Confissões de um vampiro pouco ortodoxo
Por Ramon Bacelar
“O Eu não tem salvação. Ele é apenas um nome. É apenas ilusão. É um expediente que usamos para ordenar nossas ideias. Nada mais existe além das ligações de cores, sons, calores, impressões, espaços, tempos e os humores, as sensações e volições estão ligados a estes vínculos. Tudo está em mutação eterna”. Hermann Bahr
Eu poderia começar este relato com o clássico, porém ridículo clichê: ‘Não fui uma criança como as outras... ’, ou então com o indefectível e atmosférico parágrafo: ‘Em uma noite fria e ventosa... ’, mas a noite não era fria nem ventosa e embora minha infância se assemelhe – de certo modo - a tantas outras... A verdade é que o buraco é mais embaixo.
Tudo começou quando mamãe abriu as pernas para o papai e nove meses depois – com as coxas ainda escancaradas -, vim ao mundo com quatro kilos e uma fome de leão em parto normal (coitada da mamãe!).
Ela, segundo vovô, gritou de dor na primeira amamentada, mas logo se acostumou à ideia de um insaciável monstrinho parasita que só se satisfazia com os constantes gemidos, cortes e sangramentos peitorais. Naturalmente não me lembro, mas não posso esquecer o dia que ele, com voz trêmula e assustada, falou-me de minhas golfadas alvas e dos meus olhinhos escancarados de satisfação, quando gotas de sangue tocaram minha língua pela primeira vez. Vovô não comentou, mas eu soube, tempos depois, quão esquisito ele me achava. Sim... Estranho, esquisito e faminto, e se bem me lembro de sua ansiedade e entonação, em meu último ano de peito aos quatro anos, quão ossuda e cadavérica era a face da mamãe.
Lembro-me vagamente que mamava dia e noite na esperança de que, misturado ao leite materno (aaarrgg!!), gotejasse nas papilas gustativas o doce sabor do sangue rubro, mas quando jorrava, paralelo as sensações de intensa satisfação e saciação, uma outra conquistava território com suores frios e temor gélido: a sensação de estar sugando a vida da mamãe. Dedos ossudos, bochechas fundas, complexão anêmica e postura acorcundada eram apenas alguns dos muitos sinais de sua decadência física e emocional; sua voz, antes doce e suave, agora me soava como uma sirene rouca, e quando, em outro sangramento, me chamou de “monstrinho parasita da mamãe”, soube não apenas que seu instinto materno entendia minhas necessidades, como também no fundo (lá no fundo), mamis não estava... Como colocar?... Batendo lá muito bem da caixola: “Canibalzinho dengosinho da ma-mãe!”
Assim foi por semanas, e assim seria por anos a fio não fossem os gritos de socorro do vovô quando, ao entrar no nosso quarto, surpreendeu-me com uma reprimenda enquanto eu pressionava meus famintos caninos de leite no enrugado pescoço: mamãe, estendida na cama com a jugular feito um chafariz, encarou-nos com olhos vítreos, e com um gesto de adeus, beijou minha bochecha sangrenta antes de dizer: Eu te amo.
Eu a amava; amava muito, muito, muito mesmo, mas os meus impulsos eram mais fortes que sua resistência e minha fome maior que nosso amor.
***
Mamãe me fez falta (ainda faz) e com meus colegas de escola evitando-me ‘como o diabo foge da cruz’, só restava me isolar e sentir fome... Muita fome: Fome de atenção, afeto e carinho; de amor, respeito e proteção: fome da mamãe: do sangue da mamãe. Matei porque fui forte, mais forte que seu instinto protetor, mas matei porque fui fraco, muito fraco: A fome grita, humilha, enlouquece ... Rebaixa, aleija, enfraquece: Matei porque...
***
Não se passou muito tempo antes que sua morte nos pesasse como uma ausência de chumbo. Seu “suicídio” foi assimilado com relativa naturalidade, mas sua ausência – ou presença – se fez mais viva quando - nos primeiros meses - macarronadas, sanduíches e sobremesas se mostraram insuficientes para intimidar minhas crises de histeria, palidez crônica e flacidez comatosa: Quanto mais comia, mais enfraquecia: quanto menos esquecia, mais me lembrava (matei porque...)
