Amálgama Fantasma - Cap 12
XII
Era um dia ensolarado, daqueles que usamos para ir ao clube com a família, fazer churrasco, tirar fotos e brincar na piscina. O Sol era tão brilhante que quando encontrava uma superfície reflexiva era preciso se encolher ou ele queimaria retinas com sua alegria.
Pena que eu não me sentia assim tão feliz.
No momento eu estava seguindo pela mesma estradinha de tijolos onde encontrara a estranha Daniela, rodeada pela vegetação densa que fazia mesmo o calor escaldante do astro-rei se tornar suportável para minha pele. Meu humor não poderia ser mais destoante do dia que enfrentava, meu espírito cansado se apegava ao dever mecânico de obedecer meu cérebro, e tenho certeza que essa era a única razão por eu não ter sentado no chão e permanecido em estado letárgico até o Armagedom.
Eu tentava manter minha mente ocupada pensando sobre as implicações de tudo que ocorrera na noite passada. Tivemos a confirmação de que Adla permanece na casa junto com Luciano e uma aparente guerra parece estar sendo travada. Parecia uma boa teoria embora não justificasse o porque da terceira presença que tanto eu quanto Giovana sentimos e continuávamos sentindo naquele lugar.
Alguma coisa muito suja ainda estava escondida sobre o tapete e eu tinha certeza de que muita coisa aconteceria antes de limpá-la.
A estufa estava tão brilhante que por um momento achei que estivesse em chamas. Os vidros tão impecavelmente polidos faziam o Sol refletir como um gigantesco espelho pelo ângulo do qual eu olhava, forçando-me a avançar com os olhos semi-cerrados. Foi somente a poucos metros do local que comecei a ouvir as primeiras palavras, que só depois se tornaram frases para que eu pudesse lhes atribuir um sentido.
- Ele o cobrirá com suas penas e você encontrará refúgio sob suas asas! Não temerá os terrores das noites, nem das flechas que voam durante o dia, nem as pragas que devastam as plantações, nem as trevas que espreitam na escuridão, nem o mal que se esconde sob a pele dos lobos! O Senhor é meu refúgio! Eu caminho com o Senhor!
Antes que percebesse estava diante da entrada envidraçada esfregando meus olhos para tentar entender o que estava acontecendo.
Havia uma parafernalha digna de uma produção hollywoodiana. Câmeras e sensores estavam espalhados pelo chão e pendurados nas plantas, cabos corriam por toda parte como num set de filmagem, alguém chegara ao cúmulo de adaptar um abajur com pedaços de madeira para ficar parecendo um refletor.
E no meio de toda aquela confusão estava o padre Sávio.
- Que o manto sagrado envolva a criação! Que o mal que busca o mal encontre o bem e que o bem dê ao mal a lição que Deus deu a seus inimigos! Que o mal caia sobre um poço do qual jamais possa sair e liberte a criação do senhor de suas garras!
Padre Sávio estava suado como se tivesse corrido uma maratona, mesmo assim sua voz era potente a ponto de fazer reverberar o ar daquele espaço. A luz e boa parte das câmeras o miravam como se ele fosse a estrela de um show que estivesse indo ao ar.
Claro, como não poderia faltar, meu querido parapsicoinvestigador estava por perto com um olhar tão cheio de dúvidas quanto um cientista vendo a água ferver a temperaturas negativas.
Me aproximei com cautela, podia não entender muito do cristianismo mas sabia que algum tipo de ritual de exorcismo estava sendo feito ali. Enzo me encarou pelo canto dos olhos e me deu tanta atenção quanto daria para uma mosca, o que de certa forma fez minha letargia ser substituída pela frustração natural que eu tinha contra aquele ser.
Abri a boca para dar bom dia mas a mão de Enzo voou me calando. Ele então levou um dedo aos lábios e apontou para um biombo ali perto. Nos movemos até lá e eu senti ainda mais forte a sensação de que estava nos bastidores de um programa.
- Padre Sávio está tentando trazer à tona a entidade que congelou a horta ontem – Enzo disse num sussurro e eu tive que me inclinar para ouví-lo – Eu precisei de algum tempo para convencê-lo a me deixa filmar tudo mas ele me fez jurar que eu não daria nem um pio durante a sessão.
Voltei a abrir a boca mas o olhar de Enzo me calou.
- Você está bem?
