Amor além da vida

Moro no cemitério há vários anos, mas não estou morta. Depois de ser despejada da casa que eu morava, por falta de pagamento, decidi viver aqui entre os mortos. No começo tinha medo, mas depois me acostumei e agora nada mais me assusta. Há atividade constante em um cemitério, por mais pacato que ele pareça. Durante o dia há a movimentação dos vivos, e a noite a dos mortos. Sempre fui muito sozinha, mas hoje vivo rodeada de amigos. Moro em um cômodo pequeno, cedido pela prefeitura, e em troca cuido dos túmulos e auxilio nos enterros. Minha primeira experiência com mortos aconteceu de forma apavorante. Acordei uma noite com uma batida fraca na porta, e ao atender dei de cara com uma menina que eu havia ajudado a sepultar naquele dia. O pavor me dominou e comecei a fechar a porta, mas a garota começou a chorar baixinho dizendo que queria voltar para casa. Penalizada eu expliquei que ela não podia voltar, pois morrera que sua casa agora era ali. A garota falou então que tinha medo de ficar lá fora e pediu para ficar dentro do barraco comigo. Insisti que ela tinha que se habituar a companhia de outros mortos, mas quando os soluços sacudiram seu frágil corpinho, mandei que entrasse. A menina ficou ao meu lado por um bom tempo, e quando eu já estava acostumada com a sua presença, simplesmente sumiu. Depois dela, muitos falecidos dividiram comigo a moradia, e da mesma forma que fizera a menina, um dia também partiram. Habituei-me tanto a companhia dos mortos, que nunca mais tranquei a porta, e tornou-se comum para eu acordar, e encontrar algum deitado ou assentado em minha cama. Fiz muitas amizades e conheci diversas histórias. Algumas tristes, algumas engraçadas, outras de amor e ódio. Cheguei mesmo a dar conselhos e a persuadir a alguns que desistissem de se vingarem. No dia do meu aniversário de quarenta anos, o destino me preparou uma surpresa. Conheci o amor da minha vida. Um moço muito bonito que eu havia sepultado. Recordo que na hora do enterro, senti uma forte emoção ao observar seus traços delicados. Fiz uma coisa que nunca fizera antes. Perguntei a mãe do rapaz o motivo de sua morte e soube que morrera de um grave problema no coração do qual padecera durante anos. A medicina tudo fizera para salvá-lo, mas não teve êxito. A mãe disse que o filho sempre soube que para ele não havia cura. Naquela noite eu aguardei ansiosa que o moço fizesse oque a maioria dos mortos fazia. Que viesse a minha casa, mas as horas foram passando e como ele não aparecesse fui a sua procura. Fui encontra-lo sentado tristemente em uma lápide. Aproximei-me e sentei ao seu lado. O rapaz me olhou curioso, talvez se perguntando se eu estava viva ou morta. Quebrei o silêncio me apresentando, e ele com um sorriso lindo que destacava duas covinhas também se apresentou. Durante algum tempo, nossos encontros se deram assim e uma noite notei que ele me olhava de um jeito doce, diferente. Perguntei o motivo de ele me olhar com tanta intensidade, e ele se confessou apaixonado. A emoção que senti com sua declaração foi muito forte e meu sentimento por ele também ficou exposto. Hoje é o meu aniversário de setenta anos. Continuo morando no cemitério e ao lado do meu amor. Ele não quis partir como os outros. Prometeu ficar até que eu faça a passagem, para vivermos nosso grande amor do outro lado da vida. 21/08/12