Enquanto os meses corriam e os anos voavam, minha condição lentamente se agravava. Saco de pelanca, pau de barraca e “Se ficar de lado some.”, eram alguns dos apelidos na escola ao longo dos anos; em casa, após inúmeras medicações e tratamentos, acharam por bem, nas palavras do vovô, “Esperar e deixar nas mãos de Deus”, mas enquanto Ele não vinha, eu aguardava e emagrecia: a fome aumentava, consumia: eu tentava, tentava, mas não entendia.
Eu esperei, mas Deus não veio, orei, mas não escutou; nem quando lhe implorei o retorno da mamãe: ela se foi para sempre, mas eu fiquei.
***
Se em minha infância eu era fechado e retraído, aos 15 anos tornei-me um solitário nato; isolado, solitário e ainda faminto: quanto mais eu queria, menos alcançava: quanto maior o isolamento, mais intensa a solidão.
Com as mudanças da adolescência e minha insaciável fome e curiosidade – que mais tarde identifiquei como uma carência obsessiva -, um intenso interesse sobre minha real natureza e condição aflorou em minha mente, e tempos depois me impulsionou a buscar novas experiências nas esferas dos sentidos e sensações... Mas estou me adiantando.
Uma noite, em meio a uma de minhas frequentes crises, enquanto pesquisava na net um trabalho escolar, pela primeira vez tomei contato com a realidade de minha condição, ou, no mínimo, o início de minha auto-descoberta.
Consultava uma page sobre folclore europeu, quando me deparei com um artigo pseudo-científico sobre parasitismo psíquico cuja abordagem, com constantes menções a lendas vampíricas e impulsos obsessivos, me fizeram crer que não apenas minhas ânsias e distúrbio comportamental se assemelhavam a outras de tempos remotos, como também minhas fomes iam muito além de meros distúrbios psicológicos ou necessidades biológicas. Se vampiros não passavam de lendas e superstições, certamente eu não era uma delas; se em mundos de sonho e imaginação, alhos, cruzes e símbolos os afugentavam, neste me confortavam e alimentavam... Pelo menos em parte.
Minha fome de viver só não era maior que minhas constantes tentativas em (auto) preservação e conhecimento: Por que o sangue da mamãe? E sua morte... Minha fome... Sua vida? Porque o vovô nunca conversou comigo? Eu era o único? Ainda sou o que acho que sou? (Se é que eu realmente sou!). Por que definho deste modo? Será que vou morrer como nasci? Sem conhecer a totalidade de minha condição (uma ínfima porção!)... Por que?... Por que...
Vovô me falava que perguntas são mais interessantes que respostas, não por soaram falsas ou hipócritas, mas pelas inatas inadequações e insuficiências; e depois de ter vivido o que vivi e sentido o que senti, suspeito que elas no fundo simplesmente não são... Como dizer? Respostas simples para questões complexas são ferramentas eficientes para tornar nossa existência mais confortável e prazeirosa, todavia acredito que o conforto só nasça de um tímido, porém perceptível, distanciamento da real natureza das coisas, de tudo aquilo que não deveria... Mas eu estou divagando... Em parte.
De tudo que descobri sobre mim, nada foi mais importante que a conclusão de que minha alimentação era apenas uma pequena fração de minhas necessidades biológicas: eu não precisava do sangue da mamãe... Não mesmo; eu necessitava de sangue, mesmo que minha fome por ela – como um filho qualquer - (ainda) fizesse presente de outras maneiras; o problema vinha de mim e se quisesse viver – pelo menos tentar - precisava matar: mamãe foi a primeira.
Decidido que rumo tomar... Quem, quando, onde e como matar?
***
A resposta me veio em um pacato domingo quando fui despertado pelo latido do cão do vizinho; sentei-me sonolento e antes de me levantar, pensei: por que não?
Escorei no muro do portão, atraindo-o para o pátio com uma fatia de bife; com uma paulada na nuca levei-o ao chão e arrastei-o ao fundo; enquanto grunhia e estrebuchava suas últimas agonias, fechei os olhos e cravei meus dentes no pescoço peludo. Suspirei, salivei. Olhei: sorri: sonhei: Esguichos de vida rubra manchando meu rosto com a subtaneidade de tempestades de verão, irritando minhas órbitas como insistentes lágrimas ácidas.