A pergunta me golpeou como uma brisa abrasiva pois ainda não sabia se estava bem ou não. Gostaria de responder de uma forma que não o preocupasse mas senti que não conseguiria.
- Estou indo – acabei respondendo num sussurro e dando de ombros, então para não parecer tão depressiva completei – Vou sobreviver.
Recebi um tapinha na cabeça que só não foi mais carinhoso porque fez meus dentes baterem, gerando uma aflição que por pouco não me levou a chutar as partes baixas daquele idiota.
Enzo voltou para a observação do ritual quando eu percebi uma coisa que normalmente percebia quando saíamos em missões como aquela...
Onde Enzo guardava tanto equipamento? Com certeza não era no porta-malas do nosso Gurgel, seria impossível caber tanta coisa lá dentro.
Afastando os estranhos porém comuns pensamentos, Enzo e eu ficamos lado a lado enquanto padre Sávio lia passagens e mais passagens, mesclando-as com algumas frases prontas que todo ser humano já ouvira ao menos uma vez. O padre trajava sua habitual batina roxa, numa das mãos a Bíblia aberta e na outra um pequeno frasco com o que imaginei ser água benta, que ele jogava em todas as direções ao fazer um sinal da cruz sobre a cabeça.
- Qual o objetivo disso tudo? – Acabei perguntando a Enzo quando a curiosidade se mostrou mais forte do que eu poderia imaginar – Desde quando você passou a acreditar nesses rituais?
Às vezes achava que Enzo tinha algum atraso, era o único pensamento racional que justificaria a demora dele em responder certas questões.
- Não é o que eu acredito, é o que as entidades acreditam. Você sabe que uma entidade pode ser qualquer coisa, uma vontade muito forte, uma moldagem, uma pessoa que morreu ou mesmo alguma coisa “do lado de lá”. Estamos lidando com o terceiro caso então toda essa encenação pode mesmo funcionar.
- Depende, segundo Basílio, Adla era uma xamã africana. Não sei quanto tempo ela esteve aqui mas duvido que ela seja influenciada pela Bíblia. Ela nunca deve ter ouvido falar disso. – Contra-ataquei.
- Talvez, mas Luciano deve ter ouvido. E às vezes o importante não é o tipo de crença mas a crença em si. Adla deveria acreditar em seus deuses, ela tinha uma fé, talvez a fé do padre entre em sintonia com a dela.
Precisei admitir que era uma boa teoria mas só ficaria convencida quando visse alguma reação, por isso me dirigi até a pequena central que Enzo havia montado – uma versão menor da central em seu próprio quarto – e passei a analisar as imagens e os mostradores analógicos que ficavam sobre a mesa. Não havia nada de anormal nas câmeras de alta definição, nem nas térmicas ou nas de visão noturna – que eu não fazia idéia do porque estavam ali. – Os medidores de campo magnético também estavam ok bem como o contador Geiser. Podíamos estar monitorando tanto um exorcismo quanto o desabrochar de uma planta na primavera.
Eu me inclinei para trás bufando. Era sempre assim, tudo está normal mas aí algo acontece e te deixa de cabelo em pé.
E é claro que aconteceu.
O contador Geiser de repente deu um salto e segundo ele estávamos numa atmosfera não muito diferente da que teríamos se uma bomba atômica tivesse explodido ali na esquina. Eu pisquei algumas vezes e esfreguei os olhos para ter certeza que estava vendo certo, mas após esses movimentos o contador Geiser subiu ainda mais, até um ponto em que o mostrador começou a se curvar após atingir o ponto máximo da escala.
- Enzo... Acho que você precisa ver isso aqui.
E com um tlec o contador quebrou fazendo Enzo perceber que havia um problema. Eu virei a cabeça ao redor preocupada com o que poderia acontecer e tentando não ligar para o cotoco do mostrador que continuava rotacionando como um pirocóptero em pleno vôo.
Os problemas começaram junto a uma brisa leve, enquanto o padre entoava o salmo 67.
- Deus tenha misericórdia de nós e nos abençoe, e faça resplandecer o seu rosto sobre nós, para que se conheça na terra o Teu caminho e entre todas as nações a tua salvação. Louvem-te a ti, ó Deus, os povos; louvem-te os povos todos.
