Um conto de dois cemitérios - A vela do Morto
“Os mortos trilham por caminhos distintos, mas paralelos aos dos vivos, nós não os vemos e eles não nos vêm, contudo basta que pisemos em suas trilhas para que eles se desviem de seus caminhos para nos saudar”.
- A luz carrega uma simbologia muito importante em praticamente todas as religiões, ela está intimamente ligada à divindade. E dentro da maioria das crenças a vela é uma forte depositária dessa simbologia. Acende-se uma vela em um oratório ou altar para comungar com o divino, coloca-se uma vela no túmulo para iluminar o caminho das almas, pois sem a luz elas ficarão perdidas. – Camila concluiu sua exposição sob os olhares atentos e enfadados de seus colegas.
- É! Realmente, você está me saindo um grande nerd beata Camila. Até parece a minha mãe falando. Onde decorou isso?
Todos gargalharam diante da brincadeira de Pedro, deixando Camila em um misto de constrangimento e raiva. Os quatro estudantes estavam no centro do cemitério da cidade, cercados por grandes tumbas de mármore e granito, e adornados mausoléus. Sob os olhares atentos de estátuas de anjos e santos os jovens observavam um túmulo mais simples e recém-fechado. Não havia flores na sepultura, apenas cinco velas acesas. Os quatro haviam faltado à aula e resolveram perambular até a hora de irem embora, acabando por chegarem ao cemitério nos limites da cidade. Já passava das nove da noite quando se depararam com o túmulo que incomodou profundamente Breno.
- Está bem, então porque todas as outras sepulturas têm apenas flores ao invés de velas? Se sua teoria estiver certa Camila o resto dos defuntos estão perambulando sem rumo pelo cemitério agora. – analisou Breno diante da concordância dos outros presentes, reduzindo a raiva e aumentando o constrangimento da garota.
- Vamos parar de fazer piadas agora, ela vai acabar chorando. – interveio Brenda.
- Tudo bem, mas se ela tinha tanto medo de cemitério por que veio? – disse Breno com um irônico olhar de seriedade.
- Alguém está afim de deixar um morto sem rumo? – bradou Pedro assoprando as velas logo em seguida, apagando duas de uma vez.
Camila sentiu um calafrio naquele momento, a garota vinha de uma família muito religiosa e igualmente supersticiosa. Não gostava nenhum pouco de sua fama de menina religiosa e para não afastar os amigos sempre participava de suas brincadeiras, mesmo quando iam contra suas crenças, mas isso já era demais.
- Essa é minha! – gritou Breno, molhando o dedo na saliva e suprimindo a chama da terceira vela.
Camila ajeitou sua mochila nas costas e saiu apressada em direção à saída do velho cemitério. Brenda fez menção de segui-la, mas ao ver que os garotos a esperavam para apagar a quarta vela desistiu e foi participar da brincadeira. Era apaixonada por Pedro e não queria parecer tão boba quanto a amiga aos olhos do rapaz. Pedro era o oposto de Camila, não tinha o mínimo respeito pelo sagrado e seu jeito brincalhão, e uma capacidade de influenciar as pessoas, o faziam muito requisitado por todos, mas era Brenda, Breno e Camila que faziam parte da turma dele, e para manter o status quo os três seguiam-no onde quer que fosse. Brenda juntou saliva na boca e depois deixou cair fartamente sobre a chama da vela.
- Que nojo! – exclamou Breno – a última é minha.
- Não! – interveio Pedro antes que o colega apagasse a vela – vamos levar o finado para um passeio.
Todos concordaram, Pedro retirou a vela do túmulo com todo cuidado para não apaga-la, um vento frio soprou fazendo-o colocar, institivamente, a mão para preservar a chama. Um calafrio percorreu o corpo dos três incautos adolescentes, mas eram orgulhosos demais para admitirem o medo que a brisa noturna incitou em seus corações.
- É impressão minha ou estou sentindo uma pontinha de medo em vocês dois? – debochou Pedro colocando a vela abaixo do queixo para iluminar seu rosto – Buuuuu! – brincou.
- Vamos embora logo – falou Brenda – a aula já vai terminar, meu pai me pega na porta da escola às dez e meia e a Camila deve estar lá nos esperando, ela não vai conseguir pular sozinha o portão.
Os três se puseram a andar apressados, mas o que os movia na verdade não era o iminente sinal da escola, mas sim o desconforto que sentiram após o ato impensado. Apenas Pedro com a vela, empunhada como um troféu à sua virilidade, ainda mantinha a impetuosa aparência. Ria e fazia observações sobre a façanha que tinham acabado de cometer, ao mesmo tempo em que lembrava que todos sentiram medo exceto ele. Mas a manutenção da vela acesa o obrigava a ficar alguns passos atrás dos amigos, e cada vez mais se distanciava deles.
Um barulho de passos lentos logo atrás dele o fez parar subitamente com as pernas começando a tremer. Olhou em volta temeroso, e o vento soprou trazendo aos seus ouvidos o som de folhas secas sendo arrastadas, “é isso”, pensou ele tentando aliviar a tensão, mas o medo não sessou e aumentou ainda mais quando não viu seus colegas mais à sua frente.