Senti ondas de tremor trespassando seu corpo, explorando meus poros como descargas elétricas; toquei seu pescoço pateticamente inerte, imaginando texturas sangrentas como aderências carmim em estátuas de cera. Pressionei meus lábios convulsivos na pelagem quente enquanto enterrava caninos e fomes na realidade de carne; minha língua, antes inerte, agora - nervoSA! - gritava para o labirinto de veias convulsivas e tecidos fibrosos como um frenético parasita faminto.
Suspirei e suei: suguei: suguei: suguei...
Alimentei-me com os olhos covardemente fechados evitando o obsceno silêncio VIVO, mas sua insistência muda reverberou em meus tímpanos como cacofonias de culpa; sabia que tinha errado, mas preferi não pensar e que, cedo ou tarde, novamente, tornaria a matar: sugar, sugar, sugar.
Tateei o meu rosto, mas nada senti, insisti; empalmei as bochechas, suspirei, tateei, persisti, concluí: Agora outra – sobreposta e falSA! - MÁScara de sanGUE(!): Odiosa mentira rubra mascarando MEU arremedo de face: A Mascaração da Mascaração.
Abri os olhos, fechei: abri: fechei: pisquei. Olhei: de dentro pra fora: de fora pra denTRO: MaMÃE!!
Gritei sem ouvir, chorei e senti... Matei porque, porque... [dor: dói, dor: dói, dor de cabeça, dor de cabeça, dor “na” cabeça]: Girou, girou, girei, girei...
Larguei-o e corri ao banheiro; removi SUa máscara de vida com água e sabão... Encarei o espelho: olhos: gotas, boca: sulcos, carne: gotas, lábios: sulcos. Gotas, gotas, sulcos, sulcos, sulcos: , eu!... ... ... eU?>
[Dor: Dói: dor de cabeça: dor na cabeça...]: Girou, girou, girei, girei...
A última coisa que lembro - antes do meu reflexo esquálido arremessar-me para a escuridão de minhas pálpebras - foram os gotejantes sulcos de pele movediça reduzir-me a uma disforme ausência pálida.
***
Daquela tumultuosa manhã de fome e sangue, salvo o que acabei de relatar, nada me marcou mais que minha involuntária entrada no imprevisível e infinito universo das frustrações, fracassos e sensações; nada continua tão vivo como minha autocontemplação – uma semana mais tarde - no mesmo abominável espelho, e minha conclusão que o sangue do cão não apenas não me regenerou como também me despertou outros impulsos: No vazio silencioso do meu inconsciente, nos recessos mais profundos e escuros do meu coração, um desejo de ferir, matar e sentir – matar por matar: sentir por sentir - pulsava insanamente como um abominável e criminoso coração das trevas.
Lembro-me que, de cabeça baixa, envergonhado comigo mesmo, pressionando outro grito preso, fragmentei meu reflexo na verdade muda do espelho, e quando senti filetes quentes inundarem sulcos e cavidades em minha pele flácida, eu soube de imediato que minha frustração de não conseguir me alimentar – salivar: definhar: fracassar – só não era maior que meu prazer em matar e sentir, sentir e matar: quanto mais forte o desejo, mais intensa sensação.
Deitei-me no piso frio e contemplei infinitos eus questionando-me do cárcere reflexivo de fragmentos e estilhaços: uma mexa de cabelo aqui, um olhar vazio ali, uma laceração acolá. Bocas sem dentes: dentes sem bocas: peles sem cor: dores sem gritos.
Respirei:
Ar rarefeito carregado de sangue.
Expirei:
Lâminas rubras em secreções pegajosas.
Encarei:
Outro estilhaço em V emoldurando um órgão esponjoso: cativa da tirania reflexiva, minha língua (em V), como um DeuS da chacoTA(!) me deu língua em V... V? Pensei, e não satisfeito...
...Conjeturei:
... Se ... ... Se... Se a... Se a...
***
...VVVVVVinganÇA(!) é um prato que se come frio...
Melhor lubrificar as engrenagens do tempo, lavar os talheres e come-lo agoRA (!): quente e cru.
Magro e desnutrido eu era, mas antes um saco de pelanca vivo, que um chacoteiro morto. Antes... (Sacote de pelancaaaa!!!! Cabide de...) ... Balancei a cabeça como se dissipasse um pesadelo, enxuguei o suor e desci as escadas.