A brisa era agora um vento incômodo e eu era obrigada a semicerrar os olhos porque a terra estava começando a ser carregada e alguma coisa parecia estar mirando-a contra nós. Pela fresta em minha visão percebi nosso medidor MGM-20, para medidas de campo magnético, também ficar maluco e as câmeras começarem a ter suas imagens substituídas por um chuviscar.
- Alegrem-se e regozijem-se as nações, pois julgarás os povos com equidade, e governarás as nações sobre a terra! Louvem-te a ti, ó Deus, os povos; louvem os povos todos!
As caixas de som emitiram um rangido agudo que arranhou não apenas meus tímpanos como também meu espírito. Fui obrigada a me dobrar já que a dor daquele instante foi tão poderosa que por pouco não me fez desmaiar. O vento incômodo se tornou algo absurdo, como se cinco ventiladores estivessem ligados em potência máxima bem ao meu lado, revoltando meu rabo de cavalo que chicoteava de um lado para o outro. O primeiro dos galhos se quebrou e logo muitos outros se juntaram a ele, passando tão perto da mesa que eu só não considerei uma benção nada ter sido atingido porque já estava rodeada com maldição suficiente.
- Da onde vem Talita?! – A voz de Enzo chegou até mim como um sopro porque o vento se tornou assustadoramente alto, a ponto de fazer meus ouvidos apitarem.
A única coisa que não parecia influenciada por aquele vendaval era a potência da voz de padre Sávio que eu conseguia escutar mesmo com os ouvidos tampados. Era como se o som penetrasse diretamente em minha alma.
- Então a terra dará seu fruto; e Deus, o nosso Deus, nos abençoará!
Enzo me deu um cutucão e eu finalmente abri os olhos para encarar seu rosto mal-barbeado.
- Da onde vem?!
Dessa vez entendi o que precisava fazer.
Encarei padre Sávio e tentei conter a surpresa de ver que ele estava imerso em um tornado de terra, folhas e galhos, seus braços abertos o deixando quase como um mártir em meio a tudo aquilo.
- Deus nos abençoará! E todas as extremidades da terra o temerão!
Eu expandi. Sei que você deve estar se perguntando como consegui expandir tão rápido e no meio de tanta confusão se no dia anterior eu mal conseguia andar e expandir ao mesmo tempo; bem a resposta é muito simples. Eu não sei. Sério, em certas ocasiões minha habilidade de tocar os planos acima do físico era inversamente proporcional ao meu estado de espírito, em outras não.
Eu fui para as nuvens no exato momento em que padre Sávio recitava o Amém do fim do salmo.
O que vi não me deixou muito feliz.
- Abaixa!
Me atirei ao chão junto a Enzo no exato momento em que uma onda passava sobre nossas cabeças com a potência de uma explosão. Todos os sensores, monitores e medidores tombaram não nos atingindo por pouco. Eu já havia visto tal fenômeno, ele às vezes acontecia na minha infância embora na época eu não tivesse a menor idéia do que era.
Entidades tem o poder de concentrar energia como se fossem baterias, a questão é que elas acumulam uma energia diferente, conceituada pelo criativo parapsicoinvestigador como energia feelimental. Esse é um tipo de energia não muito forte no plano da matéria mas que assume uma importância muito grande conforme vamos subindo aos planos superiores. Se a energia acumulada em planos mais altos for muito grande e houver um médium nas proximidades, a energia feelimental pode se transformar em qualquer outro tipo de energia – seja cinética, térmica, eletromagnética ou mesmo nuclear – e interagir com os objetos. No caso, a entidade transmitira ao ar uma carga de energia feelimental fazendo o mesmo adquirir movimento, primeiro uma leve brisa, mas quando a entidade se sentiu confortável mandou a onda de choque pela qual tivemos de nos proteger.
Mas o problema era que, se a entidade tinha poder para mandar uma onda de choque, com certeza teria poder para mandar outras.
- Preciso saber onde está Talita! – Enzo gritou enquanto eu ainda tentava fazer meus ouvido pararem de apitar – Estamos vulneráveis aqui!
Eu sabia daquilo por isso lutei para colocar meus pensamentos no lugar e olhar a minha volta para ter enfim um panorama do que estávamos enfrentando.