- Pessoal! – gritou sem obter resposta.
Continuou a andar pela alameda principal do cemitério com a vela ainda acesa, o objeto outrora símbolo de sua coragem infante, se convertera em seu único refúgio seguro naquela via orlada de frondosas árvores, que impediam que a tênue luz emitida pelos postes chegasse ao solitário transeunte.
- Breno, Brenda, estão me ouvindo? – clamou novamente pelos amigos sem sucesso.
Começou a andar e ouviu novamente os passos atrás dele, olhou e não havia nada. Os postes de luz que deixava para trás ao caminhar começavam a falhar, logo um a um foram se apagando deixando a fraquíssima iluminação nula. Pedro apertou os passos e continuou para fugir da completa escuridão que vinha em seu encalço, o cuidado com a vela retardava-o bastante, à medida que a escuridão se aproximava os paços também se faziam ouvir mais próximos. O garoto começou a rezar baixo e caminhou apressado para a saída do cemitério, mas alarmado se lembrou, após avistar o grande portão branco, de que a entrada principal ficava fechada, e não era possível pular o muro sem a ajuda de Breno, como fizeram para entrar.
Ele parou por um segundo para refletir sobre o que fazer e sentiu que os passos que o seguiam cessaram, percebeu também que as luzes se mantiveram acesas perto dele. Chorando e rezando baixo ele arriscou olhar para trás, não havia nada além da grande estátua da virgem que parecia encará-lo com pesar. Pensou em ficar parado ali até amanhecer, pensou em correr desesperadamente e arrombar o portão, o que julgou imediatamente impossível. Mas ao fim do turbilhão de sensações lembrou-se da entrada lateral por onde seu irmão mais velho costumava entrar com os amigos para suas festas góticas. Mas para isso deveria sair da alameda e entrar em vias estreitas em direção à parte velha do cemitério onde a escuridão imperava completamente.
O jovem já não podendo conter os soluços rumou em direção à saída secundária que dava acesso à rodovia. Os grandes e adornados túmulos e mausoléus ficaram para trás, havia apenas antigas covas sob um verde gramado com desgastadas cruzes e lápides marcando os locais de sepultamento. As árvores naquele local se alastravam sem obstáculos formando um pequeno e escuro bosque. A vela acesa era realmente uma benção, mas os passos prosseguiram, e agora os ruídos eram mais altos devido a grande quantidade de folhas secas. Pedro olhava por sobre os ombros sem, porém, ver o autor de tais atormentadores ruídos.
Quanto mais rápido andava mais rápido os passos também o acompanhavam, até que os passos se aproximaram dele bastante para que ele ouvisse um ruído parecido com o de uma respiração. Nesse momento ele não suportou, sentiu sua calça molhada, não conseguiu dar um passo enquanto sua bexiga vertia o liquido involuntariamente. Nesse meio tempo não ouviu os passos, lembrou-se imediatamente do que Camila falara sobre as velas para os mortos, “a vela”, constatou, “o finado está seguindo ela”.
Pedro olhou temoroso, com olhos arregalados, para a escuridão que o circundava a partir do ponto onde a luz da vela não podia alcançar. Respirou fundo e assoprou a vela, ouviu em seguida um urro alto de desespero bem atrás dele. Soltou a vela no chão e correu como nunca, sem olhar para trás ou para os lados, saltou lapides e cruzes, desviou com destreza das árvores, o pavor era tanto que nem o extremo cansaço o abateu em seu percurso. Parou por um instante ao ver a entrada lateral e do outro lado postes iluminavam a rodovia. Era um velho e pequeno portão azul, não era muito baixo, mas buracos no desgastado muro permitiam transpô-lo sem muitas dificuldades.
Colocou o pé esquerdo no primeiro buraco e tomou fôlego antes de dar inicio a sua pequena escalada. Contudo, o pavor voltou a consumi-lo quando sentiu um cheiro forte de vela e uma voz, que parecia ter vinda de longe, mas que soava próximo ao seu ouvido, disse “está escuro, acenda a vela”. Ele escalou e desceu do muro com grande velocidade, correu desesperado pela rodovia, mas antes de cruza-la foi atingido em cheio por um caminhão que seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido.
Como um boneco o corpo de Pedro foi arremessado contra o muro do cemitério, onde a copa de uma imensa gameleira se projetava para fora cobrindo a ampla calçada com as suas densas sombras. Ele permaneceu caído sem poder se levantar, sentiu um frio intenso vindo de cima, olhou para o muro com o sangue escorrendo e embaçando sua visão, um rosto cadavérico o observava de cócoras sobre o muro. O garoto tentou gritar, mas não conseguiu, o ser macabro desceu do muro como se deslizasse por ele, e depois parou de pé em frente ao garoto que tremia de medo e dor, aguardando a investida do ser. Porém ele se limitou a abaixar, depositando a vela apagada aos pés de Pedro dizendo “uma vela para o morto”, logo depois se afastou em direção à iluminada rodovia. Pedro contemplou a vela apagada aos seus pés, enquanto suas vistas se escureciam, e só desejou que ela estivesse acesa, logo se viu imerso em uma profunda escuridão.