Liguei para um colega e lhe pedi emprestado um livro para uma pesquisa escolar. Duas horas depois me vi solitário e faminto no mesmo terminal onde anos antes ele... Como colocar? ... ... ... , “Melhor não pensar”, pensei.
Aguardei-o com a ansiedade de uma carência faminta, e quando um ribombar de trovão anunciou os primeiros pingos de chuva, da periferia de minha salivante vontade, no desaguar da vida celeste, eis que surge como um desejo tornado carne... elE (!); remando a escuridão úmida com dois braços sacolejantes. Escondi-me no banco e com um golpe na nuca imobilizei-o de barriga no chão; olhei para os lados e arrestei-o para um beco escuro; com uma tesoura escolar explorei sua face com movimentos ondulantes; percorri os seus olhos, tateei o seu queixo, respirei o seu medo, umedeci minha língua, salivei suas veias e antes que gotas de chuva distorcessem minha visão [aaaaAAHHH!!], empurrei a tesoura em sua carótida rasgando-a com um movimento em V: V de vinganÇA (!): A de artéria: S de Sangue: J de jorro: G de gemido: F de foME! <maMÃE!! > ...
Continuei: furei, perfurei rasguei, salivei, suguei, não pensei, não senti, NÃO (!) sonHEi... Simplesmente... ... ... <... ... ... !!!> ... ... [Dor: Dói: dor: dói... ]
F de fome: M de morte: V de Vingança: T de tristeza...
[Dor: Dói: dor de cabeça: dor na cabeça...]: P de Por quE (!) : V... de VAZIo... ... ... [Matei porque... porque...] ... ... ...
Lavei-me numa poça d’água; olhei para o céu, encarei as estrelas, mas elas não me olharam; pisquei os olhos à procura de foco, porém no mesmo instante, um vazio de escuridão varreu minha visão como uma sombra faminta; senti-me solitário e desamparado, uma caricatura de humanidade sequestrada para o ventre da noite: vazio atraindo vazio, escuridão desaguando em escuridão, escuro líquido inundando órbitas com jorros de indefinições, cataratas de negro e jatos de nada... ... ... ... ... [dor: dói... dor]: <...porquemateiporque... !... porque... ...!!! ...>
Massageei minhas têmporas, ouvindo o silêncio asfixiado intimidado pelos gemidos ao lado. Olhei-o de soslaio e notei que não respirava; ele, agora, tornado aquilo que eu mais temia: meu espelho e contraparte: a caricatura da caricatura.
Afastei-me de cabeça baixa, olhei para os lados e mesmo sabendo que tornaria a fazer – sentir por sentir: matar por matar -, também tinha a convicção que depois desta noite, jamais seria o mesmo.
... ... Jamais...
***
...Jamais... Assim acreditei quando voltei para casa com uma sensação de intensa satisfação, assim sonhei; todavia, quando, no corredor, um fugidio reflexo me mostrou a Verdade-de-Carne – a face da FaCE! -, ondas de calafrio me possuíram como parasitas úmidos; não foi preciso retornar ao espelho para saber que não era outro, nem que o meu eu jamais fugiria de mim. Eu era o mesmo: Faminta mascaração sem mascaração.
***
E agora, mesmo que ainda não saiba quem – o que - sou, tenho consciência de que aquilo que me alimenta, é o mesmo que intimida e envergonha.
Sangue. Meu sangue que jorra em mim – em seu infindável ciclo de troca e retribuição - por semanas e meses a fio alimenta. Agora restaura, dignifica, sacia,... Paralisa, intimida, envergonha, enfraquece.
Por quanto tempo ouvirei o som faminto de minha língua e o gotejar rebelde de pulsos e veias abertas, ou sentirei sua textura revigorante manchando-me como tempestades purificadoras, só o tempo - aquele que resta – me dirá; se sou um humano-vampiro, vampiro humano ou algo entre aquilo que é e não é, deixo para quem souber decifrar.
E agora, enquanto minha mente vacila temendo um arremedo de conclusão e outra – inevitável - saciação... ... ... ... ... ... Sei . Sou outro, mero acidente do destino; um desconforto biológico cativo de impulsos: Sou um humano-monstro: monstro-humano, monstro e humano. Escravo da fome: Parasita de mim mesmo.
FIM