Ao contrário do que imaginara, padre Sávio continuava falando, gesticulando e andando de um lado para o outro, tão absorto em suas passagens que poderia apostar que ele não tinha ideia do que estava acontecendo. O ambiente se tornara uma confusão de galhos, folhas e equipamentos quebrados, todos recobrindo o chão com uma beleza que só um artista plástico iria entender. O vendaval havia voltado a se tornar uma leve brisa, porém sua intensidade aumentava gradativamente, alguma coisa me dizia que se não fizéssemos nada teríamos que enfrentar uma onda de choque muito maior do que a anterior.
Mas antes consegui encontrar o responsável.
Ver não era bem o termo a ser usado, em meu estado expandido as coisas eram mais sinestésicas e havia uma participação do sexto sentido que expandia minha noção espacial. Sabe aquela sensação de que as vezes tem alguém do seu lado ou atrás de você? Imagine essa sensação multiplicada por vinte e vai começar a ter uma idéia de como eu sentia o mundo ao meu redor. Essa sensação me dava convicção de que havia algo a frente, bem próximo a padre Sávio.
Algo maligno.
Para meus olhos a entidade era uma sombra cilíndrica com mais ou menos um metro e meio de altura, posicionada um pouco a esquerda do padre e de sua oração. Fiquei sinceramente impressionada porque o borrão parecia querer se afastar mas por algum motivo não conseguia, como se as palavras de padre Sávio fossem um buraco negro e a entidade um frágil feixe de luz que estivesse sendo sugado.
Porém não havia nada de impressionante naquilo porque eu não sentia medo vindo daquela entidade – um sinal claro de que as coisas estão indo bem e a existência dela está ameaçada – eu sentia uma aflição profunda, como se você quisesse espirrar enquanto estivesse tirando sangue. A entidade estava contida mas eu sabia que assim que as palavras do padre parassem as coisas iriam de mal a pior.
- Está perto do padre! Perto do padre! – Gritei após me dar conta de que aquele era um dado importante para Enzo. – Ela está sendo atraída de algum modo mas se as orações pararem vamos ter problemas!
Enzo assentiu num movimento curto e virou na direção do padre como se também pudesse ver alguma coisa no inferno astral que acontecia ali.
Enzo Velasquez vinha de uma família que nunca foi muito falada nos meus políticos, nem na mídia, nem em qualquer meio que você ou uma pessoa normal pudesse conhecer. A família Velasquez só era conhecida no submundo do mundo, o lugar onde fenômenos como os presenciados na casa em que estávamos eram vistos como coisas não tão absurdas assim. E de geração em geração o nome Velasquez sempre foi visto com admiração e respeito, a única família que continuou na linhagem do sobrenatural desde a idade média e que conseguiu passar para seus herdeiros mais do que apenas coragem e conhecimento, mas uma habilidade mediúnica ímpar, a carta na manga perfeita, o trunfo responsável por sempre tirá-los de problemas quando todo o conhecimento e equipamento falhava.
Isso até o Enzo nascer.
Eu sabia pouco da vida do homem que me adotou, apenas que ele era tão sensitivo quanto uma pedra e que após um evento específico ele se tornara o último Velasquez. Às vezes me pegava pensando se não fora por esses motivos que Enzo me adotara... Ambos estávamos sozinhos no mundo e – não querendo me gabar – eu era uma criança com uma habilidade sensitiva equiparável a de qualquer membro da família Velasquez, se não superior.
Era triste em certo grau pensar daquela forma, mas eu já havia remoído o pensamento tempo o bastante para que ele não me causasse tanta indigestão.
- A oração está influenciando-a mas não é forte o bastante para contê-la... – Enzo disse afiando os olhos e eu quase podia ver as engrenagens se movendo por trás deles – Precisamos dar uma força.
- O que seria dar uma força? Por acaso você está com o dissipador? É só um click e acabamos com isso.
- Foi exatamente o que eu pensei...
Enzo deu um passo à frente quando o vento começou a se tornar um vendaval mais uma vez. Eu me encolhi atrás dos milhares de reais destruídos na primeira onda de choque sentindo uma alfinetada no coração ao ver uma TV LCD de 22 polegadas com o visor rachado. Pode parecer esquisito mas aquela foi a coisa mais assustadora que vi desde que levantei da cama.
- Ainda está ao lado do padre não está?
Precisei de alguns minutos para entender do que Enzo falava.
- Sim, mas está chegando cada vez mais perto – notei assustada ao perceber que a distância que separava o padre da entidade podia ser medida por uma régua. Então ao notar Enzo ainda parado ao meu lado completei – Nós temos que ajudá-lo! O que você está esperando?!
