada de mal para elas, foi só um presente.

- Minha vó sempre dizia que dos mortos não se deve querer a ira e nem o apreço, que fiquem em suas sepulturas.

- Mas o que devo fazer Dolores, me diga como parar isso?

- Sinceramente não sei doutora, mas aconselho manter distância deles. Durma um pouco estarei na sala caso precise de algo.

Sandra não dormiu. Nesses dias tão assustadores ela ouvia as vozes também em seus sonhos. Perambulou pela pequena casa e da janela da cozinha viu um jardim nos fundos da casa, quase sorriu ao ter uma visão tão bela. Os antigos proprietários, retirados do local para que ela se instalasse, cuidavam bem do jardim, uma grande variedade de flores reluzia sob o luar. Voltou para sala e fitou com pesar a pobre Dolores dormindo no sofá, ajeitou o cobertor da garota, fazendo-a deixar cair o celular com o qual havia dormido entres as mãos. Assustou-se, ver o telefone era como ver seus próprios atormentadores. O aparelho tocou silencioso, ela fez menção de se afastar, mas acabou se jogando ao chão e pegando o celular, levando-o imediatamente ao ouvido:

- Por favor! – disse ela chorando encolhida próxima ao sofá – me deixem em paz, eu imploro.

- Quero uma flor – do outro lado a voz soava suplicante.

- Eu não fiz mal nenhum a você, eu só quis ajudar. Pare de me ligar.

- Quero uma flor!! – o tom de suplica havia cedido lugar a um tom mais agressivo.

O sangue de Sandra gelou quando olhou de soslaio e vislumbrou um vulto de cócoras sobre o sofá com a boca próxima ao seu ouvido.

- Não! – gritou ela jogando o aparelho longe.

Dolores acordou assustada a tempo de ver Sandra saindo pela porta às pressas. A perturbada veterinária correu até o jardim e começou a arrancar as flores jogando-as na capota de uma velha caminhonete. Algumas eram arrancadas com raiz, outras perdiam apenas as pétalas, plantas sem flores também iam parar nas mãos da moça. Dolores procurou o celular para ligar para o patrão, mas só encontrou seus cacos espalhados. Após arrancar muitas das flores a doutora entrou na caminhonete e saiu sem dar ouvidos às palavras da empregada que tentava acalma-la.

A caminhonete deixou a fazenda em alta velocidade e pegou a estrada que levava à pequena Sant’Ana. O veículo só descansou quando foi estacionado ás portas do cemitério. Ela desceu desesperada e começou arrastar as flores e lança-las às portas do cemitério, a últimas que sobraram ela carregou nos braços até as sepulturas e começou a atira-las lá.

- Tome suas flores! Tome suas flores! Tome suas flores! – repetia ela em um estado frenético.

Quando a última flor foi atirada ao chão seu corpo gelou ao sentir uma mão pesando sobre a barra de sua camisola. Apenas seus olhos se mexeram para contemplar horrorizada uma garota pálida olhando para cima.

- Eu quero uma margarida.

Os olhos de Sandra estavam arregalados e vermelhos, as lagrimas desciam mesmo com a ausência aparente do choro. E o horror aumentou quando mais mãos pesaram sobre sua camisola.

- Eu queria uma margarida.

- Eu queria uma margarida.

- Eu queria uma margarida.

Logo as vozes isoladas se converteram em um coro, e ela se viu cercada de crianças maltrapilhas, sujas e cadavéricas. Algumas eram apenas recém-nascidos rastejando e chorando, outras eram fetos que não emitiam som algum, apenas se contorciam no chão. E as suplicantes vozes foram se tornando cada vez mais impacientes e agressivas enquanto corpo paralisado de Sandra sentia um frio sepulcral lhe consumir. Apenas uma singela criança permanecia à distância segurando em suas mãos uma margarida.

Getúlio Costa
Enviado por Getúlio Costa em 23/08/2012
Reeditado em 24/08/2012
Código do texto: T3845846
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