Enzo virou para mim com um olhar afiado.
- O clímax.
- ...e foi dito por todo o reino que o Senhor expulsou os inimigos! E assim não houve mais fome e guerra por muitas gerações! E as pessoas louvaram ao Senhor naquele dia dizendo “Quem mais poderia ter feito, senão o Deus de todas as coisas?”.
Era impressionante a determinação do padre em continuar. Não sei se ele tinha alguma idéia do que acontecia ao seu redor mas sua fé parecia poderosa o bastante para cegá-lo ou para não fazê-lo temer.
Não que isso ajudasse.
O clímax só aconteceu quando o vento já estava forte o bastante para que qualquer coisa dita em um tom normal não fosse ouvido. Por esse motivo eu praticamente expeli meus pulmões num último apelo para Enzo deixar de ser estúpido e fazer alguma coisa ou padre Sávio, e nós, estaríamos com problemas.
Enzo sacou uma engenhoca mecânica parecida com um escaravelho, cujas asas estavam envoltas em bexigas de modo que quando você apertava um pequeno botão elas inchavam, criando duas bolotas vermelhas nas costas do artefato.
- Acho que o nível dois já resolve – Enzo murmurou com a maior calma do mundo ajustando um botão na barriga do objeto.
Enquanto isso eu estava a ponto de devorar minhas unhas. A entidade começara a mudar de forma e envolvia padre Sávio, criando uma esfera a seu redor. Era estranho aquela manifestação, como se o padre tivesse alguma espécie de energia o protegendo contra um ataque direto. Para dar forças a minha teoria as palavras de luta entre o bem e o mal continuavam.
- Tributai ao Senhor, ó filhos dos poderosos, tributai ao Senhor glória e força! Tributai ao Senhor a glória devida ao seu nome; adorai o Senhor vestidos de trajes santos! A voz do Senhor ouve-se sobre as águas; o Deus da glória troveja; o Senhor está sobre as muitas águas!
Enzo finalmente achou a numeração certa e com um click no nariz do escaravelho ele o lançou próximo ao padre.
A partir daí duas coisas aconteciam... Para os de visão normal o objeto tremia como um brinquedo de corda enquanto as bexigas iam inflando. Já para mim era como estar olhando uma supernova... As bexigas inflavam com algo tão claro que era impossível olhar diretamente e a energia armazenada era tão intensa que era como se eu tivesse me tornado parte de um vaso de pressão e o sentisse encher.
- A voz do Senhor é poderosa; a voz do Senhor é cheia de majestade! A voz do Senhor quebra os cedros; sim, o Senhor quebra os cedros do Líbano! Ele faz o Líbano saltar como um bezerro; e Siriom, como um filhote de boi selvagem!
Havia fechado os olhos e me encolhido em posição fetal. Permaneci assim até sentir um esbarrão e encontrar Enzo tentando levantar o único monitor não destruído para tentar obter algumas imagens.
- Você não pode esquecer isso? – Perguntei indignada – Aquela coisa vai explodir!
Enzo me olhou com uma sobrancelha erguida.
- E daí?
Bufei me acocorando e usando a mesa como escudo, as vezes eu esquecia que ser tão sensitivo quanto uma cartolina tinha seu lado positivo. Tampei os ouvidos com as mãos e desci do meu estado das nuvens, isso tornava o evento mais suportável mas ainda assim o choque era desagradável.
Perto dali a entidade envolvera o padre em uma espécie de ovo etéreo. Contudo seu diâmetro ia diminuindo, seja lá qual poder estivesse sendo usado por padre Sávio não parecia capaz de aguentar muito mais.
- A voz do Senhor lança labaredas de fogo! A voz do Senhor faz tremer o deserto; o Senhor faz tremer o deserto de Cades! A voz do Senhor faz as corças darem à luz e desnuda as florestas; e no seu templo todos dizem: Glória!
A entidade estava a milímetros do padre, mesmo de olhos fechados eu sabia que seria só mais um segundo até que ela o tocasse...
E nessa hora o escaravelho deu um apito agudo gerando a mesma aflição que eu sentiria ao ter uma unha arrancada.
Então tudo explodiu.
Era difícil descrever a explosão do dissipador pois seus cabelos e roupas não mexiam, o ar não agitava, o vento não chiava, nenhum átomo do universo era influenciado por sua explosão. Entretanto você sabia quando acontecia. Era algo mais alto, algo que atingia diretamente o espírito como um caminhão. Obviamente quanto mais sensitiva a pessoa mais poderoso o impacto, porém – com exceção de Enzo talvez – todas as pessoas eram sensitivas em algum grau, de modo que todos eram afetados...
Mas certamente as entidades eram as que mais sofriam, sem uma amarra física para prendê-las seus corpos etéreos eram como folhas num tornado. O dissipador tinha o poder de atuar diretamente sobre o ectoelemento que as constituía, por isso eram afetadas não importando quanta energia tinham. Mesmo a poderosa entidade atuante na estufa do senhor Basílio não foi párea para esse poder... Num momento eu era afligida por uma opressiva certeza de que padre Sávio encontraria o Deus para o qual rezava, depois meu espírito foi sacudido com tanta intensidade que cheguei a tombar para frente e, por fim, houve um silêncio tão intenso que achei que havia mergulhado na graxa.
Estava com o nariz a perigosos centímetros do chão e teria feito um machucado bem feio se minhas mãos não tivessem sido rápidas o bastante. Meu cérebro parecia gelatina e meu corpo tremia como se eu estivesse em choque. À parte a essas sensação o mundo era mudo como um filme antigo e assim como no porão daquela casa, não sentia sequer o rastro de uma entidade nas proximidades.
Um espírito agitado em um corpo calmo era algo tão estranho quanto uma sobremesa salgada. Minha respiração acelerou involuntariamente tentando compensar esse destoamento me deixando num estado de hiperventilação. Sabia que nada além do tempo faria minha alma se acalmar, por isso estiquei o pescoço disposta a concentrar meus esforços no que ocorria ao meu redor.
- E aí? Funcionou?
A pergunta de Enzo me fez piscar.
- E como...
O estrago não fora físico mas a entidade ali presente era tão opressiva que com seu afastamento o ar ficou de certa forma mais leve. Até mesmo as plantas pareciam perceber aquilo porque suas cores ficaram repentinamente mais vistosas. O único ser vivo não feliz com aquilo era padre Sávio... O golpe o pegara desprevenido, derrubando-o de forma espalhafatosa, para piorar a idade somada ao choque não o permitiam levantar sem ajuda.
- Calma padre, já estou indo.
A mão de Enzo foi violentamente repelida e o padre lhe lançou um olhar tão feroz que achei que ele fosse atacá-lo.
- O que você fez? – Padre Sávio perguntou com uma voz mordida – Eu deixei bem claro que você não deveria interferir!
- Eu salvei sua vida padre. Agora deixe-me ajudá-lo a levantar.
Padre Sávio rejeitou a ajuda mais uma vez.
- Você não me ajudou, muito pelo contrário! Eu estava quase terminando o exorcismo! O espírito malígno estava fraco e era uma questão de segundos até que eu o expulsasse para sempre!
- Você não iria expulsá-la padre, confie em mim. Talita viu tudo. A entidade estava se aproximando do senhor e o devoraria se eu não tivesse agido.
Com uma bufada e um novo pedido para Enzo não ajudá-lo, padre Sávio finalmente conseguiu se recompor batendo a sujeira da batina.
- Você já viu um ritual de exorcismo filho?
Enzo pareceu surpreso enquanto eu arriscava ficar sobre as minhas pernas mais uma vez.
- Posso lhe garantir que já vi muitos rituais de exorcismo padre.
- Não estou falando de rituais conduzido por padres e afins, estou perguntando se você já viu um ritual verdadeiro? Um conduzido por um Patrístico da Alta Igreja? Os que de fato sabem o que estão fazendo?
Enzo se mostrou surpreso com o que o padre dissera. Eu também.
- Não sei se já vi um Patrístico em ação, mas todos os rituais de exorcismo que presenciei acabaram da mesma forma–
- Também acredito que já viu adolescentes dirigindo senhor Enzo, mas nem por isso todos são barbeiros certo?
Enzo deu de ombros.
- Estava apenas zelando pela sua segurança. – Enzo concluiu por fim – Aquela coisa estava se aproximando e as coisas não ficariam boas se ela o alcançasse.
- Era só o que me faltava... só o que me faltava... – O homem resmungou levando as mãos à cabeça e andando sem direção – Você não tem ideia de como as coisas acontecem! Você estragou tudo! Estragou tudo!
Até eu me recompus e me aproximei, a indignação do padre era tão grande que por um momento quase me convenci de que havíamos feito a coisa errada.
- É assim que as coisas funcionam! Que os verdadeiros rituais funcionam! A palavra é a única forma de se chegar a salvação e a Bíblia é a palavra, que outro caminho você acha que as almas deveriam tomar?
Enzo coçou o pescoço.
- Você quer dizer que...
- Quero dizer que a Bíblia é o caminho para elas! – Padre Sávio ralhou com tanta raiva que fez Enzo e eu nos encolhermos – Elas precisam vir até mim porque essa é a única forma de salvação! Elas chegam até a Bíblia e então são elevadas para serem julgadas pelo senhor. Você não tem ideia de como atraí-las é um processo complicado, como elas recusam a salvação, e quando eu estou finalmente conseguindo você usa as suas porcarias e joga todo o meu trabalho fora. Francamente...
Foi a minha vez de coçar o pescoço porque a menos que eu estivesse muito enganada a entidade realmente parecia não estar gostando de ser atraída pelas orações. Talvez a barreira que circundava o homem fosse um efeito de sua oração, criada com o intuito de impedir a entidade de atingí-lo até que o ritual estivesse completo. A explicação do padre até que fazia algum sentido.
- Então? – Padre Sávio perguntou.
- Então... – Enzo respondeu.
- O que você fez garoto!? Pelo amor de Deus, pareceu que um caminhão acertou minha alma! Eu sei que é estranho dizer isso mas foi exatamente o que senti! Você podia ao menos me explicar o que foi aquilo!
- Um dissipador serve para afastar coisas que estão em planos diferentes ao que ele está – Enzo começou voltando a afiar o olhar e a ser o velho Enzo que eu conhecia – Por isso pessoas como o senhor e a Talita, que conseguem interagir com outros planos em algum grau, acabam sendo afetados.
- Obrigado pelo aviso – Padre Sávio retrucou desdenhoso.
- De toda forma estamos livres da entidade... pelo menos por um tempo – Enzo prosseguiu – E teremos uma noção de seu poder quando sentirmos ela retornar. Entidades normais tendem a ficar de dois a três dias dispersas antes de se reagruparem.
- Dispersas?
- O dissipador as desintegra padre. Porém elas podem se reintegrar, só que o tempo que levam para isso depende da força que possuem.
- E o que vai fazer nesse tempo? Suponho que um novo exorcismo esteja fora de cogitação.
- Com a entidade dispersa um exorcismo seria inútil, mas há muito que possamos fazer. Na verdade eu acredito saber o porque da nossa entidade estar aqui, mas para ter certeza preciso fazer algo que dependerá da permissão de nosso anfitrião. O senhor está convidado a permanecer e ajudar se quiser padre.
Padre Sávio torceu o nariz.
- Imagino que seu requisito seja o de que eu não interfira, certo?
- Corretíssimo.
- Então eu não devo fazer o que você fez, certo?
- Corretíssimo... – A resposta veio constrangida.
O homem bufou voltando a bater na batina.
- Eu gostaria de saber o que o senhor está planejando senhor Enzo, então sim, vou aceitar sua oferta e ficar, e vou fazer valer os seus termos de não interferir.
Sentir o desconforto de Enzo me fez sorrir.
- Só vou pedir alguns minutos para subir e trocar isso aqui – Padre Sávio disse apontando a roupa que por mais que fosse batida ainda mantinha uma camada de terra, bem como algumas manchas de barro que só sairiam com uma boa lavada – Daqui a pouco estarei de volta.
Enzo o cumprimentou com um movimento de cabeça e padre Sávio saiu com passos pesados, passando por mim como se eu não existisse. Com a retirada do homem me aproximei de Enzo, o dissipador criava apenas uma calmaria e se quiséssemos ter verdadeira paz ainda havia muito a fazer.
Eu só estava na dúvida sobre qual seria a próxima etapa do nosso trabalho. Foi exatamente o que perguntei a Enzo.
Só não entendi a resposta.
- Pás?
***************
Prometo que os trechos serão maiores (não muito, gosto de ver os leitores sofrendo Huahuauhha)
Continua sexta 24/08